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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Northanger Abbey", Jane Austen



"Northanger Abbey" é uma das primeiras e mais variadas obras de Jane Austen, que contém percepções fascinantes, tanto de sua vida como escritora, quanto como autora. A obra começou a ser escrita  por volta de 1798, quando romances góticos eram abundantes e Austen possuía 23 anos. No entanto, quando a obra foi finalmente publicada, em 1818, ela já havia falecido e muita coisa havia mudado no contexto literário. Nesse mesmo ano, o livro pós-gótico de Mary Shelley, "Frankenstein", foi também publicado. Estava claro que os dias de glória de doces heroínas e castelos medievais haviam acabado. Dessa forma, o livro habita em um lugar estranho perante os trabalhos de Austen (como os já aqui analisados "Mansfield Park", "Emma", "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade"), uma vez que ocupa a posição de primeiro ou último trabalho, dependendo do ponto de vista. Mas o aspecto que, talvez, mais diferencia esse trabalho dos outros é seu toque de jovialidade.
Pode-se dizer que Austen fez algumas revisões na sua obra original, mas é impossível saber quantas. Se seu desempenho técnico em termos de escrita e seus "insights" no mundo de uma mente inocente e imaginativa são fruto da jovem Austen, ou se foram manipulados pelas revisões de uma autora madura é, assim, um mistério.
Muitos julgam que a obra não é tão satisfatória quanto os outros escritos da autora. Ela se estabelece como uma adolescente precoce e ligeiramente desalinhada ao lado da elegante "Emma"  ou da conceituada "Mansfield Park", mas, ainda assim, é mais desenvolvida que suas histórias anteriores. No entanto, o leitor que toma a decisão de dar uma chande a "Northanger Abbey" encontrará muito não somente a se admirar, como também a se apreciar nas descobertas de sua protagonista
"Northanger Abbey" ou "A Abadia de Northanger" é a história de Catherine Morland, uma garota entusiasta, porém inocente, que pretende tornar-se uma heroína como a dos romances que tanto lhe agradam. Em busca de aventuras dignas de seus livros de ficção preferidos, ela acaba por se colocar num emaranhado de manipulações, ganâncias e deslealdades, típicas da vida real. Catherine demonstra uma grande dificuldade em discernir em quem e em o que deve confiar em um mundo onde amigos desapontam, livros distorcem, a mente se corrompe e aqueles que deveriam mantê-la no caminho certo estão mais interessados nos vestidos da moda.
Catherine cresce numa família bem estruturada que possui bens suficientes para ter uma boa qualidade de vida. É uma garota comum e demasiadamente inocente que ama romances e detesta livros de história. Um belo dia, a Sra. Allen, vizinha da família, parte de férias para a animada e jovial cidade de Bath e pede à família de Catherine para levá-la. Assim, a menina parte para um mundo bem diferente de sua vida pacata e bucólica no campo. Por sua falta de experiência com outras sociedades, ela sente dificuldade de ser natural e perceber a inaturalidade das pessoas em sua volta. Em um dos bailes rotineiros ao qual ela vai, conhece Isabella Thorpe, uma bela garota da cidade que se torna sua melhor amiga em questão de segundos. A família Thorpe é um pouco menos abastada que os Morland, mas procura, com vestimentas e relações pessoais, manter os ares de "alta sociedade". Mas essa "amizade" tão rapidamente criada não é em vão. O irmão de Catherine e o de Isabella estudam juntos e são muito amigos, de maneira que Isabella havia conhecido o irmão de Catherine e, aparentemente, se apaixonado por ele. Ela então dá sinais constantes dessa paixão à nossa heroína, que, por falta de experiência em ler nas entrelinhas, não é capaz de perceber as insinuações. Até que um dia, Isabella anuncia a Catherine que está noiva do irmão dela e esta, por sua vez, fica imensamente feliz. Em meio a isso tudo, enquanto cortejada pelo irmão de Isabella, Catherine conhece Henry Tilney e se apaixona por ele. Algumas semanas depois, é também apresentada à irmã dele, Eleanor, e com ela constrói uma amizade verdadeira. General Tilney, o pai de Eleanor e Henry, é também apresentado a Catherine  pelo irmão de Isabella, que, buscando manter seu status social, induz o general a pensar que os Morlands são extremamente ricos e poderosos. Ele, então, decide