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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Mansfield Park", Jane Austen

Escrita entre 1811 e 1813, "Mansfield Park" foi a primeira novela nascida da maturidade de Jane Austen. O tempo deixou suas marcas: comparada a seus antecedentes, apresenta um contexto mais amplo e um propósito mais sério, buscando aprofundar-se na maneira como o mundo a sua volta funcionava e no fluxo de energia que impulsiona a atitude das pessoas. São vários os aspectos que classificam a obra como uma das mais sutis e perspicazes do século 19. Alguns críticos, inclusive, consideram-a como o primeiro romance moderno.
Fanny é filha da mais humilde das três irmãs, ou seja, daquela que conseguiu o "pior" casamento. Sua mãe, já cheia de filhos, resolve permitir que a menina more com sua tia "rica", com o apoio da terceira irmã, que, como vemos no decorrer do livro, pretende única e exclusivamente usar a menina como criada da família. Fanny cresce, então, rodeada de primos que a excluem de seus círculos por considerá-la inferior. Seu status financeiro não permite que ela se coloque em uma situação equivalente e ela acaba crescendo nos cantos da casa, obedecendo a ordens e aprendendo a abaixar a cabeça. Seu primo Edward é o único que se preocupa com ela e lhe dá atenção. Como era de se esperar, aos poucos e sem perceber, ela vai se apaixonando por ele. Isso fica bem claro quando um casal de irmãos vai viver na vizinhança de Mansfield Park. Henry e Mary Crawford são dois filhinhos de papai que moraram muito tempo na cidade grande e detestam a vida no campo. Edward se apaixona por Mary e Henry resolve roubar o coração de Fanny por brincadeira. A convivência deles dois traz um pouco de jovialidade à casa. Talvez até demais. Eles resolvem realizar uma peça dentro de Mansfield Park, o que é altamente desaprovado pelo proprietário, pai de Edward. A única que fica contra todo o ensejo é Fanny, que ganha total suporte do tio que passou a vida toda a negligenciá-la.
O conto é cheio de gracejos. Jane Austen se delicia em pegar seus próprios personagens de surpresa, colocando-os em situações embaraçantes, como fazer Mary Crawford, uma menina completamente sem papas na língua, contar a Edmund o que todas as jovens pensam sobre vigários com seus rostos sem expressão, só para descobrir, na página seguinte, que ele mesmo se tornaria um. "Mansfield Park" é uma comédia tradidional, ou seja, um clássico humor do século 19. "Deixe que outras penas se ocupem com culpa e miséria", disse uma vez a autora.
Como em muitas comédias, no entanto, no decorrer a história, descobrimos quão defeituoso é o mundo e durante um bom tempo, todas as coisas parecem caminhar para o pior. Para compreender "Mansfield Park", é necessário ver o romance como um constante debate entre os méritos da cidade e do campo - ou, colocando de outra maneira, um debate entre a constância e a mudança, a agitação e a tranquilidade. No aparentemente estável mundo de Mansfield Park, os irmãos Mary e Henry Crawford irrompem com sua sofisticação. Mary é pura ação e vivacidade e Henry é igualmente irreverente, divertido e sedutor. É de se esperar que, de uma maneira geral, os leitores se identifiquem mais ainda com eles que com Edmund e Fanny, tendo em vista que eles são mais vivos e divertidos.
A intenção da autora é justamente a de mostrar os contrastes: a cidade, com suas fofocas, modas, suas danças sociais frenéticas, é um lugar atrante, de uma maneira diferente da campestre. Quando a ideia de realizar uma peça de teatro surge dentre os jovens presentes na casa que nomeia nossa obra, Mary e Henry são os primeiros a aprovar e incentivar os outros, enquanto Fanny se opõe de todas as maneiras possíveis a ideia e Edmund a aceita de mal grado com o intuito de agradar sua amada Mary.
Apesar de seu conservadorismo, Jane Austen sabia que os sistemas sociais não são imutáveis, mas permanecem ou decaem com as pessoas encarregadas de mantê-lo. No fim do romance, a nova geração de Mansfield Park - crescida sem um senso firme sobre deveres e princípios - está praticamente em queda livre. Sendo a natureza humana o que é, o mundo de modas, novidades e caprichos não precisa forçar sua entrada nos vulneráveis Tom, Maria e Júlia. Até mesmo Edmund é tentado. Somente Fanny julga "corretamente" (de acordo com os preceitos do romance) do início ao fim. Isso é bom enquanto simboliza os valores tradicionais que Austen admirava e, possivelmente, acreditava estarem ameaçados. No entanto, o que é Fanny enquanto personagem? Podem os leitores amá-la? Conseguem eles, ao menos, simpatizar com ela?
Na verdade, se durante toda a obra não nos encantamos com a personalidade da protagonista, é no final que nossos sentimentos começam a mudar. Nós, leitores, a vemos crescer em Mansfield Park com todos os seus privilégios, que para ela, são, na realidade, frias privações. Isso é sentido, por exemplo, na passagem onde seus primos lhe oferecem, "generosamente", seus menos amados brinquedos velhos como presente e a deixam sozinha com eles. Queremos estrangular a sra. Norris, que, aparentemente, a enviou à casa para ter alguém de status inferior que ela pudesse oprimir e desprezar o tempo todo. "As pessoas nunca são respeitadas quando saem de sua própria esfera.", diz ela, "Lembre-se, onde você estiver, você deve sempre ser a mais rebaixada e a última".
É possível notar traços da gata borralheira na história de Fanny, a menina modesta e humilde que fora sempre colocada abaixo dos primos, da própria família. No lugar do príncipe encantado, porém, Fanny encontra Henry, um mauricinho mal acostumado que resolve fazê-la se apaixonar por ele por puro divertimento. Mas Fanny não é tão facilmente enganada pelo pedido de casamento que Henry faz à própria família dela. Para se livrar dessa obrigação, entretanto, ela acaba tendo que se colocar contra seus primos, entregando-os ao tio. É nesse momento, quando Fanny toma uma posição difícil para não se permitir subjugar, que vemos que a heroína é mais forte do que aparenta. A protagonista é então mandada de volta ao seio de sua família em Portsmouth, mas sente-se ainda mais fora de contexto quando percebe a falta de modos e de educação de seus irmãos e de seus próprios pais. Ela começa a olhar para Mansfield park como um lugar de elegância e harmonia, embora tenha sido tão mal tratada. E aqui surge uma reflexão. A mãe a tia de Fanny são ambas extremamente fúteis e vazias de conhecimento, mas o comportamento da mãe reflete uma ignorância e brutalidade jamais vistas na tia. Seria isso efeito da natureza ou fruto da vivência? Da mesma maneira, o fato de Fanny não se sentir confortável junto aos irmãos mal educados não é consequência de uma genética superior, mas da criação diferenciada. O bom estímulo vence a própria natureza.
Irônica diversas vezes durante a peça, em seu melhor estilo, Jane Austen induz o leitor a tirar as conclusões erradas, estimula-o, por vezes, a pensar que o casamento entre Fanny e Henry é devido ou instiga ideias fúteis e preconceituosas como conceitos verdadeiros e irrefutáveis, quando sabemos que esse não é, de verdade, o pensamento da autora.
Dentre suas muitas mensagens, Mansfield Park busca sugerir que a dificuldade ao longo da vida, ainda mais se ela é imposta na juventude, pode trazer frutos positivos e fazer do jovem uma pessoa melhor. Apresentando a hipocrisia, o orgulho e a vaidade dos privilegiados, ela nos conduz à conclusão de que a humildade imposta torna-se a humildade inerente (o que nem sempre é verdade).
Finalmente, o romance pretende mostrar que os princípios e valores da sociedade são essenciais, mas nem sempre são encontrados em quem se espera, e sim onde ninguém imaginaria estar.


