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domingo, 4 de dezembro de 2011

"Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcelos

"Meu Pé de Laranja Lima", publicado em 1968 foi escrito por um carioca de família nordestina e pobre, que cresceu na minha amada cidade Natal, no Rio Grande do Norte. O histórico do autor foi imprescindível para o sucesso do livro como exposição realista da vida de uma família simples, na visão de um menino, que perdeu seu direito de ser criança cedo demais.
O livro conta a história de Zezé, um garotinho de apenas cinco anos que morava com sua família em uma casa muito simples próximo à avenida Rio-São Paulo. Seu pai estava desempregado e sua mãe que trabalha desde muito cedo da manhã, chegando em casa bastante tarde, para sustentar Zezé e seus irmãos.
Nosso protagonista era um menino muito esperto e inteligente e, no decorrer da leitura, vamos notando um grande amadurecimento nele, em razão de todos os acontecimentos dolorosos que se passam na sua vida. O grande xodó da vida de Zezé era seu irmãozinho caçula, mas ele também possuía outro irmão e algumas irmãs, todos mais velhos.
Por causa das dificuldades financeiras da família, devidas principalmente ao desemprego do pai do nosso pequeno herói, eles tiveram que se mudar de casa, coisa que não agradou muito Zezé. Ao chegar na nova casa, no entanto, havia muitas árvores grandes e bonitas e ele logo animou-se para ficar com uma para si. Entretanto, cada um de seus irmãos tomou uma árvore como posse e só o que restou para Zezé foi um pequenino pé de laranja-lima. No início, ele ficou muito contrariado com o que lhe foi designado, mas depois ele descobriu que conseguia "falar" com seu pé de laranja-lima, que era a única árvore do mundo capaz de conversar com ele, e assim, ficou extremamente satisfeito. Minguinho era o nome carinhoso pelo qual ele chamava seu pé de laranja lima e era a ele que eram dadas todas as suas confissões, e era ele o procurado nos momentos que Zezé sentia-se sozinho ou injustiçado, ou quando ele havia sofrido algum tipo de violência, física ou psicológica.
Por ser extremamente travesso, a família e os vizinhos de Zezé costumavam dizer que no Natal, em vez de nascer para ele o Menino Deus, nascia o menino diabo. Desta feita e em decorrência não apenas da sua má fama, mas das próprias peças que ele pregava constantemente em todos, ele apanhava muito tanto de familiares, quanto de pessoas de fora. E numa dessas vezes, ele apanhou muito mesmo de um português. Neste dia, ele sentiu um ódio tremendo pelo homem e jurou que, quando crescesse, ia matá-lo. Mas o destino é capaz de fazer-nos ter que engolir coisas que falamos e prometemos na euforia da raiva, pois o camarada destino consegue ser ainda mais danado que o próprio Zezé. Por isso mesmo, em um dia que Zezé ia para a escola com o pé quebrado, o mesmo português lhe ofereceu carona e ele, sem opção, acabou por aceitar. A partir daí, nasceu uma amizade tão linda, tão profunda, que Zezé começou a ficar mais comportado e bonzinho. O tal do português tão antes odiado era o único capaz de ceder ao menino o carinho e amor familiar que ele não encontrava dentro de casa. Assim, em certo ponto, ele pede ao português que o adote e seja seu pai, porque "sua família nem vai se importar, mas sim vai achar muito bom".

Em parte, esta passagem denota o pensamento infantil de Zezé, ainda incapaz de compreender o porquê de tanto desamor em sua família. Sua mãe, que vivia para trabalhar, sem descanso e sem alternativa, para sustentar os filhos, quando chegava em casa, estava sempre exausta e incapaz de um gesto de carinho. Seu pai, sentindo a depressão inerente ao desemprego, era incapaz de dar suporte à sua própria família e, sequer, conseguir que os filhos ganhassem um presente, por mais simples que fosse, no Natal. Nesta situação, para que houvesse alegria e amor na família, tinha também de haver muita força para aguentar tanto sofrimento. Abaixo, uma passagem do livro que realmente nos faz refletir:

"— Totóca. 

— Fale. 

— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel? 

— Acho que não.

— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo 
diz? 
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você  tem o diabo no 
sangue. 
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes 
de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra 

mim. 
— Quem sabe se ano que vem... Por que você não aprende e não faz como 
eu? 
— E como é que você faz? 
— Não espero nada. Assim a gente não fica desapontado. Mesmo o Menino 
Jesus não é essa coisa tão boa que todo mundo fala. Que o padre conta nem que o 

Catecismo diz...  

Fez uma pausa e ficou indeciso se contava o resto do que pensava ou não. 
— E como é então? 
— Bem, vamos dizer que você foi muito levado, não mereceu. Mas Luís? 
— É um anjo. 
— E Glória? 
— Também. 
— E eu? 
— Bem, você às vezes é... é... meio pegador das minhas coisas, mas é muito 
bonzinho. 
— E Lalá? 
— Bate com muita força, mas é boa. Um dia vai costurar minha gravata de 
laço. 
— E Jandira? 
— Jandira é daquele jeito, mas não é ruim. 
— E Mamãe? 
— Mamãe é muito boa; só me bate com pena e devagar.
— E Papai? 
— Ah! Esse eu não sei. Ele nunca tem sorte. Eu acho que ele deve ter sido 
como eu, o ruim da família. 

— Pois então. Todo mundo é bom na família. E por que o Menino Jesus não 
é bom pra gente? Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de 

coisas. Na casa dos Villas-Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se 

fala... 

Pela primeira vez eu vi que Totóca estava quase chorando. 
— Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis nascer pobre para se 
mostrar. Depois Ele viu que só os ricos é que prestavam... Mas não vamos mais 

falar disso. Pode ser até que o que eu falei seja um pecado muito grande.

Ele ficou tão abatido que nem quis mais conversar.  Nem mesmo queria 

levantar os olhos do corpo do cavalo que alisava agora. 
*   *   * 
Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu 
em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba 

nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com 

ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento.  
[...] 
Mamãe foi para o quarto. Garanto que ela estava chorando escondido. E todos estavam com vontade de fazer o mesmo. 

