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domingo, 21 de novembro de 2010

"O Corcunda de Notre Dame", Victor Hugo

"Notre Dame de Paris", mais conhecida como "O Corcunda de Notre Dame", mas cuja tradução do título original é "Nossa Senhora de Paris", foi uma obra que, quando escrita em 1831 pelo grande poeta francês Victor Hugo, não tinha a intenção de chocar e emocionar com sua história real e, ao mesmo tempo, fantástica. Tinha sim o objetivo de atentar a sociedade para a conservação da catedral de Notre Dame, realizando um retorno histórico ao mundo medieval do final século XIX e dissertando sobre o modo de vida, a miséria, as diferenças sociais, dentre outros assuntos relacionados à sociedade da época. Isso nos é demonstrado ainda no prefácio, onde o autor nos fala:
"Com o tempo, rebocaram ou rasparam (ignoro qual das duas coisas) a parede, e a inscrição desapareceu. Há uns duzentos anos que é costume fazer isso nos maravilhosos templos da Idade Média. As mutilações procedem de toda parte, de dentro e de fora. O padre reboca-os, o arcediago raspa-os, vem o povo que os deita por terra."
Entre os núcleos de personagens , encontramos contrastes: o clero, o rei Luiz XI e os fidalgos se cruzam  na história com ciganos, deficientes, doentes e ladrões, os quais são representados pelo "Pátio dos Milagres", bairro que abriga os proscritos, os sem rumo e personagens importantes de nossa história, como a Esmeralda.
De fato, o personagem principal do livro não é nosso famoso corcunda, nem tampouco nenhum dos personagens que vivem a história que nos é contada. A grande protagonista do livro é o berço de nossa história, que assiste a todos os inúmeros acontecimentos e à vida de nossos personagens: a catedral de Notre Dame.
A obra relata a história de três diferentes tipos de amor. O primeiro, responsável por todas as tragédias que surgiriam posteriormente no livro, é o do arcediago Cláudio Frollo pela cigana Esmeralda. O arcediago era um homem da ciência, frio e instruído, que, mesmo que houvesse algumas vezes se interessado por outras mulheres, havia se contido, até conhecer a Esmeralda. A Esmeralda era uma morena dos olhos pretos de beleza quase divinal, que encantava a todos que a viam, como foi e o caso do arcediago. Este, não conseguindo livrar-se do amor, decidiu fazê-la morrer, como se essa fosse a única salvação para sua alma. Tentou raptá-la, com a ajuda de Quasimodo em uma noite, mas foi interceptado pelo capitão Febo de Châteaupers, que a salvou, deixando-a perdidamente apaixonada por ele.
Quasimodo, também conhecido como o corcunda de Notre Dame, obedecia a Frollo, seu mestre e senhor, pois ele o havia salvado de ser atirado a fogueira ainda bebê. Ele era cego de um olho e vesgo, era coxo e corcunda, ao que se devia seu título; a única dádiva que lhe havia sido dada, a audição, lhe havia sido tirada pelo alto ressoar dos sinos, visto que ele era o sineiro de Notre Dame. Após o incidante noturno, Quasimodo é condenado e sofre humilhação pública, além de ser terrivelmente chicoteado e maltratado. A única boa alma que lhe estende a mão em compaixão para lhe entregar um copo d'água é Esmeralda, que faz isso com piedade, porém temerosa, visto que Quasimodo é feio como um monstro. Assim surge o terceiro grande amor de nossa história: que nos traz o contraste de aparências de Quasimodo e Esmeralda.
Uma noite, o capitão Febo, aproveitando-se da paixão da bela virgem a leva para um quarto e tenta seduzí-la. Frollo, que assistia tudo às escondidas, não consegue suportar a cena e apunhala o capitão, deixando a Esmeralda como culpada do crime e condenada pela morte do capitão. No momento em que ela ia ser enforcada, momento este assistido por Frollo e Febo (que havia sobrevivido), ela é salva por Quasimodo que a leva para o grande satuário de Notre Dame, onde ela encontra asilo, visto que dentro da catedral sagrada ela não pode ser atacada. Nesse momento, apesar do horror que ela possui por Quasimodo, aos poucos ela começa a perceber sua doçura e bondade. Enquanto isso, Frollo continua dando investidas, ao passo que ela ainda suspira pelo capitão. O clímax do livro ocorre quando a catedral é atacatada pelos revoltos do Pátio dos Milagres para "salvar" a Esmeralda e saquear a catedral. Quasimodo, no entanto, pensa que eles querem enforcar a bela e, sozinho, protege a catedral da invasão. Enquanto isso, Frollo captura a Esmeralda e, como ela não aceita ficar com ele, ele a manda enforcar.