juntar a menina a seu filho, Henry, e a convida para passar uns dias com Eleanor em sua casa. Lá, Catherine recebe uma carta de seu irmão, dizendo que seu casamento com Isabella estava acabado, pois ela o havia desprezado, pensando que tinha encontrado partido melhor. Catherine fica arrasada por não ter percebido antes as más intenções de sua falsa amiga, que havia dado sinais de seus interesses financeiros, quando achou o pai de Catherine pouco generoso com a quantia que escolheu oferecer em razão do casamento. Enquanto isso, o general descobre que os Morlands não são tão ricos quanto ele pensava e praticamente expulsa Catherine de sua casa de um dia para o outro. Envergonhado pela atitude de seu pai e após ter criado certa aproximação com nossa protagonista, Henry decide ir atrás dela e pede sua mão em casamento, com a permissão de seu pai de "ser um tolo se assim ele quisesse".
A primeira parte do livro não é diferente das outras famosas obras. Testemunhamos as famílias educadas, onde cada rapaz parece em busca de uma bela companhia e cada moça procura uma parceira de confidências. Há também a típica personagem de Austin, desta vez nomeada Sra. Allen: uma bem-intencionada tola da sociedade que não tem nada a acrescentar, a não ser seus recorrentes comentários simplórios e fúteis.
Apesar da grande vontade de Catherine de se tornar uma protagonista, somos relembrados a todo momento o quão banal é nossa heroína. Ela cresce uma criança que passa de feia para não tão feia assim, e se dá por satisfeita com isso. Não possui nenhum talento nato, como desenho ou canto, e se vê em inúmeras situações embaraçosas, nas quais uma heroína de verdade jamais se colocaria.
Se deixar enganar pela falsa amabilidade de Isabella é de uma ingenuidade sem tamanho. A Isabella egocêntrica e estúpida, cujos comentários exalam ostentação e interesse próprio, é percebida pelo leitor atento desde o primeiro momento em que é apresentada. Ela é um dos personagens do romance cujos discursos nunca conseguem encobrir seu verdadeiro significado, junto a seu irmão, John e à Sra. Allen. Mas resumir os instintos de Catherine pelo seu relacionamento com Isabella é injusto. Catherine é exposta a muito mais emoções que outras heroínas de Austen, ainda que sejam emoções criadas por sua própria imaginação. Ela vive em busca de significado para sua vida e esse impulso constante acaba desnorteando-a. Assim que ela se depara com Henry, por exemplo, o vê como um possível romance e ele passa a ser seu assunto constante. A princípio, podemos achar essa constatação ridícula, mas seus instintos se provam astutos, tanto nesse caso, como na primeira impressão que ela tem do general Tilney. Henry é exatamente o que aparenta ser e Catherine não é uma má juíza de caráter. Ela não consegue aguentar John Thorpe, com sua vaidade e ambição cansativas, desde o primeiro momento. É realmente no caso de Isabella que ela se equivoca, o que se mostra um sério descuido, pois Isabella explora a inocência de Catherine em benefício próprio. A lição de Austen é, talvez, que uma mente aguçada, porém acrítica, pode ser mais perigosa que mente nenhuma.
Mas o mais marcante traço de Catherine é sua inabilidade em ler as atitudes de outras pessoas: ela não percebe o relacionamento de Isabella com o irmão mais velho de Henry, James; permite, acidentalmente, que John Thorpe se apaixone por ela; e se deixa amedrontar pelas histórias escabrosas de Henry sobre a abadia. Ela é o tipo de pessoa que quer acreditar em tudo que lhe pareça fascinante e fora do comum. No entanto, o que importa realmente não é quem você é hoje, mas o que você pode se tornar através das experiências que tem. O problema é que é impossível acreditar que a família Thorpe pode se tornar alguma coisa que não seja pior.
Mas talvez um dos aspectos mais interessantes do livro é o marketing, negativo em sua sátira, que ele faz de outro livro. O romance gótico "Os mistérios de Udolpho", escrito pot Ann Radcliff e publicado em 1974, é tão referenciado no livro que quase torna-se um personagem e, como qualquer coisa que se leve demasiado a sério aos olhos de Austen, é ridicularizado. Muitos críticos chegaram à conclusão que o romance de Austen, com sua fama, manteve Udolpho vivo, quando ele deveria ter desaparecido sem deixar traços. Uma coisa é certa: os dois livros são indivisíveis.