[...] 
O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros. Quando voltamos para dentro, Glória e Jandira lavavam a louça usada e 
Glória tinha os olhos vermelhos como se tivesse chorado doído. 

Disfarçou e disse para Totóca e eu: 

— Está na hora de criança ir para a cama. 

Ela falava isso e olhava para a gente. Ela sabia que naquele momento não 
havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma 

tristeza aos pedaços. 
[...] 
Quando toda a casa estava às escuras eu perguntei baixinho: 

— Tava boa à rabanada, não estava Totóca? 

— Nem sei. Não provei. 

— Por quê?
— Fiquei com uma coisa entalada no gogó que não passava nada... Vamos 
dormir. O sono faz a gente esquecer tudo. 
Eu me levantara e fazia barulho na cama. 
— Aonde você vai, Zezé? 
— Vou botar meus tênis do lado de fora da porta. 
— Não ponha, não. É melhor. 
— Vou pôr, sim. Quem sabe, se não vai acontecer um milagre. Sabe, Totóca, 
eu queria um presente. Um só. Mas que fosse uma coisa novinha. Só pra mim... 
Ele virou para o outro lado e enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. 

*   *   *  
Mal acabei de acordar e chamei Totóca. 

— Vamos ver? Eu digo que tem. 

— Eu não iria ver. 

— Pois eu vou. Abri a porta do quarto e os sapatinhos tênis estavam vazios 
para a minha decepção. Totóca aproximou-se limpando os olhos. 

— Não falei?  
Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza. 
Sem poder me conter exclamei: 
— Como é ruim a gente ter pai pobre!...  
Desviei meus olhos do tênis para uns tamancos que estavam parados à minha 
frente. Papai estava em pé nos olhando. Seus olhos  estavam enormes de tristeza. 

Parecia que seus olhos tinham crescido tanto, mas crescido tanto que tomavam toda 

a tela do cinema Bangu. Havia uma mágoa dolorida tão forte nos seus olhos que se 
ele quisesse chorar não ia poder. Ficou um minuto que não acabava mais nos 
fitando, depois em silêncio, passou por nós. Estávamos estatelados sem poder dizer 
nada. Ele apanhou o chapéu sobre a cômoda e foi de  novo para rua."

Um certo dia, Zezé recebe a notícia de houve um grande acidente com o trem Mangaratiba, que passa próximo da estrada Rio-São Paulo, e o carro do português, o que significava que seu grande refúgio, seu melhor amigo, nunca mais estaria perto dele. Ao mesmo tempo, dá-se a notícia de que será cortado o pé de laranja-lima. Zezé havia ficado doente de tristeza pela morte de seu amigo, mas sua família pensa que ele está triste por perder seu Minguinho. E assim, apresenta-se uma incompreensão dos adultos do que está na mente das crianças. Muitas vezes, os mais velhos pensam que os pequenos não compreendem nada e, no entanto, a compreensão deles está muito além do imaginável. No caso de Zezé, essa compreensão já ultrapassava os limites de uma criança comum, pois a força das circunstâncias havia, muito cedo, lhe tirado o direito de ser o que, de fato, ele era. Na passagem seguinte, compreendemos, afinal, que, se no início o livro parecia de fato se tratar da história de amizade entre o menino e a árvore, ao fim, a árvore torna-se algo ainda mais profundo.
"— Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá.
Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.
— Não adianta, Papai. Não adianta...
E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto:
— Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima."
 
 Ao mesmo tempo que ficamos indignados com a família de Zezé pela maneira como tratam o menino e pela sua incompreensão de que uma criança como ele não faz certas coisas por maldade, mas por falta de entendimento, entendemos que em uma situação de desespero como a deles, a capacidade de parar para refletir diminui e sentimos pena. Até porque, no fundo, sabemos que existe muito amor dos pais para os filhos e vice-versa, mas, por mais triste que possa parecer essa realidade, amor não põe mesa.

Com certeza, devemos ter a consciência de que dinheiro não está nem perto de ser uma das coisas mais importantes da vida, mas é muito fácil dizer isso quando se tem o suficiente e ainda mais quando se tem de sobra. Entretanto, é preciso atentar para o fato de que sem a obtenção das necessidades básicas, nenhum ser humano consegue ser feliz e, infelizmente, o que proporciona a capacidade de ter alimento na mesa, um lugar para viver e mesmo um pouco de lazer (como um brinquedo de Natal) é o dinheiro. Confesso que estas são algumas das concepções que mudaram em mim após a leitura deste livro. Não podemos recriminar a atitude do outro sem conhecer a fundo sua realidade, sua história. O mundo deste livro é extremamente real e atemporal, apesar de se passar em um período e lugar específicos. De minha parte, por ser uma realidade bastante distante da que vejo no cotidiano, eu tive que abrir meu coração e minha alma para tentar compreender todos os sentimentos que se passam em cada um dos personagens. Não é fácil não acusar a família de Zezé de desleixada e com falta de amor. Da mesma maneira, é difícil entender como Zezé pode preferir ficar com um estranho qualquer que com a própria família, escolher uma árvore como grande amigo e confidente, por haver uma necessidade de refúgio para todos os seus temores. Mas, abrindo nossos olhos para ver com mais clareza, somos capazes de perceber tudo isso e crescemos como seres humanos.
Indico este livro a todos, sem exceção. Um livro que, por nos mostrar a dura realidade da vida através de olhos infantis, pode parecer escrito para crianças, mas que tem uma profundidade tamanha que não são todos os adultos que são capazes de compreender. O que eu recomento é tentar, pois quando abrimos nosso coração, este nos emociona com a história de um menino que aprende tudo cedo demais: não apenas  a dor e a ternura, como também a saudade e o carinho.