Ao início do livro, encontramos a seguinte descrição de Quasimodo: "Era efetivamente mau, porque era selvagem; era selvagem, porque era feio. Na sua natureza, como na nossa, havia uma lógica." O pobre corcunda havia, toda uma vida, sido odiado pelo simples fato de não possuir uma aparência agradável e ser deficiente. Sua mãe era a catedral, seus amigos, os sinos, principalmente, o maior sino de todos: a amada Maria. O que lhe havia sido dado de mais próximo de pai era Frollo, que o acolhera e ensinara. No decorrer do livro, após o pouco de compaixão de que lhe serve a Esmeralda, vemos em Quasimodo uma segunda face: a face da candura, da bondade e da capacidade de amar. Ainda que aos outros ele parecesse um monstro, nós o vemos como o homem doce que ele podia ser se não lhe tivesse sido entregue tanto ódio.
A Esmeralda, ainda que tivesse pena e compaixão por Quasimodo, o temia por sua aparência. Quando ele a resgata, ela se esforça para não demonstrar seu medo, mas ele, com uma alta percepção de liguagem corporal, inerente aos surdos, não se engana e tenta não aparecer em sua frente, velando-a de ângulos por onde não pode ser visto.
O sentimento que Quasimodo nutre por Esmeralda é puro, delicado e cativante. Um amor completamente altruísta, capaz de desejar a felicidade dela a qualquer preço. Em um determinado momento, a Esmeralda pede ao corcunda para trazê-la Febo e este vai em busca dele, mas o encontra com sua noiva, Flor de Lis. Quando retorna, não diz a Esmeralda o que viu. Diz simplesmente que não conseguiu trazê-lo. A Esmeralda fica realmente irritada com ele e Victor Hugo nos dá a seguinte passagem: "Deixou-a. Ela estava descontente com ele. Preferia ser maltratado a afligí-la. Guardara para si toda a dor."
Diferente do amor de Quasimodo, o amor que Frolo nutre por Esmeralda é um amor pecaminoso, amaldiçoado. Mas não somente por ele ser um padre e, principalmente, porque é um amor egoísta. Ele prefere que Esmeralda morra a ficar nos braços de outro. Frollo é, na obra, a representação do homem barroco.
Enquanto isso, Febo não possui nenhum tipo de sentimento por Esmeralda. Durante o início do livro, ele demonstra ter um desejo carnal por ela, que logo se esvai quando surgem novos interesses. Ao vê-la condenada por sua morte, ele nada faz para impedir.
E finalmente, temos o amor que Esmeralda nutre por Febo. Apesar de platônico, ela acredita ser correspondida e está, durante todo o livro totalmente entregue a seu amado, até a morte. Em um trecho do livro, Quasimodo, quando descobre o amor da bela por Febo, afirma: "Maldição! Ali está como era preciso ser! É preciso ser belo, nada mais", nos apresentando à face fútil de Esmeralda, a linda e doce donzela que não conseguia enxergar por trás da carcaça, como é até hoje. Encontramos uma referência ao contraste Quasimodo e Febo na seguinte passagem:
"Uma manhã, [Esmeralda] descobriu, quando acordou, sobre a janela dois vasos cheios de flores. Um era de cristal, belo e luzente, mas rachado. Deixara fugir a água de que o tinham enchido, e as flores que continha estavam murchas. O outro era um pote de barro, grosseiro e vulgar, mas que conservava toda a água e as flores frescas e vermelhas.Não sei se foi intencionalmente, mas a Esmeralda pegou no ramalhete murcho e trouxe-o todo dia no seio."
Durante todo o livro, Quasimodo tem de se confrontar com um dilema: salvar sua amada Esmeralda, ferindo seu mestre Frollo ou obedecer às ordens deste e deixar a donzela em suas mãos. Ao fim, o corcunda, em uma atitude impulsiva e, portanto, verdadeira, atira Frollo de cima da catedral e assiste, com lágrimas e lamentos, à morte de seu amado tutor e da belíssima jovem que roubara seu coração, suspirando ao final: "Oh! Tudo o que eu amei."
Dois anos depois, uns homens que estão desenterrando ossadas no local onde a Esmeralda havia sido enterrada encontram duas ossadas com as seguintes descrições:
"[...] encontrou-se entre essas horrendas ossadas dois esqueletos, um dos quais tinha o outro singularmente abraçado. Um desse esqueletos era o de uma mulher [...]. O outro, o que tão estreitamente abraçava este, era um esqueleto de homem. Notou-se que tinha a coluna vertebral desviada, e uma perna mais curta que a outra. Não tinha ruptura alguma de vértebras na nuca, o que provava a evidência de que não tinha sido enforcado. O homem a quem ele pertencia tinha vindo a té ali e ali tinha morrido. Quando o quiseram desprender do esqueleto que abraçava, desfez-se em pó."
Este trecho pertence ao capítulo final da obra, intitulado de "Casamento de Quasimodo".
Dramático, nostálgico, histórico, forte. Seja qual for a caracterização que se queira dar à obra, a percepção geral é que esta nos faz refletir sobre diversos temas, tanto locais e do período, quanto universais e atemporais. Algo que realmente vale a pena ser lido.