Com os comentários autodepreciativos do narrador, a autora encoraja o leitor a ver Northanger Abbey como um romance imperfeito com uma heroína insatisfatória. Sobretudo, é importante perceber que o objetivo da obra não é ser levada a sério, mas satirizar outros autores e membros da sociedade. Este é um livro que fala de livros, escrito por uma amante da ficção, por isso uma certa humildade por parte dela foi inevitável. O romance, porém, pode ser visto pelos mais capciosos como mais que uma bela brincadeira: é o conto juvenil que antecedeu grandes sucessos, é um dos precursores da literatura pós-moderna. Austen apresenta mais que simplesmente sua antipatia trivial por Udolpho. Ela cria uma heroína amável exatamente por sua personalidade anti-heróica. Catherine reflete o inevitável problema que todos os que são leitores desde a infância (e me incluo neste grupo), ou simplesmente todos os jovens imaginativos, tiveram que enfrentar: desapegar-se da ficção e adentrar o mundo real, sujo e genuinamente sinistro da avareza adulta. Talvez Northanger Abbey busque educar seus leitores para que eles abandonem o sensacionalismo para conseguir desfrutar do realismo de romances mais maduros. Independente de seu propósito, a obra é divertida, ainda que absurda.

Vídeo-curiosidades:

Por não ter alcançado a fama de seus sucessores e apesar das muitas peças teatrais, só há duas adaptações cinematográficas da obra: em 1986, na direção de Giles Foster e em 2007, um filme de televisão, um filme de Jon Jones.