Videocuriosidades:

O único filme produzido até então com o enredo do romance é uma adaptação inglesa lançada em 1999 na direção de Patrícia Rozema, estrelando Franes O'Connor.
Em 1983 e 1990, a BBC lançou séries que seguiam o contexto de Mansfield Park.
Em 2007, a Company Pictures lançou uma adaptação televisiva do mesmo.

sábado, 27 de abril de 2013

"O velho e o mar", Ernest Hemingway

Foi em Cuba, no ano de 1951 que o renomado autor americano Ernest Hemingway escreveu um conto de otimismo que emociona em sua simplicidade. "The old man and the sea" é a uma das grandes responsáveis pelo prêmio Nobel da Literatura recebido por seu escritor no ano de 1954.
"O velho e o mar" é a história da luta entre um velho e experiente pescador contra a maior captura de sua vida. Durante 84 dias, Santiago, um idoso pescador cubano, aventura-se no mar, sempre retornando de mãos vazias. Tão notável é sua falta de sorte que os pais de seu jovem e devotado aprendiz e amigo, Manolin, o obrigam a deixar Santiago a fim de pescar em um barco mais sortudo. No entanto, o garoto continua se preocupando com o ancião e, a cada dia que este volta do mar, à noite, ajuda o velho pescador a empacotar seus equipamentos em sua cabana, já em ruínas; garante sua alimentação noturna; e conversa com ele sobre as novidades do baseball americano, assunto que muito interessava Santiago, em especial no que concernia seu herói no campo, Joe DiMaggio. Apesar do constate azar, o ancião não perde a confiança de que o período improdutivo logo vai passar e, no dia seguinte, decide-se por ir pescar ainda mais longe que o normal.
No 85º dia de sua jornada de azar, Santiago realiza o que havia prometido, navegando com seu bote pelos mares mais distantes da rasa costa da ilha e se aventurando no córrego do Golfo. Ele prepara suas linhas e joga-as. Ao meio dia, um grande peixe, um espadarte, toma a isca que Santiago havia preparado e, com ela, penetra profundamente as águas do mar. O velho pescador habilmente fisga o peixe, mas não possui forças para colocá-lo para dentro do bote. Em vez disso, é o peixe quem começa a puxar o bote.
Por não conseguir amarrar a linha ao bote, temendo que, esticada, o peixe conseguisse partir a linha, o velho segura a tensão da linha com seus ombros, costas e mãos, pronto para folgá-la caso o peixe começasse a nadar mais rápido. O espadarte puxa o barco o dia inteiro, a noite inteira, outro dia inteiro e outra noite inteira. Ele nada no sentido contrário da corrente até que, cansando, em um determinado ponto ele resolve seguir a corrente. Durante todo esse tempo, Santiago suporta uma dor constante da linha de pesca. Cada vez que o peixe mergulha, salta ou esquiva-se na tentativa de escapar, a corda corta gravemente as mãos de Santiago. Muito embora ferido e cansado, o velho pescador sente uma grande empatia e admiração pelo peixe, seu companheiro em sofrimento, força e determinação.
"É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não posso deixar que ele compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se aumentasse a velocidade. Seu eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa partisse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes quanto nós, nós que os matamos, embora sejam mais nobres e valiosos."
É apenas no terceiro dia que o peixe se cansa e Santiago, privado de sono e quase delirante, consegue puxar o peixe para perto e, assim, matá-lo com o golpe de um arpão. Morto ao lado do bote, o espadarte é o maior que Santiago já havia visto. O pescador levanta o mastro e começa sua jornada de volta para casa. Nosso personagem anima-se com o valor financeiro do espadarte no mercado, mas a sua real preocupação é o fato de que as pessoas que comerão o peixe não serão merecedoras de sua grandeza. A firmeza, determinação e o coração forte demonstrado pelo peixe durante toda a luta são raras virtudes na sociedade.
"[...] por que ele teria saltado? Quase que diria que veio à tona d'água só para mostrar-me como é grande. Agora já sei, seja lá como for. Gostaria de lhe poder mostrar que espécie de homem sou eu. Mas nesse caso, ele veria a cãibra que tenho. É melhor que ele pense que sou mais do que sou e assim o serei. Gostaria de ser aquele peixe, e trocaria de bom grado minha vontade e minha inteligência para ter tudo o que ele tem"