Video-curiosidades:

"Meu Pé de Laranja Lima", 2011
Em 1970, a obra foi adaptada para os cinemas, com direção de Aurélio Teixeira.
Em 1980, uma telenovela da Band contava a história da obra. Esta era uma regravação da telenovela da rede Tupi que havia sido gravada 10 anos antes.
Em 1998, mais uma vez a Band reproduziu a telenovela.
Agora, em 2011, mais um longa-metragem é criado, dessa vez dirigido por Marcos Bernstein, para matar as saudades da geração que hoje tem por volta de 50 anos e, também, arrebatar as novas gerações com essa história que é linda e comovente.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"Emma", Jane Austen

Uma das mais famosas obras de minha amada escritora, Jane Austen, foi publicada em 1815 e é entitulada "Emma". As críticas à sociedade da época, já encontradas em obras anteriores da autora, são, neste romance, enfatizadas, em decorrência de um amadurecimento de Austen como mulher e como escritora.
Os contrastes na personalidade de nossa protagonista fizeram com que Austen, antes do lançamento do seu livro, fizesse a seguinte afirmação: "Eu vou criar uma heroína, a qual ninguém além de mim vai gostar". Os contrastes de sua personalidade surgem desde sua grande compaixão pelos mais necessitados até sua constante defesa pela divisão de classes.
Algo que pode ser facilmente observado nesta, que é a obra-prima de Austen, em contraste com seus romances anteriores, é o fato de ela ser bastante rotineira. Particularmente, não me apaixonei pelo livro até conhecer a verdadeira intenção da autora, pois, por ser essencialmente embasado em rituais do cotidiano, por vezes, beira o tédio. Mais que em qualquer outro livro, em "Emma", a autora demonstra a habilidade de delinear um retrato realístico da sociedade, expondo os desejos e as debilidades dos habitantes da pequena cidade de Highbury, na Inglaterra, os quais possuem a irritante tendência de apontar defeitos uns nos outros. Apresenta também as rivalidades, pretensões, hierarquias e acontecimentos destes personagens  de uma maneira tão convincente que dificilmente encontramos um trecho da história que não pudesse se passar na vida real do período em que foi escrito.É difícil para o leitor enxergar quando a realidade acaba e começa a ficção.
É interessante notar que as paixões que surgem no final da trama são praticamente imperceptíveis durante o decorrer dela. O leitor atento pode até tentar apostar em um outro casal e acertar, mas a escolha dos casais que nos são apresentados ao fim da trama pode ser considerada quase aleatória, o que é feito quase que propositalmente pela autora.
O livro não gira em torno do romance entre casais, pois a intenção de Austen era nos apresentar personagens, cujas vidas são vazias de paixão e preenchidas, em seu lugar, por fofocas e picuinhas. Desta maneira, não suspiramos de encanto quando lemos "Emma", como leitores de livros como "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade" podiam esperar (e eu me incluo nesta lista). Para penetrar na história, portanto, temos de aprender a nos divertir com a confusão de sussurros e boatos, inerentes à fictícia cidade de Highbury.
Logo no princípio da leitura, podemos sentir tudo que vai se passar no decorrer do livro. A Srta. Woodhouse logo demonstra sua mania de opinar sobre todas as coisas, que, no decorrer do livro, torna-se algo muito familiar ao leitor. O casamento de Miss Taylor, antiga tutora de Emma Woodhouse, dá início à trama. Nossa heroína, por imaginar-se a responsável pela prosperidade da união, demonstra seu desejo por continuar em seu papel de casamenteira. O Sr. Knightley nos mostra que está sempre atento a cortar os excessos de nossa linda e inteligente, porém, por vezes, iludida (ou sonhadora) e incômoda, protagonista. Uma vez que os personagens principais, com suas devidas características, são introduzidos, eles não saem muito do seu curso de personalidade, ou seja, não são personagens cíclicos. Outros indivíduos são acrescentados à trama somente para ajudá-los a afirmar seus caráteres imutáveis. Assim, muitos personagens passam pela história sem afetá-la e sem levar o leitor a grandes emoções, e, ao final, a maior parte deles acaba feliz em um bom casamento, como é típico de nossa querida Jane.
Harriet Smith, uma moça ingênua que surge na cidade, é "adotada" por Emma, que pretende introduzi-la no que ela considera "uma boa sociedade". Através das instruções da Srta. Woodhouse, Harriet alterna-se entre paixões impróprias e mal advertidas e um vazio emocional absurdo, de maneira autômata, ou seja, sem pensar agir por si mesma. Ela é, na realidade, o tipo de amiga que Emma sempre quis ter para sentir que possui o controle de todos os acontecimentos: alguém que nunca reclama e nunca discute, sempre acreditando que o que nossa protagonista diz é a verdade absoluta. Apesar de convencer a si mesma da propriedade e sabedoria de suas ações, Emma não consegue ver que está frequentemente enganada, apesar das tentativas de Knightley de dissuadí-la disso.
Ainda, porém, que esqueçamos o foco principal da história, que são as intermináveis tentativas vãs de nossa protagonista de fazer os outros caírem em suas "armadilhas de amor", ainda podemos nos divertir com a maneira com que os habitantes de Highbury conspiram em passar o resto de suas vidas se desentendendo uns com os outros.
O primeiro caso de incompatibilidade na formulação de casais de nossa Emma surge quanto ela força Harriet a se apaixonar pelo Sr. Elton, ao passo que este ama a própria Srta. Woodhouse. O conceito de alguém ser encorajado a amar é uma coisa, mas a maneira ridícula com que Emma tenta convencer Harriet de que ela está tomando suas próprias decisões é absurda. O pior de toda essa embaralhamento emocional é que Harriet acredita que suas opiniões e ações são autônomas.
O romance possui um conhecimento profundo do caráter feminino e apresenta, com severidade, todas as falhas e debilidades que este possui. Ao mesmo tempo que nossa heroína mostra-se bela, sagaz e charmosa, vemos que ela possui um lado insensato ou, simplesmente, tolo, vaidoso, fútil e ilusório. Austen, no entanto, é capaz de nos mostrar sua criação com todos seus defeitos e, ainda assim, fazer-nos amá-la, enquanto que por outros personagens, como a Sra. Elton, que possui muitos dos defeitos da própria Emma, sentimos desprezo. A autora foi muito ousada em não fazer nenhum personagem completamente amável e, ao mesmo tempo, é por essa razão que a vida real está tão perfeitamente exposta neste livro.
Emma deve, com certeza, ser, em toda a literatura, o único exemplo de alguém que não faz nada, ainda que não intencionalmente. No entanto, nós, leitores, a perdoamos, porque, mesmo que suas fantasias acabem por machucar os sentimentos de outros, ela está tentando, com todas as suas forças, viver os delírios fictícios de sua mente. Uma pessoa que não ama o mundo das fantasias não deve ler essa obra-prima de Austen.
A autora opõe-se a fórmula pré-estabelecida dos romances de uma maneira geral, no momento em que permite o triunfo de uma heroína egoísta e mimada, sem insistir que uma lição de moral lhe seja dada. A única coisa que ela parece "aprender" é que, apesar de seu desejo inicial de permanecer solteira para sempre, por fim, ela percebe que precisa de um marido.
No decorrer da trama, nosso subconsciente tende a se perguntar "quem será a próxima paixão de harriet" ou "por quem Frank Churchill estará realmente apaixonado". Apesar destes relacionamentos possuírem um caráter quase infantil diante de romances românticos, eles demonstram a real interação entre homens e mulheres quando estes não sabem nada sobre as verdadeiras intenções do outro.
No século XIX, o matrimônio era tão importante que sua busca é pauta de preocupação e urgência. Por esse motivo, mesmo diante do grande do número de casais formados ao final do romance, muitos por força da comodidade ou interesse, apenas um deles possui perceptível amor romântico: o de Jane Fairfaix e Frank Churchill. O amor que Knithley sente por Emma possui um tom paternalista, ainda que seja bastante afetuoso. Podemos facilmente prever que seu papel de anjo guardião permanecerá imutável após o casamento.
Enquanto em outros romances, o amor é destruidor e capaz de mudar vidas, neste livro, ele é apenas uma maneira trivial de se passar os dias. Percebemos como as pessoas são tolas no que diz respeito às possibilidades do amor: facilmente enganadas, inconstantes e vaidosas, muitas vezes buscando não o amor, mas o status, o bom posicionamento diante da sociedade. A autora foi bem honesta neste sentido ao escrever a obra e é surpreendente que, apesar de todas essas verdades tão inconstantemente reveladas e até um pouco dolorosas, o livro tenha tornado-se duradouramente popular.
Ao fim, por tanto, como o título sugere, este é apenas um livro sobre Emma Woodhouse: um estudo da imperfeição, uma história sobre um doce nada. Se há um comparativo que pode encaixar-se perfeitamente no significado deste livro, ei-lo: enquanto que outros romances buscam dar-nos ideais no lugar de pessoas, este nos dá pessoas, com todos os seus trejeitos e imperfeições. Contemporâneas de Austen, como Mary Shelley (escritora de Frankestein) tentavam desafiar os homens utilizando-se de seus próprios jogos sobre ciência e religião, ao passo que nossa autora buscou ainda mais expor a essência da mulher de sua época, ou seja, como são as pessoas, de fato. Ela escreveu um livro que somente uma mulher poderia escrever, mas que todos, inclusive os homens, deveriam ler.