terça-feira, 29 de julho de 2014

"As Aventuras de Sherlock Holmes", Arthur Conan Doyle

Entre julho de 1891 e junho de 1892, The Strand Magazine publicou doze contos que viriam a se tornar a coleção de histórias de detetive mais influente de todos os tempos. Reunidos em outubro de 1892, as narrativas de sir Arthur Conan Doyle passaram a compor "As Aventuras de Sherlock Holmes" (The Adventures of Sherlock Holmes). De forma geral, o romance policial clássico, ao qual a obra pertence, se estrutura com a presença de um crime, da investigação e, ao final, da revelação do malfeitor. Por fornecer todos os elementos básicos de composição deste tipo de romance, a obra foi tomada como "modelo padrão" por outros escritores, que adaptavam a seu próprio estilo os fundamentos previamente estabelecidos. De Agatha Christie a Colin Dexter, de Raymond Chandler a J. K. Rowling, podemos perceber as influências penetrantes da obra no gênero, muitas vezes oculto por estar aliado ou ser complementar a outros. 
O livro é uma coleção de variados e fascinantes mistérios, que vão do bizarro ao emocionante, sempre recheado de hipérboles. Porém, no centro de todos os cenários, há dois personagens que deliberadamente atraem o expectador. Essa característica é o divisor de águas entre a obra de Doyle e livros de mistério previamente publicados: não somente o leitor é a traído pela natureza do caso investigado, mas também pelas ações de Holmes e Watson que são, individualmente, personagens interessnates.
Watson é o observador, o indivíduo comum, mas com paciência e tenacidade notáveis. Como narrador, possui tal maneira de colocar uma frase ou cenário que, de forma singular, chama a atenção do leitor.
Sherlock Holmes é a voz da razão. Doyle cria Holmes com a intenção evidente de fornecer à literatura um detetive que não chega a seus resultados por acaso, por sorte ou mesmo por descuido do criminoso. Sua pretensão é de que Holmes demonstre claramente os métodos pelos quais ele chegou à sua conclusão. No intuito de enfatizar esse objetivo, ou seja, demonstrar a abordagem científica de seu detetive, ele apresenta seu protagonista como um indivíduo impassível e insensível, mas não no sentido de cruel. Isso é firmemente estabelecido logo no primeiro conto da coleção, "Escândalo em Boêmia".
 "Ele era, na minha opinião, a mais perfeita e observadora máquina de raciocinar que o mundo já viu; como amante, porém, teria metido os pés pelas mãos. Nunca falou das paixões mais ternas senão com certa zombaria e um sorriso de desdém. Esses sentimentos eram admiráveis para o observador - excelentes para revelar os motivos e as ações dos homens. Para o homem de raciocínio treinado, porém, admitir tais interferências em seu temperamento sensível, sutilmente equilibrado, era introduzir um fator de perturbação capaz de abalar todos os seus julgamentos. Areia num instrumento sensível, ou uma rachadura em suas potentes lupas, não causaria mais estorvo que uma emoção forte numa natureza como a sua."
No entanto, como personagem, Holmes é um misto de contradições. Apesar de zombar da ideia do amor romântico, ele não é um ser sem paixões. Em "Um caso de identidade", por exemplo, sua ira pela forma como Windinbank tratava sua enteada faz seu rosto enrubescer e ele quase dá umas boas chicotadas no homem. Essas inconsistências com a natureza de um homem racionalmente frio e imparcial elevam a fascinação do leitor.
Outro aspecto interessante desta coleção que ajuda a ilustrar algumas das qualidades únicas que o autor trouxe a suas histórias, é que, mesmo demonstrando suas brilhantes habilidades de detetive nas tramas, Holmes é despistado por uma mulher em "Escândalo em Boêmia", e falha ao tentar evitar a morte de seu cliente em "As Cinco Sementes de Laranja". Essa falibilidade humana e o elemento da imprevisibilidade do enredo ajudam essas histótias a saírem da rotina e as tornam mais excitantes. Outra característica que amplia a popularidade da obra é sua natureza incomum e, por vezes, excêntrica. Quase todos os mistérios, uma vez que nem todos eles são crimes, possuem um elemento surreal: o homem de negócios que, aparentemente, desaparece no ar ("O Homem da Boca Torta"); a mulher moribunda que, em seu último suspiro, faz uma estranha referência à faixa malhada ("A Aventura da Faixa Malhada"); a misteriosa ameaça de morte representada por algumas sementes de laranja ("As Cinco Sementes de Laranja"); e a governanta que foi obrigada a sentar em uma determinada cadeira, enquanto seu patrão lhe contava histórias engraçadas para fazê-la rir ("As faias cor-de-cobre").
No entanto, é necessário saber que muitos críticos dos contos sobre Holmes acreditam que a verdadeira genialidade vem da personalidade de Watson. É através de seus olhos que observamos os eventos e é através de suas palavras que construímos uma imagem detalhada do excêntrico e carismático Sherlock Holmes. Watson não somente faz seu amigo ficar interessante, mas também, de maneira hábil, apesar de seu comportamento antissocial e hábitos estranhos, o faz encantador.