Enquanto Santiago veleja com o peixe, o sangue do espadarte deixe um rastro na água e atrai tubarões. O primeiro a atacar é um grande anequim, o qual Santiago consegue assassinar com o arpão. Na luta, o ancião perde não somente seu arpão, como também metros de uma corda valiosa, o que o deixa vulnerável ao ataque de outros tubarões. O pescador repele os sucessivos perversos predadores o máximo que pode, esfaqueando-os com uma lança que ele cria ao acoplar uma faca a um remo e até surrando-os com o leme de seu barco. Apesar de matar muitos, cada vez mais tubarões surgem e, quando a noite chega, a luta de Santiago contra os carniceiros torna-se inútil. Eles devoram a melhor carne do espadarte, deixando somente o esqueleto, a cabeça e o rabo. Santiago, então, começa a se castigar por ter indo tão longe da costa e por ter sacrificado inutilmente seu grande e digno oponente. Ele chega em casa antes do cair da noite, cambaleia até sua cabana e dorme profundamente.
Na manhã seguinte, uma multidão de pescadores maravilhados se reúne ao redor da carcaça do peixe, a qual está ainda acoplada ao barco. Nada conhecendo sobre a luta do velho pescador, turistas em um café próximo observam os restos do espadarte gigante e o confundem com um tubarão. Manolin, extremamente preocupado com a ausência de Santiago, não contém as lágrimas de seus olhos quando encontra o velhinho salvo em sua cama. Ele busca um café para ele e os jornais do dia com a pontuação do baseball e depois assiste Santiago enquanto ele dorme. Quando o ancião acorda, ambos concordam de retornar com a parceria de pesca. O pescador volta a dormir e sonha seu frequente sonho sobre leões brincando nas praias da África.
""É bom saber que não tenho de tentar matar as estrelas. Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias", pensou o velho. "A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte."
Não apenas uma história de solidão, nem tampouco mais um conto sobre a constante luta entre o homem e a natureza. A obra vai além. Ela nos traz a sabedoria e experiência de alguém que passou por muito na vida e aprendeu a não desistir. Também nos traz lições intermediárias sobre aparências,  superioridade e humildade em palavras que de tão simples nem sequer precisam ser interpretadas.
O ancião não tem família e seu único amigo no mundo é Manolin. Mas não é porque ele está sozinho que desiste de percorrer seus objetivos. Nem a idade, nem o cansaço, a falta de força física, ou o desgasto são capazes de fazer o velho pescador desistir. Ele reconhece que seu oponente é mais forte e mais hábil que ele e tudo que ele tem a seu favor é a inteligência, a paciência, a perseverança e a sabedoria de seus anos de pesador e de homem. Ainda assim, ele persevera e acaba por vencer a batalha. Mas quem saiu vitorioso?
" 'Mas o homem não foi feito para a derrota,' disse.'Um homem pode ser destruído, mas não derrotado'"
Ao passo que uma história de determinação, o livro nos apresenta o outro lado da ambição: muitas vezes conseguimos atingir nossos objetivos, mas depois percebemos que eles, simplesmente, não valiam à pena. Antes mesmo dos tubarões destroçarem o peixe, fazendo nosso protagonista arrepender-se profundamente de seu sacrifício de ir mais além e de tirar a vida de seu digno e grandioso amigo, Santiago sente remorso por saber que as pessoas que desfrutarão de sua pesca não são dignas do espadarte. Finalmente, após grande desgasto e arrependimento, Santiago retorna ao ponto em que estava no início: talvez não mais triste, mas tampouco mais feliz. E voltamos à velha controvérsia: será que os fins realmente justificam os meios? Muitas vezes, machucamos pessoas, deixamos os entes queridos de lado, focando em um objetivo com perseverança e determinação, mas percebemos que de nada valeu todo o esforço e sacrifício quando percebemos que, não importa onde estejamos, as coisas de valor serão sempre as mesmas e estarão sempre no mesmo lugar.