Video-curiosidades:

São muitas as adaptações desta obra tão magnífica em sua simplicidade rotineira.
Séries de televisão mais aintigas sobre a obra foram apresentadas em 1948 e em 1972.
Em 1995, o filme Clueless, ou, em português, As patricinhas de Beverly Hills, trouxe uma modernização da trama, ou seja, uma adaptação teen. Diferente de outras modernizações, nesta podemos facilmente perceber cada um dos personagens com suas respectivas características bem enfatizadas. Apesar de ser, a príncipio, um filme bobo de adolescentes, ele remete com ênfase à verdadeira essência do livro de Austen. Afinal, onde há mais fofocas, boatos e sussurros que no mundo da high school americana? Eu, particularmente, posso afirmar que adorei o filme na época que assisti (o que já faz um tempo). Outras séries americanas posteriores e mesmo atuais, mesmo sem a intenção, acabam, em sua futilidade, remetendo a uma das maiores escritoras de todos os tempos.
Em 1996, um filme, estrelando Gwineth Paltrow como Emma, trouxe ao cinema uma das melhores adaptações da trama, que tornou-se, por ser menor e, consequentemente menos cansativa, um pouco mais interessante que o próprio livro. Muitos díálogos são mantidos e as características dos personagens, bem como os acontecimentos mais importantes são muito bem estabelecidos no filme, sem mais delongas e excessos.
Ainda no ano de 1996, uma série de TV foi produzida, em que Kate Beckinsale fazia o papel de nossa adorada protagonista. Em 2009, foi a vez de Romola Garai introduzir-se no papel principal.
Recentemente, em 2010, uma comédia romântica indiana trouxe o tema à tona mais uma vez, com o filme Aisha, mais uma vez nos dando uma versão moderna do livro.