Video-curiosidades:
Foram inúmeras as adaptações do livro para o cinema, dentre elas, encontramos:
A primeira versão cinematográfica do livro, americana de 1939, dirigida por William Dieterle
Uma versão italiana/francesa de 1956, dirigido por Jean Dellanoy;
E a mais bela e conhecida versão do livro, feita pelos estúdios Disney em 1996. Eu, particularmente, tenho um carinho especial por esse filme, que considero maravilhoso. No entanto, como é feito para crianças, grandes eventos importantes na história original são modificados, o que compromete a história, diferenciando-a do livro.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

"Alice no país das Maravilhas" e "Através do Espelho", Lewis Carroll

"Alice's Adventures in Wonderland" e "Throught the Looking-Glass" são dois belíssimos clássicos da literatura infantil mundial que encantam adultos e crianças desde quando foram publicados, em 1862. É possível afirmar que "Alice no País das Maravilhas" foi o livro infantil mais detalhadamente estudado - inclusive em termos de psicanálise freudiana - e vastamente interpretado que qualquer um.
Em ambos os livros, o cenário inicial do sonho de Alice é o lugar onde ela está. Isso dificulta a capacidade da menina de definir se tudo o que aconteceu foi realmente um sonho ou não. No decorrer das histórias, Alice encontra diversos personagens, muitos dos quais recitam músicas e poemas malucos e engraçados para ela. São utilizadas também cantigas infantis inglesas da época, cujos personagens aparecem como realidade no livro, atuando como é dito em sua respectiva cantiga. Algumas criaturas se parecem com humanos, outros com cartas de baralho ou peças de um jogo de xadrez, mas mesmo os mais estranhos assemelham-se com algum objeto conhecido por Alice, como, por exemplo, um ovo. As situações mais inusitadas passam através de seus olhos e, muitas vezes, ela se comporta como uma mera observadora.
A personalidade forte de nossa protagonista aos poucos nos ajuda a definir o tipo de criança que era Alice. Essencialmente, ela era uma sensata menina de classe média com idéias convencionais sobre etiqueta. Dessa maneira, a lógica insana do País das Maravilhas e seus curiosos (e muitas vezes rudes) habitantes representavam um desafio para ela. Esse desafio se apresentava sempre que ela tentava demonstrar um pouco do conhecimento que tinha sobre o mundo real, sendo sempre ignorada ou corrigida.
Os dois livros sobre Alice, quando recontados posteriormente, tiveram suas histórias misturadas e modificadas, até para facilitar o entendimento das crianças, visto que o livro original é um pouco complexo e escrito em um inglês bastante polido.
A falta de nexo do sonho em que a menina está, assim como nos nossos sonhos, retrata algo importante da vida ou, no caso dela, da sociedade. A ligação dos fatos é feita aleatoriamente: os cenários e personagens surgem, desaparecem e transformam-se de uma maneira que só os sonhos são capazes de realizar em nossas mentes. Mas o que faz o mundo em que Alice está ser tão curioso e diferente para a menina é o fato de o sonho não ser dela. Na realidade, ele saiu da imaginação de um adulto e eventos como a "festa do chá" e o "jogo de croquete" são as representações do mundo em que os adultos viviam, cheio te costumes, hábitos e tradições.


Tratando de assuntos de adultos de forma cômica e hiperbólica, critica uma sociedade hipócrita que podemos ver no livro pelos olhos de uma criança. Temas importantes como "quem sou eu?" são abordados, tentando desmistificar o fato de nos definirmos como um nome. Da mesma maneira, a contínua mudança de estatura da menina nos faz refletir sobre o que é realmente crescer: simplesmente aumentar de tamanho ou, de fato, amadurecer. As rainhas que Alice encontra recitam frases soltas e descontextualizadas, mas importantes para nos fazer pensar. Uma passagem interessante do livro se dá quando Alice descobre que, no mundo do Espelho, passado, presente e futuro não se apresentam como os conhecemos, o que intriga enormemente a menina. 
Essa obra da literatura mundial é, portanto, interessante para todas as idades, pois, enquanto as crianças a lêem pelo puro prazer de entrar nas aventuras e inacreditáveis encontros de sua heroína, leitores adultos ficam inevitavelmente fascinados tentando desvendar qual é a verdadeira intenção de Carroll. Na verdade, o principal enigma do livro é se há ou não sentido em toda a sua extensão. Pode-se afirmar, inclusive, que essa foi uma das maiores "peças" que o autor pregou em seus leitores: até que ponto existe algo nas entrelinhas; até que ponto não há sentido nenhum nas palavras.
Mas por mais ilusória que nos pareça a fantasia do livro, nos identificamos com ela, simplesmente porque conhecermos a realidade aparentemente sem nexo dos sonhos.
Há também muitas menções, ainda que dificilmente percebidas, ao mundo da matemática. Nas entrelinhas, encontramos limites, funções, abstração e até mesmo geometria não-euclidiana! Facilmente percebidas, temos as operações básicas, como multiplicação e soma; e muita lógica matemática.
Não é à toa, entretanto, que o livro seja repleto de tantos enigmas e jogos de lógica, visto que o senhor Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carrol, era um renomado matemático da universidade de Oxford. Foi condensando o contexto dos números e da lógica com o da imaginação e das palavras que ele criou uma das mais fantásticas e enigmáticas - porém criativas e interessantes - obras que a literatura infantil e até-não infantil mundial já presenciou.

É um livro pequeno, porém muito extenso para ser analisado em poucas linhas, e de interpretação difícil. Portanto, não foi possível fazer todas as considerações sobre a obra, mas o maior prazer é o de lê-la e tentar desvendar seus segredos sozinho.


Video-curiosidades:

São tantas as adaptações do livro, que é possível encontrá-las até em cinema mudo. No entanto, pela extensão e complexidade da obra, nenhuma delas segue verdadeiramente a história original e a maioria, como já foi dito, mistura a história de "Alice no País das Maravilhas" com "Através do Espelho". Em nenhuma adaptação é possível captar toda a profundidade da obra.

Os dois filmes da Disney, o primeiro em desenho, produzido em 1951 e o segundo, lançado em 2010 são uma mistura dos dois livros.

O primeiro filme é a apresentação da história de Alice da maneira mais original possível, criada para o entendimento das crianças, superficialmente penetrando o entendimento profundo dos jogos do livro.