Videocuriosidades:

Dirigido por John Sturges e estrelando Spenser Tracy, em 1958, apenas alguns anos após a publicação do livro, surgiu a primeira adaptação da obra.
Em 1990, outro longa foi produzido, dirigido por Jud Taylor e estrelado por Anthonny Quinn.
Em 1999, com a direção de Aleksandr Petrov, um curta de animação foi produzido baseado na obra de Hemingway.

quarta-feira, 20 de março de 2013

"Jane Eyre", Charlotte Brontë

Publicado em 1847, "Jane Eyre" é um livro inteligente de excelente e sutil elaboração. Obra de Charlotte, uma das irmãs Brontë, aqui já citadas em "O morro dos ventos uivantes", é uma obra considerada indubitavelmente de alta apreciação, divergindo deste último, por cuja qualificação literária críticos de todas épocas entram em atrito (minha humilde opinião permanecendo com aqueles que glorificam a autenticidade de sua escrita). "Jane Eyre" é um livro formado por livros, um ninho de narrativas. De contos de fadas ou narrativas góticas a escritos da psicologia, a obra inspira, em suas entrelinhas, influências das mais diversas histórias. Incute-nos, pois, a simpatizar com suas perspicazes, porque disfarçadas e "adultificadas", pinceladas de histórias há tempos por nós conhecidas, como "Cinderella" e "A Bela e a Fera".
Órfã, Jane Eyre é destinada a viver na casa de seu tio, ficando, após o falecimento deste, aos cuidados da esposa dele. Com três filhos, duas meninas e um menino, aproximadamente da idade de Jane, a sra. Reed não se esforça para dissimular a diferença existente entre ela e seus filhos, que ela considera crianças de porte superior. Injustiçada, maltratada e desprezada, Jane inicia um tal processo interno de amargura que chega ao ponto de confrontar sua "tia", ferinamente atentando-lhe para suas falhas de caráter. A senhora começa, então, a ver a menina não somente como uma menina ruim, mas praticamente como uma possuída. Eyre é enviada para o colégio interno de Lowood, onde, após superar os conflitos iniciais causados pelas terríveis referências que a sra. Reed havia fornecido sobre ela, consegue ficar demasiadamente satisfeita com sua vida.
Após término dos estudos, Jane passa dois anos dando aulas para as novas pupilas, até que decide-se por aceitar um emprego de tutora de uma menina mais nova e mudar totalmente o rumo de sua vida, indo trabalhar e habitar na casa de outrem, possuindo um patrão específico e outras coisas que ela não havia experienciado.
A casa para qual ela parte pertence ao sr. Rochester e a menina, Adèle, é uma francesa, filha de uma concubina do sr. Rochester que havia falecido. O sr. Rochester não chega a ser o herói perfeito da literatura romântica: lhe falta beleza, apesar de possuir, aos olhos de nossa protagonista, um porte físico interessante, e lhe falta juventude. Nos deparamos, então, com um amor fora do comum entre uma simples criada de 19 anos e seu senhor rico e poderoso, que beira os 40. Mas há ainda maiores mistérios que se colocam como empecilhos a esse romance. Fatos extremamente esquisitos e inexplicáveis acontecem em Thornfield Hall: tentativas de assasinato, gritarias noturnas e risadas assombrosas. Após, enfim, toda a luta travada para que os sentimentos entre o sr. Rochester e Jane Eyre se tornassem públicos e o casamento fosse arranjado, descobre-se, no meio da cerimônia, que os movimentos estranhos em Thornfield são produzidos pela esposa de Edward Rochester, que enlouqueceu com poucos anos de casamento.
Jane sente-se obrigada a fugir da propriedade. Sem aviso prévio, conduz-se ao mais longe possível e, miserável, é acolhida na casa de duas moças e um rapaz, irmãos. O rapaz, St. John Rivers é um pastor na pequena congregação da vila. Muito bonito e jovem, é sempre sério e impenetrável. Um afortunado tio dos três proprietários do lar que abriga Jane morre, mas, diferente do que se poderia imaginar, no lugar de deixar sua fortuna para eles, salvando-os da situação precária na qual estavam se afundando, o herdeiro escolhido é parte do outro lado da família. Por fim, Eyre acaba descobrindo-se a herdeira de uma fortuna e, mais importante e afortunado que isso, descobrindo que possui uma família. Divide, então, sua herança, que é suficiente para garantir o conforto de todos, com os primos e, com essa generosidade, conquista ainda mais o afeto destes. St. Rivers, após analítico estudo do caráter e personalidade de Jane, pede-lhe em casamento, não por fins amorosos, e sim, pois tem a intenção de realizar uma missão de solidariedade na Índia e pretende levar uma mulher consigo, na qual o posto de esposa de um missionário caia bem, o que demanda virtudes como a coragem, a disposição e o prazer no trabalho árduo. Após relutância, ela decide partir com ele. 