Estas são apenas algumas das adaptações existentes, que são muitas e variadas.


domingo, 2 de outubro de 2011

"Cem Anos de Solidão", Gabriel Garcia Márquez

Publicado em 1967, "Cien Años de Soledad" ("Cem anos de solidão") é o segundo e uma das mais aclamadas obras do ganhador do prêmio Nobel da literatura, Gabriel Garcia Márquez.
Com a mesma sintonia realística do seu último romance, já aqui postado, "El amor en los tiempos del cólera", e, no entanto, possuindo um caráter hiperbólico a ponto de aprofundá-lo na fantasia, o livro pode ser interpretado como uma síntese da história da humanidade.
Conta a história de uma família, de geração em geração, desde sua chegada e fundação da remota e fictícia cidade chamada Macondo até sua completa extinção, com a morte dos últimos membros da família.
O romance é muito rico em detalhes e buscar interpretá-lo iria reduzir o gigantesco leque de perspectivas, descobertas e mensagens que este transmite. Há um grande número de personagens, cujas histórias se entrelaçam, surgem e desvanecem a cada geração. Nossos muitos protagonistas (e, ao mesmo tempo, coadjuvantes) possuem os caráteres mais diversos. Uns são caricaturas dos seres humanos que nós conhecemos, outros são tão diferentes de qualquer pessoa já vista que é difícil acreditar que exista alguém assim. Mas, como é comum das famílias, percebemos um estereótipo nos seus integrantes, traços hereditários que, de uma maneira ou outra acabam por convergir em um ponto forte na personalidade da grande maioria: a solidão. É aí que encontramos a justificativa para o título de um livro que retrata a história de uma família tão grande que, em todas as gerações, possui muitos componentes (com exceção das gerações finais) convivendo juntos, inúmeras festas e grandes banquetes.
É um livro que apresenta os devaneios do homem, desde a lúcida loucura do primeiro José Arcadio Buendía até a história de Rebeca, a órfã que comia areia e cal de paredes.
As marcas de sofrimento das pessoas tornam-se físicas, palpáveis, fazem com que elas se tranquem em um mundo só delas. São muitos os exemplos dessa afirmação, mas a primeira Amaranta, que carrega eternamente uma atadura preta representativa de sua tristeza pela morte de Pietro Crespi é uma boa amostra.
Uma coisa torna-se vulgar ao leitor na narrativa, não por seu significado real, mas por sua naturalmente constante repetição no decorrer de cem anos: a morte.
A existência da família toma um caráter de parábole invertida (permita-me, matematicamente, afirmar), visto que inicia-se de um nada, aos poucos enchendo-se de glórias, atinge seu auge em determinado ponto, onde todos tomam conhecimento de sua existência, e volta a decair, entrando no esquecimento.
Um ponto muito forte que o livro aborda e muito me interessou é o fato de que certos acontecimentos que provocaram um extermínio de três mil homens na cidade são, através de artimanhas políticas, completamente apagados da memória da população e os poucos que conhecem e afirmam a ocorrência real dos fatos são tidos como loucos. Os livros de geografia e histórica desconhecem os fatos, o que acarreta na ignorância também de gerações futuras. Essa passagem é extremamente verossímil a qualquer realidade da humanidade, em qualquer tempo.
A passagem a seguir não é destacada por mim, mas por minha paixão pela literatura, comum à do personagem que a compõe.
"Em compensação, não houve poder humano capaz de persuadi-lo a não levar os três
caixotes quando regressou à sua aldeia natal, e soltou impropérios cartagineses contra os inspetores da estrada de ferro que tentavam mandá-los como carga, até que conseguiu ficar com eles no vagão de passageiros. “O mundo terá acabado de se foder”, disse então, “no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.” Isso foi a última coisa que o ouviram dizer."
Abaixo, apresento uma árvore genealógica da família (que não está com uma visualização muito boa, mas é só clicar na figura), que seria de grande ajuda para melhor localização dos fatos e dos personagens durante a leitura do livro:
Ficheiro:Buendia.gif
Dentre tantas outras artimanhas, o livro apresenta as evoluções tecnológicas de um centenário, bem como suas involuções, como já afirmei com o comparativo da parábola. A história inicia-se quando as coisas não possuíam sequer um nome e passa pela chegada do telefone.

"O público, que pagava dois centavos para partilhar das vicissitudes dos
personagens, não pôde suportar aquele logro inaudito e quebrou as poltronas. O alcaide, por insistência do Sr. Bruno Crespi, explicou num decreto que o cinema era uma máquina de ilusão que não merecia os arroubos passionais do público. Diante da desalentadora explicação, muitos acharam que tinham sido vítimas de um novo e aparatoso negócio de cigano, de modo que optaram por não voltar ao cinema,considerando que já tinham o suficiente com os seus próprios sofrimentos para chorar por infelicidades fingidas de seres imaginários. Alguma coisa de semelhante aconteceu com os gramofones de manivela que as alegres matronas da França trouxeram, em substituição aos antiquados realejos, e que tão profundamente afetaram por algum tempo os interesses da banda de música. No princípio, a curiosidade multiplicou a clientela da rua proibida, e soube-se até de senhoras respeitáveis que se disfarçaram de malandro para observar de perto a novidade do gramofone, mas o observaram tanto e de tão perto que muito rapidamente chegaram à conclusão de que não era um moinho de brinquedo, como todos pensavam e como as matronas diziam, mas um truque mecânico que não podia se comparar com uma coisa tão comovedora, tão humana e tão cheia de verdade cotidiana como uma banda de música. 
 [...] Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a capacidade de assombro e mantivesse oshabitantes de Macondo num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam oslimites da realidade"

O último personagem a desaparecer do mapa é Aureliano Babilônia. Seu sobrenome, acredito eu, como tudo nos livros do aclamadíssimo Gabriel, não é um mero acaso. Ele remete aos Jardins da Babilônia, dos quais tanto escutamos falar e, no entanto, não há evidências de sua existência.
O capítulo final do livro é, com absoluta certeza o mais interessante, talvez por ser mais explicativo. Ele é constitui a parte feliz da história de Aureliano da Babilônia, fazendo uma retrospectiva de todos os contextos marcantes da família (que não são parcos) e decifrando o enigma dos pergaminhos deixados por Melquíados (cigano que surge logo no início da obra e toma grande importante em toda sua duração por causa de seus ensinamentos).
"Naquele Macondo esquecido até pelos pássaros, onde a poeira e o calor se fizeram tão tenazes que dava trabalho respirar, enclausurados pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor numa casa onde era quase impossível dormir por causa do barulho das formigas ruivas, Aureliano e Amaranta Úrsula eram os únicos seres felizes, e os mais felizes sobre a terra.
 [...]
Entretanto, as notícias se foram fazendo pouco a pouco tão incertas, e tão esporádicas e melancólicas as cartas do sábio, que Aureliano se acostumou a pensar neles como Amaranta Úrsula pensava no marido, e ambos ficaram boiando num universo vazio, onde a única realidade cotidiana e eterna era o amor 

 [...]
Muitas vezes foram acordados pelo tráfego dos mortos. Ouviram Úrsula lutando contra as leis da criação para preservar a estirpe, e José Arcadio Buendía procurando a verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o Coronel Aureliano Buendía seembrutecendo com os enganos da guerra e os peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo 
agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam a se amar com as suas naturezas de fantasmas, muito depois de que as outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso da miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens."
A obra entrelaça revoluções e fantasma; incesto, corrupção e loucura, tratando tudo com uma naturalidade inerente somente ao realismo fantástico, ao qual pertence. 