"Enquanto isso, Holmes, que detestava toda forma de sociedade, com sua alma inteiramente boêmia, continuava lá, em nossos aposentos em Baker Street, enterrado entre seus livros antigos, e alternando, semana a semana, a cocaína com a ambição, o torpor da droga com a energia impetuosa de sua personalidade intensa. Continuava, como sempre, profundamente atraído pelo estudo do crime e dedicava suas portentosas faculdades e seus extraordinários poderes de observação a seguir pistas e desvendar mistérios abandonados como insolúveis pela polícia oficial. [...] Seus aposentos estavam iluminados, e, ao olhar para cima, cheguei a ver sua figura alta, esguia, passar duas vezes numa silhueta escura contra a cortina. Ele andava de um lado para outro da sala, rápida e ansiosamente, a cabeça caída sobre o peito, as mãos cerradas às costas. Para mim, que conhecia todos os seus hábitos e suas disposições de ânimo, aquela atitude e maneira falavam por si mesmas. Ele voltara a trabalhar. Despertara de seus sonhos induzidos pela droga e farejava algum problema novo."
Quem, ao ouvir tal descrição, não gostaria de conhecer esse curioso indivíduo? E Watson, com seu maravilhoso jeito com as palavras, nos permite fazer exatamente isso.
Se Doyle sabia exatamente o que ele estava fazendo nesses primeiros contos, se ele tinha conhecimento de como estava manipulando o formato de histórias de detetive para se adequar a seu conceito incomum e único ou se o processo surgiu naturalmente para ele, é difícil supor. Planejadamente ou por acidente, ele criou um personagem que era tão interessante quanto os mistérios que se dispunha a resolver. Na verdade, pode-se inclusive dizer que essas não eram histórias de detetive, mas sim histórias sobre um detetive. E, ainda se a trama for fraca, ainda temos a compensação de ler sobre Holmes.
Afirmar que "As Aventuras de Sherlock Holmes" é a maior coleção de pequenas histórias que realçam um detetive é uma reivindicação irrefutável. Arthur Conan Doyle é o escritor mágico que, fazendo de sua pena uma varinha de condão, evoca o meio real vitoriano como plano de fundo para paisagens e personagens fantásticos, em cujo centro está Sherlock Holmes, que ultrapassou a fama de seu criador para tornar-se um dos maiores ícones da cultura popular.

Videocuriosidades:

São muitas as adaptações, séries, peças, filmes, sem contar as histórias e personagens inspirados na obra.  O Guiness book listou Holmes como o personagem mais retratado de todos os tempos, com mais de 70 atores atuando como tal em quase 200 filmes. Além disso, o acervo virtual existente sobre Holmes e suas histórias é muito extenso e inclui até museus online. 
A primeira adaptação, realizada em cinema mudo em 1900, foi Sherlock Holmes Baffled, dirigido por Arthur Marvin.
O primeiro filme com som foi realizado em 1929, estrelando Clive Brook em "O retorno de Sherlock Holmes".
Entre 1939 e 1946, Basil Rathbourne, junto a Nigel Bruce como Watson, atuou em 14 filmes da Universal Pictures.
Em 2009, Robert Downey Jr. estrelou como Holmes no filme de Guy Ritchie.
Duas séries atuais, Sherlock de Steven Moffat e Elementary, com Jonny Lee Miller como Holmes, apresentam novamente o tão retratado Sherlock.

sábado, 3 de maio de 2014

A irmã de Ana Bolena


"The other Boleyn girl", escrito em 2001 por Philippa Gregory, retrata a história do casamento de Anne Boleyn e o rei Henrique VIII (responsável pela separação das igrejas anglicana e católica) pelos olhos de Mary Boleyn. A irmã de Anne Boleyn, para alguns, não passa de uma ilustre desconhecida de relevância ínfima para o decorrer da história de uma maneira geral. A inserção da personagem, porém, é essencial para tornar realísticos os acontecimentos, aos olhos de quem não os presenciou. Com a entrada da irmã de Anne Boleyn, os personagens saem dos livros de história e ganham vida. 