"Estou, simplesmente, em meu estado original... despido daquele manto manchado de sangue com o qual o cristianismo cobre a deformidade humana... um homem frio, duro, ambicioso. Só a afeição natural, entre todos os sentimentos, tem um poder permanente sobre mim. A razão, e não o sentimento, é o meu guia; minha ambição não tem limites; meu desejo de elevar-me mais alto, fazer mais que os outros, é insaciável. Respeito a resistência, a perseverança, a diligência, o talento; porque esses são os meios pelos quais os homens atingem grandes metas e se erguem à grande eminência. Observo sua carreira com interesse, porque a considero um espécime de mulher diligente, ordenada, enérgica; não porque me compadeça profundamente pelo que sofreu, ou sofrerá ainda."
No entanto, antes de partir, decide retornar a Thornfield para ter notícias de seu verdadeiro amado. Descobre, então, que a louca esposa dele incendiou e arruinou o lugar e que muitos saíram feridos, mas a única morta foi ela mesma. O maior infortúnio para Jane, porém, é descobrir que Edward saiu cego e com uma mão amputada do acidente. Dirigindo-se ao atual local de morada de seu amado, ela decide lhe falar e percebe que seu lugar é ao lado dele, cuidando como se fosse os olhos e as mãos de Edward. Eles se casam e, com o tempo, Edward ainda consegue adquirir de volta a visão de um dos olhos. E, assim, temos o nosso final feliz.
Muitos apontaram "Jane Eyre" como um perigoso e sexualmente excitante manifesto feminista. O verdadeiro feminismo virotiano! De fato, presenciamos os novos ventos do pensamento a favor da modificação do posicionamento da mulher na sociedade, que não possuía o direito ao voto, ao divórcio ou aos estudos numa universidade, em diversas linhas de nossa história. Os inimigos da revolução psicológica alegavam que a obra possuía um tom pouco feminino e uma mensagem extremamente incendiária, repudiando sua nudez emocional e seu poder de sedução. A começar pela personalidade da própria protagonista. Ao mesmo tempo que racional e lógica, disposta e de inteligência aguda, Jane tem paixão e segue seus impulsos sem pensar duas vezes. Força de vontade, mente honesta, coração amoroso e personalidade peculiar e fascinante são as qualidades de nossa personagem principal. Seu principal impulso é a raiva e seu temperamento é extremanmente forte. Assim a define St. John: "embora você tenha um vigoroso cérebro de homem, tem um coração de mulher". Ainda me impressiona o fato de que, no período, a racionalidade e a lógica eram qualidades identificadas apenas com o cérebro masculino.
A voz do romance nos fala sobre paixão erótica (revolucionária apenas nos termos da época, mas em níveis mais que naturais para um romance dos dias de hoje, sem apelar para o confronto sexual como forma de atrair a leitura, como fazem tantos), aspirações de uma "casta" inferior e a ira feminina, em uma época onde o radicalismo político ameaçavam os limites da ordem (movimento cartista de meados de 1840). O murmúrio do romance contra o conforto dos ricos e as privações das classes pobres envolve uma asserção orgulhosa e perpétua dos direitos dos homens, para a qual não encontramos autoridade nem na palavra de Deus, nem na providência divina.  Jornais denunciaram a obra como com traços de um fundamentalismo não cristão, quando, na realidade, podemos sentir a importância da religião, ainda que questionada como verdade absoluta, no decorrer do livro.
"Espera-se que as mulheres sejam calmas. Entretanto, sentem da mesma forma que os homens. Precisam exercitar suas faculdades, assim como precisam de um campo para os seus esforços, tanto quanto seus irmãos. Sofrem de limitações, abnegações, da mesma forma que os homens sofreriam. É uma limitação, por parte de suas companheiras mais privilegiados, achar que devem confinar suas vidas a fazer pudins, coser, tocar piano e bordar. Seria irresponsável condenar aquelas mulheres que procuram fazer mais ou querem aprender mais do que o costume declara necessário ao sexo"
Leis do direito do indivíduo estão espalhadas e podem ser encontradas ao longo de todo o romance. As relações econômicas, como entre patrões e empregados, são vastamente questionadas, buscando reafirmar a liberdade dos assalariados diante de seus mestres, apesar do respeito devido, reivindicando  talvez não propositalmente, a favor dos trabalhadores cartistas que se autodenomivavam, debochadamente, "escravos brancos".