Nas notas da tradutora, podemos encontrar: "A importância contrapontística existencial dos  insetos no  romance é facilmente verificável. Basta lembrar as borboletas amarelas de  Mauricio Babilonia, os escorpiões que rondavam o banho de Meme e de Rebeca, a  entomologia  de Gastón, as formigas ruivas decisivas neste capítulo final, as sanguessugas que quase matam Úrsula , a mordida de  escorpião  que deixa Arnaldo de Vilanova impotente etc... "

Coincidência ou não, minha edição de "Cem Anos de Solidão" é o único livro que possuo que está sendo carcomido pelas traças.
De estilo único e excêntrico, esta obra, que edifica-se entre as mais importantes da literatura latino-americana, é uma leitura mais que prazerosa, surreal.


Acredito que um filme não conseguiria contemplar com louvor as inúmeras tramas e enlaces desta obra magnífica.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

"Harry Potter", Joanne Kathleen Rowling

Este foi um post que nunca pensei escrever. Sete livros, inúmeras histórias. Tentar resumí-las seria simplicá-las. Não tenho a capacidade de relatar o poder das aventuras vividas por Harry Potter, Rony Weasley e Hermione Granger sem retirar o encanto que envolve toda a trama. Minha admiração pela escritora britânica Joanne Kathleen Rowling após a criação de personagens tão fantásticos e histórias tão misteriosas e repletas de amor é inestimável.
A série que encantou milhares de crianças e adultos do mundo todo foi iniciada em 1997, com "Harry Potter e a Pedra Filosofal; em 1998, lançou-se "Harry Potter e a Câmara Secreta"; em 1999, "Harry Potter e o Prisioneito de Azkaban"; em 2000, "Harry Potter e o Cálice de Fogo"; após três anos de espera, "Harry Potter e a Ordem da Fênix"; em 2005, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe"; e, finalmente, em 2007, "Harry Potter e as Relíquias da Morte".
O mistério e a aventura ornamentam o livro, requisitando a atenção do leitor e sua espera impaciente pelas obras subsequentes. Mas entre tantas batalhas, tantas lutas contra o mal, tanta hipocrisia, falsidade, tantas notícias discrepantes da realidade, influência da mídia, ambição e preconceito; entre tantos males da nossa humanidade tão bem expostos no livro e tão presentes na realidade dos personagens, eis que surge uma sucessão de valores inestimáveis que as pessoas parecem ter perdido no decorrer dos anos: a lealdade, a amizade, o amor, a honestidade, a coragem, a esperança, a perseverança, a fé. É essa a real magia do livro. Não são os poderes e os feitiços que vencem a força do mal, e sim os sentimentos honrosos, o valor que se dá aos amigos, à família. Em muitas vezes, nossos personagens se encontram numa encruzilhada, mas sempre fazem a escolha de seguir o caminho do bem. Há também uma relação de ajuda mútua, de não permitir a corrupção do outro quando este fraqueja, de estar lá em todos os momentos, bons ou ruins. O crescimento em termos de personalidade e caráter e a responsabilidade moral criada pelos personagens é norte para nos guiar (sim, a nós, que estamos vendo tudo à distância) na estrada certa.
No primeiro filme, os três queridos mosqueteiros

Os livros amadurecem junto com seus leitores, em uma relação de confidência e aprendizado contínuos. Nos sentimos tão próximos de Harry, Rony e Hermione, quanto se estivéssemos vivendo a mesma realidade deles. Eles são os amigos que qualquer um gostaria de ter.
É impossível para mim falar de Harry Potter sem emoção, como uma mera expectadora, como faço com os outros livros, por mais maravilhosos que sejam. Afinal, essa série de obras magníficas tocou a alma da criança que fui e, por isso, deixou marcas concretas na pessoa que sou.
Por mais que o queiram retratar como um livro infantil, misturando-o ao leque de bestsellers infantis do mundo de hoje, não existe comparação entre Harry Potter e esses tantos outros livros de aventura que surgem. É inestimável a quantidade de valores que o livro transmite. Não é apenas bem elaborado, é um livro que parece estar fora do contexto de livros de sua época: é especial. Como se a autora buscasse, nos levando a uma realidade totalmente nova e desconhecida, em um mundo de bruxarias do bem e do mal, voltar no tempo para dar nascimento a uma história que deve ser deixada junto a obras que somente em outros tempos ouviu-se falar. Esses livros devem sim figurar entre os grandes escritos da humanidade, como poucos da atualidade.
Harry com a linda Edwiges, por quem eu ( e comigo, acredito, milhares) tanto sofri.

