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sábado, 3 de maio de 2014

A irmã de Ana Bolena


"The other Boleyn girl", escrito em 2001 por Philippa Gregory, retrata a história do casamento de Anne Boleyn e o rei Henrique VIII (responsável pela separação das igrejas anglicana e católica) pelos olhos de Mary Boleyn. A irmã de Anne Boleyn, para alguns, não passa de uma ilustre desconhecida de relevância ínfima para o decorrer da história de uma maneira geral. A inserção da personagem, porém, é essencial para tornar realísticos os acontecimentos, aos olhos de quem não os presenciou. Com a entrada da irmã de Anne Boleyn, os personagens saem dos livros de história e ganham vida. 

Passada no século XVI, quando nossa história se inicia, o rei Henrique é casado com Catarina de Aragão, princesa da Espanha. As famílias nobres inglesas, como a Boleyn/Howard e a Seymour vislumbram nas moças da família uma possibilidade de atrair a atenção do rei e adquirir privilégios. Neste contexto, Mary Boleyn, nossa narradora, é designada pelo tio e pais para atrair a atenção do rei e virar sua amante. Com seu temperamento obediente, dócil e abnegado, ela o faz sem questionamentos. Enquanto isso, sua irmã Anne Boleyn, de temperamento explosivo e determinado, casa-se escondido com um nobre e consuma o casamento. Ambas as famílias, dele e dela, rejeitam o matrimônio e ela é afastada, voltando à França, onde havia sido criada. Quando seu "exílio" acaba e ela retorna à Inglaterra, sua irmã está grávida do rei e ela aproveita a situação para conquistar Henrique, mas sem ceder da maneira como Mary havia feito, deixando o rei cada vez mais interessado. A rivalidade entre as irmãs é uma constante no livro. Aos poucos, Anne Boleyn convence o rei de que ela é a esposa certa para ele, tendo em vista que Catarina não tinha lhe dado nenhum filho homem, e que ele tinha a possibilidade de anular seu casamento com a rainha. Mal sabia ela que mostrar ao rei a extensão de seus poderes seria sua maior ruína. Assim, o rei se divorcia de maneira dramática de Catarina de Aragão e casa-se com Anne Boleyn, uma rainha que é rejeitada pelo povo desde o primeiro momento. 
O que Anne não esperava era que não conseguiria dar ao rei um filho homem, coisa que sua irmã, Mary, havia conseguido, ainda como amante do rei. O casamento, então, é marcado pela constante agonia de Anne e diversas tentativas quase macabras e, no mínimo, anti-éticas, de engravidar. Diante de diversos atos indevidos, incluindo a suposição do envenenamento da antiga rainha Catarina, ela acaba sendo julgada em tribunal, acusada e tem sua cabeça decepada por ordem do rei, que perde o interesse e começa a visar Jane Seymour, sua próxima esposa, que consegue encantá-lo quase que com o mesmo jogo de sedução de Catarina.
No livro, o rei Henrique é retratado como um rei inicialmente carismático, jovem, e de certa beleza peculiar, mas também altamente influenciável. Um rei com ares de bobo da corte, uma vez que as famílias parecem jogá-lo de um lado a outro, cegando-o com o encanto de suas jovens. No entanto, ensinado por Anne Boleyn que seu poder estava acima até da igreja católica, ele é apresentado quase que como um rei louco ao, pela segunda vez, conseguir desvencilhar-se de um casamento.
A rivalidade constante entre as duas irmãs é um dos aspectos mais importantes do livro. Anne possui uma personalidade determinada, explosiva e extremamente egoísta. Ela deseja ser o centro do mundo e o é, enquanto vive. Enquanto Mary  possui uma personalidade dócil, passiva, abnegada, mas nem por isso para de sentir inveja da irmã, que sente prazer em esfregar seus triunfos em sua cara. No entanto, a meiguice e altruísmo de Mary acabam por ser sua salvação. Por causa da afeição que o rei sente por sua personalidade oposta à de Anne , ela não é condenada com a mesma, ainda que tenha participado de alguns dos eventos ardilosos da rainha.
"'Diga a Anne', eu parei. Era muito a dizer em uma só mensagem. Eram longos anos de rivalidade e união forçada, sempre e eternamente, sustentando nosso amor uma pela outra, nosso sentimento de que a outra tinha de ser derrotada. Como eu poderia enviá-la uma palavra que significaria tudo isso, e ainda dizer que eu a amo, que eu era feliz por ter sido sua irmã, mesmo sabendo que ela havia se levado a esse ponto e George também? Que, mesmo que eu nunca a perdoasse pelo que ela havia feito com todos nós, eu total e completamente compreendia?"