Passada no século XVI, quando nossa história se inicia, o rei Henrique é casado com Catarina de Aragão, princesa da Espanha. As famílias nobres inglesas, como a Boleyn/Howard e a Seymour vislumbram nas moças da família uma possibilidade de atrair a atenção do rei e adquirir privilégios. Neste contexto, Mary Boleyn, nossa narradora, é designada pelo tio e pais para atrair a atenção do rei e virar sua amante. Com seu temperamento obediente, dócil e abnegado, ela o faz sem questionamentos. Enquanto isso, sua irmã Anne Boleyn, de temperamento explosivo e determinado, casa-se escondido com um nobre e consuma o casamento. Ambas as famílias, dele e dela, rejeitam o matrimônio e ela é afastada, voltando à França, onde havia sido criada. Quando seu "exílio" acaba e ela retorna à Inglaterra, sua irmã está grávida do rei e ela aproveita a situação para conquistar Henrique, mas sem ceder da maneira como Mary havia feito, deixando o rei cada vez mais interessado. A rivalidade entre as irmãs é uma constante no livro. Aos poucos, Anne Boleyn convence o rei de que ela é a esposa certa para ele, tendo em vista que Catarina não tinha lhe dado nenhum filho homem, e que ele tinha a possibilidade de anular seu casamento com a rainha. Mal sabia ela que mostrar ao rei a extensão de seus poderes seria sua maior ruína. Assim, o rei se divorcia de maneira dramática de Catarina de Aragão e casa-se com Anne Boleyn, uma rainha que é rejeitada pelo povo desde o primeiro momento. 
O que Anne não esperava era que não conseguiria dar ao rei um filho homem, coisa que sua irmã, Mary, havia conseguido, ainda como amante do rei. O casamento, então, é marcado pela constante agonia de Anne e diversas tentativas quase macabras e, no mínimo, anti-éticas, de engravidar. Diante de diversos atos indevidos, incluindo a suposição do envenenamento da antiga rainha Catarina, ela acaba sendo julgada em tribunal, acusada e tem sua cabeça decepada por ordem do rei, que perde o interesse e começa a visar Jane Seymour, sua próxima esposa, que consegue encantá-lo quase que com o mesmo jogo de sedução de Catarina.
No livro, o rei Henrique é retratado como um rei inicialmente carismático, jovem, e de certa beleza peculiar, mas também altamente influenciável. Um rei com ares de bobo da corte, uma vez que as famílias parecem jogá-lo de um lado a outro, cegando-o com o encanto de suas jovens. No entanto, ensinado por Anne Boleyn que seu poder estava acima até da igreja católica, ele é apresentado quase que como um rei louco ao, pela segunda vez, conseguir desvencilhar-se de um casamento.
A rivalidade constante entre as duas irmãs é um dos aspectos mais importantes do livro. Anne possui uma personalidade determinada, explosiva e extremamente egoísta. Ela deseja ser o centro do mundo e o é, enquanto vive. Enquanto Mary  possui uma personalidade dócil, passiva, abnegada, mas nem por isso para de sentir inveja da irmã, que sente prazer em esfregar seus triunfos em sua cara. No entanto, a meiguice e altruísmo de Mary acabam por ser sua salvação. Por causa da afeição que o rei sente por sua personalidade oposta à de Anne , ela não é condenada com a mesma, ainda que tenha participado de alguns dos eventos ardilosos da rainha.
"'Diga a Anne', eu parei. Era muito a dizer em uma só mensagem. Eram longos anos de rivalidade e união forçada, sempre e eternamente, sustentando nosso amor uma pela outra, nosso sentimento de que a outra tinha de ser derrotada. Como eu poderia enviá-la uma palavra que significaria tudo isso, e ainda dizer que eu a amo, que eu era feliz por ter sido sua irmã, mesmo sabendo que ela havia se levado a esse ponto e George também? Que, mesmo que eu nunca a perdoasse pelo que ela havia feito com todos nós, eu total e completamente compreendia?"