No segundo, o diretor utilizou as idéias de Lewis para criar um roteiro completamente diferente do que se vê no livro, até pelo aspecto dramático e maduro dado ao filme. Na realidade, Tim Burton criou um filme de efeitos especiais, utilizando a imaginação do nosso renomado autor. O que é realmente aproveitável do filme são os cenários e a filmografia.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

"O Amor nos Tempos do Cólera", Gabriel Garcia Marquez

"El amor en los tiempos del cólera" ("O amor nos tempos do cólera"), publicado pela primeira vez em 1985, é um belo romance que passou a ser considerado um clássico da literatura mundial, já que conseguiu retratar o modo de vida e os costumes de toda uma população em um período de dor e perdas na América Latina: a época do cólera. O livro, que tem alguns aspectos de realismo fantástico, foi escrito pelo colombiano Gabriel García Márquez, que ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 1982.
As primeiras 70 páginas do livro não encantam, mas não devemos nos abalar pelas primeiras impressões. O romance conta a história de Florentino Ariza, um rapaz pobre que vai trabalhar como telegrafista para o tio e, indo entregar um telegrama na casa de um comerciante rico da cidade, acaba por se apaixonar por sua filha, a bela Fermina Daza. O casal começa a se corresponder através de cartas, com a ajuda da tia da menina, e assumem o compromisso de se casar. O pai de Fermina, ao descobrir, faz com que ela passe um ano na casa da prima Hildebranda para esquecer seu noivo, mas eles encontram uma maneira de se corresponder. Quando ela volta para casa, um dia, passeando na feira, se encontra com ele e percebe que tudo aquilo que sonhou era uma ilusão. Fermina não sente nada por ele, a não ser pena, e põe fim ao noivado. Com pouco tempo, ela casa com um médico muito famoso na cidade, que tem sido o responsável por salvar muitas pessoas do cólera. Assim começa o tormento de Florentino Ariza, que toma o casamento da amada com estímulo para sua ascensão profissional, já que resolve se tornar um bom partido para ela e decide que vai esperar até que o marido de sua amada morra, independente de quanto tempo isso leve. Paralelamente à sua busca por status profissional e financeiro, ele se relaciona com diversas mulheres, sem se deixar envolver profundamente com nenhuma. No decorrer da história, nós conhecemos as mais marcantes, que deixaram rastros em sua vida por aspectos diferentes. Sua única busca e espera, porém, é o amor da sua inesquecível Fermina. Por ela, Florentino espera 52 anos.
É impressionante como Gabriel García Márquez é capaz de nos fazer entrar na história. Desde o momento em que conhecemos os personagens até o fim do livro, nós vivemos 52 anos junto a eles, nós amadurecemos com eles. Não é qualquer escritor que consegue envelhecer, sem mediocrizar, suas criações, dando-lhes a sabedoria e maturidade de pessoas mais velhas, sem permitir que elas percam suas características originais. É fabulosa a capacidade literária do autor.

No livro, existe a colocação do amor como uma doença, com os mesmos sintomas do cólera. Um amor que sai das entranhas do indivíduo e se torna físico, real. É um sentimento apresentado em suas diversas faces, de uma maneira que poderia ser chamada naturalista, se não levássemos em conta a compostura e discrição do nosso protagonista. O amor romântico, que Florentino sente por Fermina, é retratado como o amor da cintura para cima, e o amor carnal, que permeia os inúmeros outros relacionamentos do personagem no desenrolar da obra, é o amor da cintura para baixo.
O tempo é, concomitantemente, a bruxa má e a fada madrinha da história. Do mesmo modo que ele desgasta, cansa e envelhece nossos protagonistas, ele lhes dá experiências de vida, maturidade, capacidade de amar sem medo, sem fronteiras, de aproveitar esse amor da maneira mais bela possível, já que não há mais muito tempo. Ele ajuda Florentino a encontrar uma maneira de se aproximar de Fermina sem assustá-la. O que para alguns pode parecer grotesco, como o hálito de velha de Fermina Daza beijando Florentino Ariza, é tido como uma vitória do amor, um amor que ultrapassa até as barreiras do tempo. O livro é também um protesto ao preconceito da sociedade com relação à idade de amar, representado por Ofélia, a filha de Fermina. Para o amor, não existe idade, e um amor maduro pode ser ainda mais bonito, mais romântico. A paciência e a espera de Florentino nos ensinam que a vida não precisa ser vivida com pressa e que devemos sim esperar os bons frutos do futuro, mas sem querer acelerar o tempo, porque nossos anseios vão se acabar no momento certo.
Apesar do romance, "O amor nos tempos de cólera" não é uma narrativa melosa, nem melodramática como as do romantismo. É, pelo contrário, bastante realista para uma história de amor. Os sentimentos de Fermina, por exemplo, nunca são completamente retratados, para trazer à personagem o mistério que lhe é próprio. E, ao fim do livro, não sabemos se por um momento ela amou Florentino, nem o médico com o qual se causou. Existem suposições de outros personagens sobre seus sentimentos, mas eles nunca são apresentados claramente. O amor demonstrado por Fermina é sempre apático e ela não é, definitivamente, a mocinha sensível e apaixonada da história. Parte do realismo da trama também é percebido em momentos como as viagens de barco. No ínicio do livro, Florentino faz uma viagem de barco e, nas margens do rio por onde eles navegavam, encontra-se muita natureza, crocodilos, corpos de pessoas mortas pelo cólera ao longe. Ao fim, outra viagem é feita e as florestas estão devastadas, os crocodilos morreram e, graças à cura do cólera que vinha se consolidando aos poucos, não havia mais tantas pessoas mortas pela doença.
O livro é, sem dúvida, uma obra-prima fantástica, que prende o leitor até o fim.