George é o primogênito da casa dos Howard e até agora não havia sido comentado nesse texto, apesar de ter uma participação crucial principalmente no que diz respeito à condenação da irmã. Sua presença nos momentos de Anne e Mary é constante. Ele tem por elas uma grande afeição e a demonstra de maneira a beirar o incesto. Ao mesmo tempo, é apaixonado pelo nobre Francis, enquanto rejeita sua esposa Jane, que posteriormente auxilia na condenação dos Howard. Com suas tendências homossexuais e incestuosas, é um personagem um pouco enigmático. Seu relacionamento, principalmente com Anne , é tão forte que ele é acusado de ter um caso com ela. O livro não afirma nem rejeita essa suposição, embora impute vários acontecimentos que afirmam a hipótese. Mas, em todo caso, de todas as personagens, George parece ser o único que Anne realmente ama.
Finalmente, a família Howard ou Boleyn, agora referindo-se aos cabeças de todas as equações, é composta de personalidades extremamente reprováveis. Em primeiro lugar, o tio, que usa as sobrinhas enquanto lhe são úteis e as abandona completamente quando acusadas para se beneficiar. Depois os pais, ambos covardes. Embora ressentida com a situação, a mãe não faz absolutamente nada para ajudar os filhos, enquanto que o pai ri pelo fato de ter de escolher entre se prejudicar ao estender a mão para auxiliá-los ou permanecer quieto para não ser também colocado em xeque. A decisão é óbvia.
Por fim, no entanto, Anne Boleyn, como pintada pela autora, parecia mesmo merecer um fim trágico, embora a morte tenha sido exagero. Sempre egoísta, capaz de qualquer coisa em benefício próprio, por diversas vezes prejudicando a irmã, com quem criamos um vínculo especial, só para sentir o gosto do poder, Anne tem um comportamento vil e quase psicopático. Anne rouba Henrique de Mary e a provoca por isso; toma o filho da irmã sem sua permissão; trata ambos os irmãos como escravos; possivelmente envenena o bispo Fisher e seus hóspedes, bem como o cardeal Wolsey, a princesa Mary e Catarina de Aragão; ela é vingativa quando Mary anuncia seu casamento com o desconhecido Will Stafford e sua gravidez, dizendo que contará a seu filho que a mãe dele está morta; e ela amaldiçoa Jane Seymour, dizendo: "Se ela colocar a mão em minha coroa e sentar no meu trono, eu espero que seja sua morte. Espero que ela morra jovem. Espero que ela morra no parto, no exato momento de dar a ele um menino. E espero que o menino morra também.".
Os livros de Philippa Gregory são, em geral, baseados em intensa pesquisa histórica, mas apresentam também uma boa pitada de criatividade, por isso são muitas vezes condenados por historiadores de renome. Particularmente e analisando somente o aspecto literário, não condeno. Ela traz, em uma linguagem simples e interessante, diversos eventos e personagens, com a dose certa de veracidade, para que o leitor não ignore fatos relevantes da história inglesa. A autora parece ter um interesse especial na dinastia Tudor, que dominou a Inglaterra entre os séculos XV e XVI, embora apresente as histórias de uma perspectiva diferente das dos livros anteriormente escritos sobre o assunto. De qualquer forma, é importante não considerar seus livros para pesquisas de fatos verídicos, pois a discussão sobre em que ponto acaba a história e inicia a imaginação da autora é extensa e, no fim das contas, a maioria das coisas não pode ser afirmada ou rejeitada, tendo em vista que adentram detalhes da vida em corte que não estão em nenhum livro de história, mas que são interessantíssimos de se imaginar.

Videocuriosidades:

Em 2008, dirigido por Justin Chadwick, a obra ganhou vida com Natalie Portman como Anne, Scarlett Johansson como Mary e Eric Bana como o rei Henrique no filme "A Outra". Embora muito bom, se o livro diverge da realidade, o filme diverge da história em diversos aspectos. Mas a própria Philippa Gregory ajudou no roteiro do filme, então vale a pena aproveitar ambos livro e filme, considerando a liberdade artística de adaptação.