Ao passo que revolucionária, obra apresenta também tendências racistas ao demonizar, através da loucura, a esposa do sr. Rochester, que é mestiça ou, como denominada no livro, crioula. Essas passagens poluem a ética da obra, que possui um espírito tão enriquecedor e inovador para o período. Há, nessa e em outras comparações, inúmeras referências à superioridade européia e à selvageria encontrada nos países do "novo mundo". Encontro frequentemente nas melhores obras européias esses traços de racismo e xenofobia, tristes, pois não me permitem admirar com plenitude o romance ou o autor. Quando existem aspectos de luta por direitos do ser humano, encontro-me com ainda mais desprezo por ver que, apesar de sentir-se injustiçado, o escritor não foi capaz de perceber as injúrias que cometeu com uma classe de pessoas pormenorizadas não menos importante que a sua.
O aspecto mais complexo e contraditório do romance é a maneira como trata o casamento e as relações entre gêneros, de uma maneira geral. Jane chama o sr. Rochester de "seu mestre" com uma afiada satisfação, ao passo que repudia desdenhosamente a autoridade de outros, como St. John Rivers, apesar de sua obediência. A radical autonomia feminista de Jane alterna-se com a ânsia por tornar-se uma das queridas de seu mestre.
"Eu me preocupo comigo. Quanto mais solitária, quanto mais sem amigos, quanto menos apoio eu tiver, mais respeito terei por mim mesma. Vou cumprir a lei dada por Deus; sancionada pelos homens. Vou me fiar nos princípios recebidos por mim quando eu era sã, e não louca - como estou agora. As leis e os princípios não são para os momentos em que não há tentação: são para momentos como este, quando corpo e alma se levantam em motim contra o rigor deles; são severos; serão invioláveis. Se, por minha conveniência pessoal, eu os quebrasse, qual seria o valor deles? Têm um valor — sempre acreditei nisso; e se não posso acreditar agora, é porque estou insana, com fogo correndo nas veias e o coração. As opiniões que formei, as decisões que tomei, isso é tudo que tenho neste instante para me firmar: essa é minha base de apoio."
No entanto, a atitude despótica do sr. Rochester com relação a Jane no início do livro não a agrada, porém ela consegue afirmar sua posição igualitária (ou mesmo superior) ao seu tão amado mestre, que por sua vez, não apenas assume a igualdade, como também sua inferioridade.
O casamento igualitário, onde a "pequeninês" da mulher torna-se a mais forte base de apoio para o "tão dominante" homem é o ideal da obra (uma noção ainda atrasada de igualdade, digamos). O fato do sr. Rochester perder os olhos e a mão, precisando do suporte incondicional de Jane, é uma afirmação disso. O amor consagrado em "Jane Eyre" é muito mais humano que divino. Ao recusar a proposta de St. John de um casamento dedicado explicitamente ao Espírito, que abdicaria das paixões carnais, "Jane Eyre" trilha um caminho da ambivalente heresia cristã e do tradicionalismo transgressivo: prefere o símbolo humano do amor, com o casamento, ao amor em si mesmo, na união com Cristo.
Um dos aspectos mais mágicos da obra é sua voz. Pessoal, emocional, fluida, ela infere uma pessoalidade e cria a ilusão de haver uma "pessoa real" por trás do texto, falando diretamente aos leitores. Talvez o fato de possuir influências autobibliográficas tenha colaborado com esse efeito. Paradoxalmente, o romance é densamente alusivo e possui grande riqueza literária, tão extensa que necessitaria de um estudo aprofundado que não posso fornecer em algumas linhas no blog, mesmo porque não tenho propriedade alguma no assunto. Mas textos shakesperianos como "Hamlet" e Othello são exemplos de fortes de interessantes alusões.
Jane Eyre é uma obra original, vigorosa, edificante e absolutamente interessante. É original em seus personagens, que possuem caráter peculiar, e em seu enredo, por mais simples, ao passo que rico, que o seja. É vigorosa em seu pensamento e, consequentemente, em seu estilo, afirmando ideias enfáticas e revolucionárias que encaixam-se perfeitamente ao contexto do período. É edificante por sua beleza e sinceridade. É, por fim, interessante, pois condensa traços de riqueza literária, forte influência de contexto histórico, pessoalidade e questionamento, nem como asserção, de valores e princípios, em uma narrativa que nos absorve com sua trama singular. "Jane Eyre" tem muito a nos ensinar e fazer refletir.