Video-curiosidades:
Em 2009, o livro virou um filme dirigido por Mike Newell, que, por causa da riqueza do livro, não consegue transmitir tudo que podemos inferir da leitura, mas, ainda assim, é muito interessante.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

"Orgulho e Preconceito", Jane Austen

Escrito por Jane Austen e publicado, pela primeira vez em 1813, "Pride and Prejudice" (Orgulho e Preconceito) é uma bela comédia de costumes, de enredo rico e pretensioso, que é um retrato fiel, divertido e inteligente da sociedade inglesa do século XIX.
Elizabeth Bennet é a mais centrada das cinco filhas de Mr. Bennet. Sua doce e meiga irmã Jane é sua grande amiga e confidente, que tem, inerente a sua personalidade, a capacidade de só ver o melhor em cada um. O livro se inicia com a chegada na cidade de Mr. Bingley, um rapaz bonito, rico e solteiro que deixa todas as moças e sua mães, incluindo a própria Mrs. Bennet, em euforia e excitação para conseguir um bom casamento para suas filhas. No desenrolar inicial do romance, temos a impressão de que nossos protagonistas são, na verdade, os apaixonados Mr. Bingley e Jane Bennet e podemos pensar, inclusive, que o vilão da história é o sarcástico e preconceituoso Mr. Darcy.
Elizabeth, bem como toda a cidade, logo no primeiro baile em que Mr. Darcy surge, tem uma péssima impressão de seu temperamento e personalidade e começa acusá-lo internamente de prepotente. Ela acredita que ele tem uma propensão a odiar todo mundo. Da mesma maneira, o preconceito de Mr. Darcy faz com que ele veja as pessoas daquele interior como interesseiras e mesquinhas, o que não é de fato uma falsa afirmação, em se tratando das irmãs mais novas e da própria mãe de Elizabeth. Muitos personagens surgem, no decorrer da história, para reafirmar uma possível falta de caráter e um péssimo temperamento em Mr. Darcy. Em determinado ponto da trama, no entanto, não apenas nós, leitores, mas a própria Elizabeth se dá conta de que todo o orgulho e o preconceito que ela vira em Mr. Darcy de repente podia ser percebido nela mesma com relação a ele. Sua inocência de garota de 20 anos, no entanto, a cega para o fato de que as pessoas não podem ser julgadas pelo que demonstram com suas aparências. Ela percebe que ele não é apenas um homem, educado, honesto e de caráter, como também é um homem bondoso e até solidário. Ele, por outro lado, começa a perceber as verdadeiras qualidades dela. O que eles não conseguem perceber é que dividem uma mesma linha lógica e racional de pensamento e tem tendência a encontrar defeitos na personalidade das outras pessoas, ou seja, eles são, na verdade, muito parecidos nesse aspecto. Aos poucos, Mr. Darcy e Elizabeth aprendem a superar o sentimento de ódio mútuo e, ao final, eles percebem que estão completamente apaixonados e resolvem enfrentar os preconceitos de ambas as famílias para ficarem juntos. O romance, portanto, ridiculariza a noção de "amor à primeira vista" e tenta nos mostrar que relacionamentos satisfatórios só podem se desenvolver gradualmente.

Não é à toa que Austen planejou, originalmente, entitular seu livro de "First Impressions" ("Primeiras Impressões"). O livro trata do impacto inicial que a imagem de um indivíduo pode provocar no outro. Há uma passagem em que Jane afirma o quanto Mr. Darcy tem dificuldade de demonstrar ter um bom temperamento, o que é diferente de realmente não ter um bom temperamento, como poderíamos complementar. O título original não foi adotado, pois uma escritora contemporânea, Mrs. Holford, publicou um romance com esse antes.
A obra explora os costumes da época e satiriza o comportamento fútil e interesseiro das pessoas, com uma aguda percepção, capaz de dar ao romance inglês um primeiro impulso à modernidade. A autora se utiliza de bailes, jogos de baralho, visitas, passeios diurnos e cartas para levar à interação de seus personagens e, dessa maneira, nos apresenta aos meios de socialização do período.
Austen nos coloca frente a um duelo entre as verdades universamente conhecidas da sociedade e os autênticos sentimentos humanos, ou seja, entre o conformismo e a capacidade de cada um de formular suas próprias opiniões. O choque de idéias se desdobra em uma ironia na primeira linha do livro: "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna necessita de uma esposa." E os costumes, bem como o excesso de interesse das famílias da época, vem logo a seguir: "Por muito pouco que se conheçam os sentimentos ou modo de pensar de tal homem ao entrar pela primeira vez numa vizinhança, esta verdade encontra-se de tal modo enraizada nos espíritos das famílias circundantes que ele é logo considerado como propriedade legítima desta ou daquela de suas filhas." A única maneira que as moças do período tinham de garantir um bom futuro era através do casamento, e não podemos culpá-las, pois o espaço das mulheres na sociedade era ínfimo e havia uma enorme quantidade de requisições para que uma moça de família fosse tida como um bom partido, como saber cozinhar, desenhar, cantar, tocar piano e, é claro, ter um belo dote. Podemos perceber, dentro da ironia da autora, discretas noções feministas imputadas nas entrelinhas da obra.
A mais amada obra de Austen é uma história memorável sobre a falta de veracidade das primeiras impressões, sobre o poder da razão e sobre a estranha dinâmica que envolve os relacionamentos humanos e as emoções. A leitura de "Pride and Prejudice" não deve ser feita da mesma maneira que se lê um romance contemporâneo insípido, mas prestando atenção na riqueza dos conceitos comportamentais e emocionais que existem até hoje, apesar de se apresentarem de uma outra maneira. Através de qualquer âmbito, no entanto, pode-se afirmar que o livro é espetacular.