George é o primogênito da casa dos Howard e até agora não havia sido comentado nesse texto, apesar de ter uma participação crucial principalmente no que diz respeito à condenação da irmã. Sua presença nos momentos de Anne e Mary é constante. Ele tem por elas uma grande afeição e a demonstra de maneira a beirar o incesto. Ao mesmo tempo, é apaixonado pelo nobre Francis, enquanto rejeita sua esposa Jane, que posteriormente auxilia na condenação dos Howard. Com suas tendências homossexuais e incestuosas, é um personagem um pouco enigmático. Seu relacionamento, principalmente com Anne , é tão forte que ele é acusado de ter um caso com ela. O livro não afirma nem rejeita essa suposição, embora impute vários acontecimentos que afirmam a hipótese. Mas, em todo caso, de todas as personagens, George parece ser o único que Anne realmente ama.
Finalmente, a família Howard ou Boleyn, agora referindo-se aos cabeças de todas as equações, é composta de personalidades extremamente reprováveis. Em primeiro lugar, o tio, que usa as sobrinhas enquanto lhe são úteis e as abandona completamente quando acusadas para se beneficiar. Depois os pais, ambos covardes. Embora ressentida com a situação, a mãe não faz absolutamente nada para ajudar os filhos, enquanto que o pai ri pelo fato de ter de escolher entre se prejudicar ao estender a mão para auxiliá-los ou permanecer quieto para não ser também colocado em xeque. A decisão é óbvia.
Por fim, no entanto, Anne Boleyn, como pintada pela autora, parecia mesmo merecer um fim trágico, embora a morte tenha sido exagero. Sempre egoísta, capaz de qualquer coisa em benefício próprio, por diversas vezes prejudicando a irmã, com quem criamos um vínculo especial, só para sentir o gosto do poder, Anne tem um comportamento vil e quase psicopático. Anne rouba Henrique de Mary e a provoca por isso; toma o filho da irmã sem sua permissão; trata ambos os irmãos como escravos; possivelmente envenena o bispo Fisher e seus hóspedes, bem como o cardeal Wolsey, a princesa Mary e Catarina de Aragão; ela é vingativa quando Mary anuncia seu casamento com o desconhecido Will Stafford e sua gravidez, dizendo que contará a seu filho que a mãe dele está morta; e ela amaldiçoa Jane Seymour, dizendo: "Se ela colocar a mão em minha coroa e sentar no meu trono, eu espero que seja sua morte. Espero que ela morra jovem. Espero que ela morra no parto, no exato momento de dar a ele um menino. E espero que o menino morra também.".
Os livros de Philippa Gregory são, em geral, baseados em intensa pesquisa histórica, mas apresentam também uma boa pitada de criatividade, por isso são muitas vezes condenados por historiadores de renome. Particularmente e analisando somente o aspecto literário, não condeno. Ela traz, em uma linguagem simples e interessante, diversos eventos e personagens, com a dose certa de veracidade, para que o leitor não ignore fatos relevantes da história inglesa. A autora parece ter um interesse especial na dinastia Tudor, que dominou a Inglaterra entre os séculos XV e XVI, embora apresente as histórias de uma perspectiva diferente das dos livros anteriormente escritos sobre o assunto. De qualquer forma, é importante não considerar seus livros para pesquisas de fatos verídicos, pois a discussão sobre em que ponto acaba a história e inicia a imaginação da autora é extensa e, no fim das contas, a maioria das coisas não pode ser afirmada ou rejeitada, tendo em vista que adentram detalhes da vida em corte que não estão em nenhum livro de história, mas que são interessantíssimos de se imaginar.

Videocuriosidades:

Em 2008, dirigido por Justin Chadwick, a obra ganhou vida com Natalie Portman como Anne, Scarlett Johansson como Mary e Eric Bana como o rei Henrique no filme "A Outra". Embora muito bom, se o livro diverge da realidade, o filme diverge da história em diversos aspectos. Mas a própria Philippa Gregory ajudou no roteiro do filme, então vale a pena aproveitar ambos livro e filme, considerando a liberdade artística de adaptação.