Curiosidade:


Ao visitar uma igreja anglicana em Galway, Irlanda, encontrei cravada na parede a homenagem a um poderoso casal da região, falecido muito antes do lançamento de nosso romance. Os nomes na parede? Jane Eyre e Edward Rochester. De família mais rica que o marido, porém, essa Jane Eyre não quis adotar o nome Rochester. Coincidência ou não, achei bastante curioso.


Videocuriosidades:


Em 2011 foi lançada a mais recente adaptação da obra, do diretor Cary Fukunaga, estrelando Mia Wasikowska e Michael Fassbender.

Mais um de Franco Zeffirelli, em 1996 William Hurt e Charlotte Gainsbourg foram as estrelas do longa. 
1983 foi o ano da mini-série com Zelah Clark e Timothy Dalton (que eu aprecio bastante pelo filme que adorei na infância e passava sempre na sessão da tarde: "The Beautician and the beast").
Em 1970, Delbert Mann dirigiu o longa com George Scott e Susannah York.
Dirigidido por Robert Stevenson, na adaptação de 1944 estrelavam Orson Welles, Joan Fontaine e Margaret O'Brien.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

"Timão de Atenas", William Shakespeare

Publicado em meados de 1623, "Timão de Atenas" é mais uma grande obra de William Shakespeare que evoca e satiriza intensos sentimentos da essência humana. Nessa obra, o autor possui apenas um foco e uma intenção: colocar em análise a ganância humana, apresentada tanto na generosidade pretensiosa de nosso protagonista, quanto nas falsas amizades que ele possui.
Timão é um rico mecenas que patrocina políticos, artistas, filósofos e qualquer um que se diga seu amigo. Bastante generoso, está sempre rodeado de admiradores dispostos a ouvir tudo que ele tem para dizer. Esses "amigos", no entanto, são constituídos por um grupo de pessoas que estão dispostas a ficar por perto até que sua fortuna finalmente se extinga. Timão consegue, com facilidade, encher uma mesa de banquetes ou lotar uma de suas festas com pessoas que, aparentemente, o apreciam muito. Ao mesmo tempo, será que uma quantidade tão absurda de pessoas iria manter-se próxima simplesmente para receber presentes e comer de graça? Apemantus, um personagem que surge para dar contra-peso às idealizações de Timão, parece achar que os amigos deste último não passam de bajuladores baratos, mas também ele permanece por perto, sem desfrutar dos banquetes e presentes.
O principal, ou praticamente único, tópico abordado no livro sintetiza-se na seguinte indagação: dinheiro compra amizades? Shakespeare busca, com sua prosa, fazer-nos questionar sobre a ligação que existe (ou não) entre o bem-estar material e os laços de amor e amizade. Que todas as pessoas estão em busca de seus próprios interesses, é irrefutável. Inclusive, absolutamente aceitável quando esse "interesse" é pela boa companhia, o sentimento em si e o relacionamento de uma maneira geral. Afinal, quando vamos buscar lá no fundo, é o interesse pelas coisas e pelas pessoas que move o ser humano. Mas em que ponto podemos começar a desconfiar que o interesse é ou torna-se algo de material, supérfluo, não somente com relação ao dinheiro, mas com relação ao conforto e à praticidade? Como descobrir se esses "laços" são, na verdade, um relacionamento unilateral, onde, enquanto um se doa, o outro apenas usufrui? Essas "amizades" só são mantidas até que aquele que busca precise da ajuda do outro.
A riqueza de Timão é única em sua grandeza. Sua generosidade parece ser auxiliada por uma fonte inacabável de recursos, dos quais ele se beneficia incessantemente. No entanto, em determinado momento, essa fonte tem que se esgotar. Logo, Timão hipoteca suas terras para comprar presentes e fazer festas. Ele chega ao ponto de pedir empréstimos aos amigos para poder, em seguida, comprar-lhes presentes.
Todos esses esforços, porém, parecem sem sentido. Alguns podem interpretar o comportamento de Timão como ingênuo ou inocente. Aparentemente, porém, Timão se coloca nessa situação simplesmente, porque precisa da atenção e do agradecimento de seus amigos. Tampouco ele oferece esses presentes esperando retorno material. Ele sente a necessidade de ter prestígio social. Na realidade, ele adquire status através de seus gastos e acredita que sua "generosidade" solidifica sua amizade com os lordes de Atenas que o rodeiam. Assim, apesar de nosso personagem colocar sua confiança em vínculos intangíveis, a máscara da realidade cai para ele quando se coloca na situação de pedir empréstimos. Todos seus amigos se recusam a lhe ajudar quando a única garantia que ele tem para oferecer é a amizade.
Os comentários de Apemantus no decorrer do livro fazem contraste com as crenças idealísticas de Timão. O primeiro acredita que as pessoas são naturalmente gananciosas e perversas, talvez uma inspiração do autor na filosofia desenvolvida no período, intimamente ligada com o trabalho do filósofo e escritor inglês, Thomas Hobbes. Apemantus também acredita que a generosidade não é uma marca da sociabilidade, mas um investimento com o objetivo de influenciar os outros e ganhar o retorno social da admiração, do respeito e da capacidade de manipulação. Assim, tanto as ideias dele quanto as do nosso protagonista se baseiam na questão de quanto a abundância ou carência de bens materiais determina a interação de um indivíduo, tanto na sociedade, quanto na maneira que ele vê a si mesmo.
As trocas de mercadoria são as únicas transações que acontecem nessa peça. Ou seja, são as permutas financeiras que dominam a obra, onde as mulheres não ocupam nenhum papel de importância. Assim, o câmbio de capital desenvolve um papel perverso e depravado, tomando o lugar de uma possível relação heterossexual romântica que poderia vir a ser um dos focos da narrativa. Da mesma maneira, a história baseia-se no antigo retrato de "usura" como uma maneira depravada de obtenção artificial de lucros.
A reação de Timão à sua queda é bastante curiosa. Como muitos dos personagens das obras de Shakespeare, Timão possui um caráter egoísta e precisa aprender uma lição para crescer como pessoa e prosseguir. Ainda assim, ele fracassa nessa tarefa. A única mudança que percebemos no personagem é a saída de um comportamento extremo para outro. Enquanto, no início, ele se isolava dos outros lordes para conseguir se manter em aparência como um deus de generosidade, inatingível, após perder seu dinheiro, ele se isola na floresta, amaldiçoando a humanidade com o mesmo entusiasmo com o qual ele a louvava anteriormente. Mesmo quando sua crença de que a natureza amigável do homem é inatamente gentil mostra-se falsa, o egocentrismo de Timão permanece imbatível e ele continua achando que deve se manter afastado dos outros por ser melhor que eles. É então que morre sozinho, enterrando a si mesmo em seu próprio epitáfio.