Video-curiosidades:
Em 1940, surge a primeira adaptação cinematográfica do filme, estrelando Greer Garson e Laurence Olivier.
O filme "O Diário de Bridget Jones" é uma adaptação moderna, estrelando Renne Zellweger como Elizabeth e Colin Firth como Mr. Darcy.
Finalmente, em 2005, sobre a direção de Joe Wright e com a indicada ao Oscar Keyra Knightley, como Elizabeth e Matthew Macfaydyen, como Mr. Darcy, uma adaptação pela qual eu tenho um carinho especial.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

"Pollyanna Moça", Eleanor H. Porter

O livro "Pollyanna", escrito por Eleanor H. Porter, é um clássico da literatura infanto-juvenil, publicado em 1913. A primeira das diversas sequências da obra é "Pollyanna Moça", escrita em 1915.
Pollyanna Whittier, nossa protagonista, é uma jovem órfã que vai viver com a tia em Beldingsville no primeiro livro. Com a sua mágica maneira de ver e viver a vida, ela abre sorrisos e traz a felicidade para a pequena cidade onde vai morar.
Após ter transformado a vida de todos na cidadezinha, as virtudes e benevolência de Pollyanna, bem como sua capacidade de levar alegria por onde passa, fazem com que ela receba um convite para passar o verão com Mrs. Carrew, uma senhora viúva, que sofre pelo desaparecimento de seu querido sobrinho, Jamie. Mrs. Carrew é uma senhora amarga, que Pollyanna tem dificuldade de conquistar e a cidade grande onde ela mora é cheia de pessoas frias, que não sorriem e não se comprimentam ao passar uns pelos outros na rua, como nota Pollyanna. Isso faz com que a menina comece a se sentir muito mal por não conseguir fazer amigos. Até que ela conhece, em um parque da cidade, um garoto deficiente físico chamado Jamie, que se torna mais um de seus grandes amigos. Ele é muito pobre e tem condições de vida muito precárias, ao passo que Mrs. Carrew é extremamente rica, cheia de posses. Além disso, Jamie poderia ter a mesma idade do sobrinho desaparecido de Mrs. Carrew. É o suficiente para Pollyanna, que, apesar de não conseguir fazer Mrs. Carrew acreditar completamente que aquele seria seu verdadeiro Jamie, consegue fazer com que ela o ame como tal. Assim, Pollyanna consegue transformar mais vidas e fazer mais sorrisos.
Anos depois, com Pollyanna já crescida, o marido de sua tia falece e a família se vê em uma situação financeira bastante desgradável. No entanto, aos poucos essa situação vai sendo amenizada com a ajuda dos amigos feitos e os corações que a menina alegrou durante a vida.
O encanto de ambos os livros, no entanto, não está em sua história, nem nas características de seus personagens, mas na lição de otimismo e esperança que nossa protagonista transmite com seu "jogo do contente", a verdadeira mágica de Pollyanna. A seguir, um trecho do livro, onde a irmã de Mrs. Carrew explica a ela o que seria o jogo do contente de Pollyanna:

"[...] Parece que ela era órfã de mãe e filha de um pastor pobre do Oeste, criada pela Sociedade das Senhoras Auxiliadoras com doações de Missionários, vindas em barris. Quando era uma menininha, quis uma boneca, e tinha confiança que ela viesse no próximo barril de doações; acontece que nada veio, a não ser um par de muletas. Claro, ela começou a chorar, e foi então que o pai lhe ensinou um jogo para descobrir algo de bom em todas as coisas que aconteciam. Ele disse a ela que podia começar ficando muito contente por não precisar das muletas. Esse foi o início. Pollyanna disse que era um jogo adorável, que vinha jogando desde então; e que quanto mais difícil fosse encontrar um motivo para ficar alegre, mais divertido era, a não ser quando parecia impossível, como às vezes acontecia."

A filosofia de Pollyanna não é apenas absolutamente linda, como é também recomendável, afinal, por mais difícil que a vida e as situações que ela impõe possam parecer, nada deve acabar com nossa alegria de viver. Há quem diga que o jogo é coisa para bobos, enquanto isso, eu gostaria de ter a sabedoria e a nobreza de espírito suficientes para conseguir jogá-lo sempre. Devemos tentar, ao máximo, fazer de nossos momentos tristes apenas momentos e não transformá-los em amargura, ódio ou rancor, porque esses sentimentos são terrivelmente desastrosos não apenas para os que estão perto de nós, mas, principalmente, para nós mesmos. Adotar a filosofia de Pollyanna não é se contentar com o que se tem e parar de lutar, de planejar, mas sim não se deixar esmorecer permanentemente com as perdas e os obstáculos. A menina nos ensina a ir em frente e que a vida só vale a pena se tivermos com quem dividí-la, porque o amor e a amizade são nossos bens mais preciosos; sem eles não somos nada.
Crianças, jovens, adultos, idosos, todos merecem uma "dose" de Pollyanna. É por isso que os livros são recomendáveis para todas as idades e todas as histórias de vida. Infelizmente, nunca tive a oportunidade de ler o primeiro livro, mas verdadeiramente acredito que "Pollyanna" seja um romance capaz de superar todas as expectativas.

Video-curiosidades:

Não existe adaptação cinematográfica ou televisiva para o livro "Pollyanna Moça".

Em 1920, o cinema mudo trouxe, com a direção de Paul Powell, uma clássica adaptação do livro "Pollyanna" de Eleanor H. Porter.
Em 1960, foi lançado, na direção de David Swift, o filme "Pollyanna", com o qual tive contato e posso afirmar que parar para ver esse filme é um ganho de tempo.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

"O Mundo de Sofia", Jostein Gaarder

"Querida Hilde,Se o cerébro humano fosse tão simples ao ponto de podermos entendê-lo, nós seríamos tão idiotas que não conseguiríamos entendê-lo.     Um abraço,                                                                                               Papai"O Mundo de Sofia - Jostein Gaarder


Editado pela primeira vez em 1991, “O Mundo de Sofia” (cujo título original é Sofies verden), de Jostein Gaarder, não é apenas um livro sobre filosofia, nem tampouco um mero romance fictício. É um inteligentíssimo artifício utilizado pelo apaixonado autor para encantar o público leigo com relação à filosofia.
O Mundo de Sofia faz um paralelo entre a história de Sofia Amundsen, uma menina de 14 anos, que vive na Noruega no ano de 1990, e a história da busca da humanidade pela sabedoria (sophia, em grego). O próprio título da obra é, portanto, uma metáfora, que enfatiza sua duplicidade.
Próximo a seu aniversário de 15 anos, a garota começa a receber cartões postais, vindos do Líbano, de um major misterioso para uma tal de Hilde Muller. Concomitantemente, um filósofo desconhecido começa a lhe mandar um curso de filosofia pelo correio. Cada momento da vida de Sofia, a partir de então, se entrelaça com os conhecimentos adquiridos no curso de uma maneira criativa e instigante. Sofia começa a questionar o mundo em que vive e descobre, por fim, que tudo que está a sua volta nada mais é que um fruto da imaginação do mesmo homem que lhe manda cartões postais, impressa em um livro que este escreveu para dar de presente a filha dele no aniversário de 15 anos dela.
O best-seller, que foi traduzido para mais de 40 idiomas, atravessa a história da filosofia desde os filósofos naturalistas, passando por grandes nomes como Sócrates, Descartes e Freud, até os filósofos contemporâneos. Porém, o que mais me encantou na obra foi a capacidade do autor de conseguir apresentar as respostas que cada filósofo encontrou para os mistérios da vida e, ao mesmo tempo, dar margem para o leitor construir sua  própria linha de pensamento. O livro nos faz "sair da proteção dos pêlos do coelho" e nos mostra a importância dos questionamentos filosóficos nas nossas vidas e na evolução de toda a ciência. Perguntas simples como "quem somos", "de onde viemos" e "existe verdadeiramente um Deus" tomam conotações completamente diferentes através da visão do autor e dos filósofos de outrora. O fascínio da obra, no entanto, está no fato de que ela não nos dá as respostas, mas nos incita a fazer as perguntas, para, assim, chegarmos a nossas próprias conclusões ou, pelo menos, iniciar o processo de questionamento sobre a vida, o mundo e a natureza.
"Penso, logo existo", disse Descartes. Precisamos, portanto, aprender a pensar filosoficamente e analisar as coisas que estão a nossa volta e dentro de nós para, assim, concretizar nossa existência como indivíduos singulares, naturais e como cidadãos. Ou seja, só seremos seres reais para nós mesmos, para o meio em que vivemos e para as pessoas com quem convivemos quando sairmos da alienação do cotidiano e começarmos a tentar desvendar nossa existência, através de questionamentos que poderão ou não nos dar as respostas que almejamos. O livro nos ajuda a fugir da ignorância rotineira e perceber que há algo muito maior acima, em meio e dentro de nós, que só precisamos prestar um pouco mais de atenção para conseguir enxergar.
Finalizadas as divagações, espero ter conseguido apresentar a tamanha riqueza e beleza do livro, que vai muito além da própria literatura. Para os leigos em filosofia, como eu, é o livro ideal para compreender um pouco melhor a história da humanidade, que é a nossa própria história, e a busca pela sabedoria. Apesar de ser um pouco longo e, por vezes, cansativo, acredito que essa leitura é um ganho não apenas literário, mas principalmente humano, afinal:

"Quem, de três milênios, não é capaz de se dar conta, vive na ignorância, na sombra, à mercê dos dias, do tempo"Johaan Goethe


Video-curiosidades:

Em 1999, o livro foi adaptado para um filme norueguês que não foi, porém, muito divulgado para além da Noruega.
Na Austrália, a obra foi apresentada em uma minissérie.

terça-feira, 18 de maio de 2010

"A Megera Domada", William Shakespeare

"A Megera Domada", cujo título original é "The Taming of the Shrew", é uma comédia de costumes escrita por William Shakespeare entre 1593 e 1594. A peça nasceu de uma adaptação feita pelo autor de antigos contos de tradição oral.
É a história de Catarina, a indomável filha mais velha do senhor Batista, que, aparentemente, não se deixa subjugar por homem nenhum. O pai, que possui também a doce Bianca como filha, impõe, então, que a caçula só se case depois de sua irmã. Assim, inicia-se o tormento dos inúmeros pretendentes de Bianca, que arquitetam um plano para fazer a "brusca, irritada e voluntariosa" Catarina casar-se e encontram como pretendente Petruchio, um fidalgo de Verona, que tudo que busca é um bom dote. A brutalidade de Petruchio em meio à polidez dos cavalheiros pretendentes de Bianca faz parte da satirização da sociedade dada pelo autor.
O casamento acontece, aparentemente, sem a permissão da moça e, após um árduo tratamento psicológico, Petruchio finalmente consegue "domar" a megera Catarina, que finaliza com um discurso, que possui o seguinte trecho:

 "[...] O mesmo dever que prende o servo ao soberano prende, ao marido, a mulher. E quando ela é teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não obedecendo às suas ordens justas, que é então senão rebelde, infame, uma traidora que não merece as graças de seu amo e amante? Tenho vergonha de ver mulheres tão ingênuas que pensam em fazer guerra quando deviam ajoelhar e pedir paz. Ou procurando poder, supremacia e força quando deviam amar, servir, obedecer. Por que razão o nosso corpo é liso, macio, delicado, não preparado para a fadiga e a confusão do mundo, senão para que o nosso coração e o nosso espírito tenham delicadeza igual ao exterior? Vamos, vamos, vermes teimosos e impotentes. Também já tive um gênio tão difícil, um coração pior. E mais razão, talvez, pra revidar palavra por palavra, ofensa por ofensa. Vejo agora, porém, que nossas lanças são de palha. Nossa força é fraqueza, nossa fraqueza, sem remédio. E quanto mais queremos ser, menos nós somos. Assim, compreendido o inútil desse orgulho, devemos colocar as mãos, humildemente, sob os pés do senhor. Para esse dever, quando meu esposo quiser, a minha mão está pronta, se isso causar-lhe prazer."