"TIMÃO - Ah, muralhas de Atenas, vou olhar pra vocês pela última vez. Vocês, que cercam esses lobos, caiam por terra e deixem Atenas ao deus-dará. Mulheres, chafurdem na bacanal. Crianças, não obedeçam mais ao papai. Escravos e idiotas, arranquem do plenário os veneráveis membros murchos do Senado e assumam o poder. Virgenzinhas em flor, convertam-se . Falidos do mundo, "uni-vos" - em vez de pagar as dívidas, puxem da navalha e rasguem a garganta dos credores. Trabalhadores assalariados, roubem - os seus patrões são ladrões de mão grande, que roubam também, mas com o apoio da lei. Empregadas, já pra cama do patrão - a patroa ainda não voltou do bordel. Jovens, ao completar dezesseis anos, arranquem a muleta estofada do seu progenitor aleijado e rachem com ela a cabeça dele. Piedade, temor, religião, paz, justiça, verdade, respeito em casa, noites de folga, boa vizinhança, boa educação, boas maneiras, hierarquias, artes e ofícios, usos, costumes e leis, degenerem até que tudo morra no seu contrário e ainda assim viva o caos. Pestes do mundo, que as suas febres invadam Atenas, pronta pra o abate. Que a fria ciática lese tanto os nossos senadores que os seus membros fiquem tão frouxos quanto os seus costumes. Que a luxúria e a libertinagem penetrem sutilmente na medula dos jovens, pra que eles nadem contra a corrente da virtude e se afoguem na perdição. Que sarnas e pústulas plantem-se fundo nos corações atenienses, e que a colheita seja a lepra geral. Que o hálito infecte o hálito, e que a amizade destile puro veneno. Não levo dessa cidade execrável nada mais que a nudez do corpo. Que ela fique nua também, debaixo de mil maldições. Timão vai pra floresta, onde a fera mais desumana é mais humana que a humanidade. Que os deuses - todos os deuses, estão me ouvindo! -, que os deuses amaldiçoem os atenienses, dentro e fora dessas muralhas. Que a vida de Timão faça o seu ódio ser eterno. Contra todos os homens do mundo, no olimpo e no inferno. Amém.
Timão, no entanto, é uma figura ambígua. Quando ele sai de Atenas, declara que a humanidade pode ser resumida em ganância e nada mais. Mas será que, de fato, podemos concordar com ele? Provavelmente, essa percepção sem propósitos é sua resposta ao desprezo e humilhação que sofreu. Se, no início, ele se mostrava um homem tolo, porém generoso, no fim, ele não passa de um homem furioso que continua tolo. Ele deixa a cidade por causa do comportamento cruel de alguns homens, tomando-os como sinal da podridão da humanidade. No entanto, alguns outros personagens tentam provar o contrário.
Flavius divide suas provisões financeiras com os serviçais de Timão, provando-se um homem honrado aos olhos deste. Apemantus e Timão, apesar das discussões, apreciam a companhia um do outro. E, por fim, há Alcibiades, que prepara um ataque à cidade para restabelecer a honra de Timão em Atenas. Com tantas pessoas ao lado de Timão, buscando fazê-lo retornar à cidade e lhe dando suporte, a insistência dele sobre a natureza má da humanidade não procede.
De fato, após a morte de Timão, quando Alcibiades chega aos portões de Atenas, os senadores usam um argumento bastante interessante para tentar convencê-lo a não atacar. Eles explicam que aqueles que foram cruéis com Timão (e com o próprio Alcibiades) são apenas uma pequena porção da população e, portanto, poderiam ser facilmente identificados e punidos. A conclusão da peça, assim, recai na sugestão de que a crueldade não é um fenômeno universal, como Timão imaginava, e sim algo aparentemente restrito a seus "amigos" gananciosos.
Por fim, nos é deixada uma mensagem inconsistente. O herói, se assim podemos denominar Timão, toma decisões erradas quando rico (fazer empréstimos para dar presentes) e também quando perde seus bens (deixar a cidade e amaldiçoar os homens). Com esse comportamento extremo, ele acaba por não ter tempo de aprender nada e morre antes de encontrar um sentido na vida, entre suas reações exacerbadas. Afinal, será que os esforços de Timão nos alertam para desconfiar da generosidade, já que vimos que seus destinatários são aduladores ingratos? A peça é, realmente, uma contestação contra a amizade, quando mostra que as amizades de Timão são guiadas pela ganância?
Ao mesmo tempo que podemos responder positivamente a essas questões, encontramos traços que enfatizam o contrário na obra. Mas quando Flavius, um homem de classe baixa, aprecia genuinamente a generosidade de Timão e o oferece sua amizade, devemos interpretar que a maioria das pessoas é, de fato, gentil? Além disso, os números apresentados por Shakespeare não nos levam a uma conclusão: enquanto três homens desprezam Timão, são três os homens que o visitam, tentando conectar-se com ele de várias maneiras. Ainda que Timão tenha acabado indeciso quanto à interpretação dos acontecimentos, a peça, como um todo, poderia, como tantas outras, transmitir uma ideia absoluta aos leitores. Como Timão, porém, a história finaliza-se com ideias amplamente ambíguas. Talvez nem mesmo Shakespeare tivesse ainda conseguido decifrar o enigma das relações sociais e, colocando-nos o tópico em mente, nos convida a tirarmos nós mesmos as conclusões que, suponho, serão parciais e baseadas nas experiências de cada um.


Video-curiosidades

A peça raramente saiu dos palcos às telas de cinema e televisão.
Todo o registro que pude encontrar resume-se a uma série criada em 1981 pela BBC, dirigida por Jonathan Miller e a uma adaptação cinematográfica de 2009, dirigida por Michael Shaw Fisher.