Como é próprio da comédia de costumes, a peça satiriza as tradições e as situações rotineiras daquele contexto social, proporcionando uma análise dos costumes e comportamentos humanos. São exemplos de códigos sociais da época: o costume do primeiro casamento ser o da irmã mais velha, a necessidade de obter a permissão do pai antes de cortejar a filha e a submissão da mulher com relação a seu esposo. A obra tem como temas principais: o matrimônio, a guerra entre os sexos e as conquistas amorosas, como é típico dos teatros shakespeareanos. O que diferencia essa peça de outras, como "Sonho de uma Noite de Verão" (1595-1596) e "Muito Barulho por Nada" (1598-1599), é a dedicação de boa parte da obra à vida matrimonial, ou seja, às situações que sucedem a cerimônia do casamento.

A obra escrita por William Shakespeare me agradou muito de início, por seu caráter cômico e divertido. No entanto, a submissão de Catarina e o machismo de seu discurso final me decepcionaram, apesar de retratarem uma realidade, que, na época, era incontestável. Não obstante o caráter machista da obra, o autor foi audacioso ao demonstrar um outro ponto de vista, que, mais tarde, seria chamado de feminismo e ganharia um grande espaço na sociedade.
Apesar da decepção final, posso afirmar que "A Megera Domada" é uma bela e curta comédia de costumes, interessante para todos aqueles que gostem do teatro como estilo literário e apreciem uma escrita divertida, interessante e original, digna somente de Shakespeare.

Video-curiosidades:




Em 1967, ninguém menos que Elizabeth Taylor e Richard Burton deram vida à Catarina e Petruchio, em um filme de Franco Zefirelli.

Em 1999, Karen McCullah Lutz e Kirsten Smith tiveram a originalidade da obra de Shakespeare como base para a comédia romântica moderna "Ten things I hate about you" ("Dez coisas que eu odeio em você), um filme que eu, particularmente, adoro.

No Brasil, a história foi adaptada e transformada, por Walcyr Carrasco, na telenovela "O Cravo e a Rosa" (2000-2001), tendo os atores Adriana Esteves e Eduardo Moscovis, como a Catarina e o Petruchio brasileiros.

As adaptações tem uma maior capacidade de conquistar o público de hoje por se adequarem melhor à mentalidade da sociedade atual.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

"Helena", Machado de Assis

"Helena" é um romance urbano pacato que, não por sua história em si, mas por possuir um caráter muito semelhante aos das obras de José de Alencar (como "Cinco Minutos" e "A Viuvinha"), me intrigou bastante desde o início da leitura.
A história se inicia com a morte do Conselheiro Vale e, como consequencia de seu testamento, a entrada de Helena, filha do Conselheiro, na vida e na casa de Estácio e Dona Úrsula, irmão e tia de Helena, respectivamente. A trama se desenrola em volta de duas situações: a primeira é que Helena costuma, por motivos misteriosos, visitar uma casa, onde mora um homem desconhecido e a segunda é que, enquanto a trama se desenrola, os dois irmãos se apaixonam.
No final do livro, descobrimos, enfim, que o homem desconhecido é o verdadeiro pai de Helena, mas, ainda que ela e Estácio não sejam irmãos, o amor deles é impossível perante a sociedade, o que nos retrata levemente o caráter conservador de Machado de Assis. O desfecho do livro se dá com a morte de Helena, por vergonha e por amor, como é típico do romantismo.

Antes de "Helena", tive duas experiências com o autor: "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O que me intrigou no livro, portanto, foi não encontrar abertamente a crítica, ironia ou qualquer expressão de caráter realista que estavam em minhas expectativas, já que são próprias das outras obras que havia lido. Muitas vezes no decorrer da leitura, o romance exacerbado e a personalidade nobre de todos os personagens adquiriu, para mim, em vista do histórico que eu atribuía ao autor, uma aparência irônica, que logo nas próximas linhas se esfacelava. Aos poucos, eu pude perceber que aquela não se tratava de uma obra realista, mas sim própria do romantismo.
Na verdade, "Helena", escrita no ano de 1876, é uma obra atribuída à primeira fase da carreira de Machado de Assis e, bem como "Ressurreição" (1872), "A Mão e a Luva" (1874) e "Iaiá Garcia" (1878), possui um caráter romântico. A partir de 1881 inicia-se a segunda fase, onde é escrito o primeiro romance realista brasileiro: "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que, de tão realista, não adquiriu minha afinidade, confesso.
"Helena" é uma leitura leve e curta que indico para aqueles que apreciam o romantismo ou para os que procuram conhecer melhor a literatura brasileira.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Apresentação

Me sinto, no mínimo, audaciosa ao criar esse blog, onde não somente farei críticas amadoras sobre livros da literatura nacional e internacional, mas também reflexões a partir dos temas abordados nesses (na maioria das vezes, diversos). A ousadia está no fato de divagar sobre assuntos que não são de minha área de estudo e que já foram abordados e analisados por pessoas que tem mais “autoridade” que eu no quesito literatura. Assim, estando sujeita ao erro na palavra, farei grande esforço para dar minha opinião, sem fazer comentários e interpretações possivelmente errôneas sobre essa arte. Após expor minha imaturidade literária, espero que o leitor, amante da literatura, como eu, perdoe minhas possíveis falhas nas postagens futuras e até apresente uma opinião ou conhecimento divergente do meu para que, assim, possamos construir um alto nível de análise das obras e experiência no mundo da livros.