Nenhum livro da série supera o outro. Alguns divergem entre si pelo fato de serem mais aventura ou mais mistério, além das muitas outras definições que podemos lhes dar. Em todo caso, eles são compatíveis com a mentalidade da principal geração que os lê. Há um salto de três anos na publicação do quarto livro em relação a do terceiro. Em minha visão, isso deve ao fato de haver a necessidade de uma maior maturidade dos leitores para absorverem ou mesmo "sobreviverem" (se me derem a permissão de um exagero) aos acontecimentos do quarto livro.
 Comecei a ler aos 8 anos e fiquei até os 11 na esperança de receber a carta de Hogwarts. As histórias e acontecimentos de cada livro já não são uma constante em minha cabeça, afinal, são muitos. No entanto, quando lembro desses livros tão queridos, desses personagens tão amados (por mim e milhares de pessoas de todo o mundo), o que fica são as emoções que eles foram capazes de me proporcionar, a palpitação do coração, as lágrimas, as alegrias que cada página me trazia, além de uma saudade enorme e uma espera constante que, num passe de mágica, um outro livro surja para que eu possa penetrar novamente nesse mundo tão fantástico e maravilhoso e, quem sabe, até ajudar Harry, Rony e Hermione a salvar o mundo dos bruxos e dos trouxas mais uma vez.
No último e tão esperado filme

Video-curiosidades:

Apesar de não ser necessário, deixo grafada a série de filmes que adaptou os livros para o cinema.
Foi feita a adaptação cinematográfica de "Harry Potter e a Pedra Filosofal em 2001; em 2002, lançou-se "Harry Potter e a Câmara Secreta"; em 2004, "Harry Potter e o Prisioneito de Azkaban"; em 2005, "Harry Potter e o Cálice de Fogo"; em 2007, "Harry Potter e a Ordem da Fênix"; em 2009, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe"; em 2010, "Harry Potter e as Relíquias da Morte", parte 1 e, finalmente, em 2011, o grand finale: "Harry Potter e as Relíquias da Morte", parte 2, que é o que me leva a escrever o post, visto que agora o encanto de esperar por Harry Potter só restou no coração.
Para os amantes do nosso lindo bruxinho, por vezes, os filmes foram indignantes. Afinal, como podem retirar uma cena tão magnífica ou tão explicativa ou tão necessária para o entendimento da história como aquela ou aquela outra? Bom, o cinema nem sempre é perfeito e é muito difícil transformar até 700 páginas ou mais em duas horas de filme. Mas devo afirmar que a maneira como eu imaginava Hogwarts e o trem de Hogwarts, dentre tantas outras coisas, a partir da descrição de Rowling, é EXTREMAMENTE semelhante ao filme. E nesse aspecto, portanto, eu o acho bem fiel. Se há uma coisa que os filmes souberam captar é a iluminação meio dark e misteriosa da escola, bem como a caracterização dos personagens, principalmente na personalidade (eu bem que achava que Harry devia ser um pouquinho mais alto, mais magro, rosto mais fino e olhos um pouquinho mais verdes, mas tudo bem). Digamos que, nos filmes, quem roubou mesmo a cena foi Hermione, o que não é prejuízo para nenhum dos outros atores, que também desempenharam seu papel com glória, principalmente depois de uma maior maturidade. Como na maioria das vezes, portanto, eu dou preferência à leitura dos livros, no entanto, os filmes também tem sua poção de mágica.


Reflexão especial: Por que somos nós os trouxas?


Lord Voldemort é a personificação do ódio, do rancor, do preconceito, da inveja, da deslealdade, da traição, da mentira: personagens que figuram em nossa realidade por escolha nossa. Por vezes, preferimos até não nomeá-los, para não ferirmos a nós mesmos, admitindo nosso lado mal. No entanto, precisamos parar de chamá-los "Você-Sabe-Quem" e aceitarmoss que temos, sim, sentimentos ruins, lutando contra eles a partir de então. São nossas ESCOLHAS que nos tornam quem realmente somos, como aprendemos com o Chapéu Seletor. Somos trouxas, porque temos medo de mudar essa realidade de individualismo e corrupção, de picuinhas, fofocas, maldades, porque podemos viver num mundo de paz e de amor, mas nos sufocamos em nossos próprios desejos e paramos de olhar para o outro com repeito. Não são as coisas materiais que tocam nosso coração, mas os sentimentos puros e verdadeiros. Poderia-se divagar um pouco mais sobre o assunto, dada a vastidão que "Harry Potter" nos oferece com suas metáforas extremamente apropriadas. De qualquer maneira, acho que chamar-nos trouxas foi uma crítica muito bem aplicada.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

"O Guarani", José de Alencar

"O guarani", primeiro romance histórico-indianista do renomado escritor brasileiro José de Alencar, foi publicado pela primeira vez em 1857, sob a forma de folhetim no Diário do Rio de Janeiro, o que era muito comum no péríodo. A obra expõe a vida dos colonos e seu relacionamento com os indígenas nos primeiros tempos de Brasil.
O livro se inicia com a descrição da casa onde D. Antônio Mariz, fidalgo português, viera morar com sua família: sua esposa D. Lauriana, seus filhos D. Diogo e Cecília e Isabel, sua sobrinha que, como saberemos no decorrer do livro, é filha de D. Antônio com uma indígena.
Na vida dessa família, se colocam outros persnagens por força das circunstâncias: o jovem cavaleiro, Álvaro de Sá, a quem Cecília havia de ser prometida; o ambicioso e devasso, Loredano; e um índio goitacá, que havia salvado a vida de Cecília e por ela criara uma espécie de adoração e devoção, nosso protagonista, Peri.
Apesar de selvagem, Peri era honrado, de coração grande, forte, inteligente e destemido. Possuía todas as características inerentes a um herói e é a autêntica expressão da nacionalidade brasileira. Por obrigação e descendência, deveria ser o líder da tribo dos goitacás, mas, no dia em que vê sua senhora Ceci, o amor não mais o permite sair do lado dela. No início, Cecília o reprime e o afasta por medo, no entanto, aos poucos, começa a aceitá-lo como seu escravo e torna-se amiga dele, em agradecimento às tantas vezes que o índio iria salvar sua vida no decorrer do livro. Por causa do tratamento que Cecília lhe dá inicialmente, Peri começa a chamá-la de Ceci, que é um verbo da língua guarani que significa magoar, doer. Além desta inteligente relação, outros pensamentos e sentimentos do índio nos fazem crer que este possui uma alma de poeta, um poeta das matas brasileiras.
Os três personagens já citados (Peri, D. Álvaro e Loredano) ficam encantados, de maneiras diferentes pela doce e meiga Cecília. D. Álvaro tem por ela um amor no sentido mais puro da palavra, Loredano sente uma paixão ardente e Peri, como anteriormente notado, possui um amor devotivo por sua senhora.
No decorrer do livro, o coração de D. Álvaro é conquistado pelo amor de Isabel, mas sua união se dá apenas quando estão para morrer.
São muitos os fatos que se passam na obra, mas o clímax do livro ocorre com uma revolta dupla contra a família de D. Antônio, da parte de seus homens, liderados por Loredano e da parte dos índios aimorés, após a morte acidental, provocada por D. Diogo, de uma índia da tribo. Para salvar Cecília, Peri precisa partir com ela, mas, antes disso, necessita de ser batizado como cristão. Após a partida do índio e da donzela, ao longe, se vê a explosão da casa. Durante dias, Peri e Cecília rumam sem destino. Peri sempre com o mesmo cuidado e devoção por sua senhora.

"- Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão pouco tempo que adormeceste!
- O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua senhora.

- E por que tua senhora não velará também sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!

O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina:
- Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.
Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.
- E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.
- Peri... é teu escravo, respondeu o índio naturalmente.
A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:
- A rolinha não tem escravo.
Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu de seus lábios:
- Teu...
Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.
- Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.
Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de sua felicidade."


Em certo ponto, são surpreendidos por uma forte tempestade, que se transforma em dilúvio. Abrigados no topo de uma palmeira, Cecília espera pela morte. Peri conta, então, a ela uma lenda indígena, segundo a qual Tamandaré e sua esposa se salvaram de um dilúvio abrigando-se na copa de uma palmeira desprendida daq terra. Ao término da enchente, eles desceram da palmeira e povoaram a Terra. As águas sobem, Cecília se desespera, mas a lenda de Tamandaré parece que irá se repetir.
Demonstrando uma certa semelhança com a cultura católica (o dilúvio e a arca de Noé), há a alusão a um silogismo religioso com as crenças indígenas. A sobrevivência dos dois diante da morte dos outros os apresenta, portanto, como os "pais" da raça brasileira que viria a ser criada, fundamentada no índio e no branco (com a exclusão do negro, pois, no período, este era considerado com forte preconceito e ainda não se admitia sua participação na formação do Brasil).
Cecília, loura dos olhos azuis, tenra e meiga, comparada por Peri a uma imagem de Nossa Senhora, é a personificação romântica da raça branca. É o ideal feminino do romantismo, associada a figuras incorpóreas ou assexuadas: anjo, criança, virgem. Sua prima Isabel é o oposto desta idealização; é a representação da voluptuosidade, do desejo. Com relação a Ceci, as referências ao amor físico (mesmo o de Loredano) se dão de maneira indireta, sugestiva, superficial; exatamente o contrário do que ocorre com Isabel.  
Na obra, o naturalismo é eminente; há uma grande exaltação da fauna e flora brasileiras do início da colonização. Também é muito forte a presença do preconceito dos colonos com relação aos nativos.
Apesar do romantismo excessivo do livro, do detalhamento exacerbado da natureza, de sua linguagem poética e, por vezes, eufemista, metafórica e hipérbólica, que pode não agradar leitores que tem pressa pelo desenrolar da trama, é de uma história extremamente interessante. Mesmo que a leitura da obra seja iniciada por um motivo ou outro que não o romance em si, no decorrer do livro, nos infiltramos nas histórias, ansiamos pelas próximas páginas, nos perdemos nas florestas de um Brasil colonial tão pouco civilizado. Corremos e caçamos com Peri, ansiamos desesperadamente, com Ceci, a volta do índio, esperando que ainda esteja vivo.
José de Alencar é capaz de nos fazer penetrar em suas histórias mais diversas, por mais distantes que elas sejam de nossa realidade. Essa é a beleza de escritores como ele: a capacidade de fazer com que o leitor, em qualquer sociedade, em qualquer período de tempo, viva intensamente uma história totalmente fora de seu contexto.
É um livro cuja leitura é indispensável para quem deseja conhecer os primórdios da civilização brasileira, sua flora e fauna, de uma maneira romântica e extremamente penetrante.

Video-curiosidades:

O Guarani foi filmado pela primeira vez em 1911. Adaptações cinematográficas surgiram também nos anos de 1916, 1920, 1026, 1950 e 1079. Sua adaptação mais recente, com Márcio Garcia, Glória Pires, Marco Ricca, dentre outros, foi filmada em 1996.
Em 1991, Angélica foi Ceci em uma minissérie apresentada pela TV Manchete.

sábado, 2 de julho de 2011

"O Pequeno Príncipe", Antoine de Saint-Exupéry

Escrito pelo francês Antoine de Saint-Exupéry e publicado em 1943, "Le Petit Prince" é uma das obras clássicas mais belas e tocantes da literatura mundial. Apesar de ser escrito para crianças, tem a intenção de atingir as pessoas grandes. Posso afirmar, inclusive, que sou parte da manifestação desta múltipla interpretação que o livro oferece, pois o li na infância e, recentemente, o reli, criando, a cada leitura, uma perspectiva diferente das cenas e acontecimentos. Um livro multifacetado, que apresenta uma interpretação embasada no que está escrito na alma de seu leitor. 
Mas como poderia o autor previamente conhecer o interior de seu público de milhares, de todas as épocas posteriores a ele, de todos os pensamentos? É exatamente esta a mágica da obra, é por isso que ela encanta pessoas do mundo inteiro, de todas as idades: "O Pequeno Príncipe" parece ter sido escrito para cada um de nós.
Logo no início, nos é apresentada uma metáfora: um desenho que pode parecer um chapéu e, no entanto, é uma jibóia que engoliu um elefante. Só aqueles que não perderam ainda sua alma infantil podem decifrar o enigma do que, de fato, representa o desenho. Da mesma maneira, só aqueles que ainda são capazes de possuir sentimentos puros, verdadeiros são capazes de compreender as inúmeras lições do pequeno príncipe, refletir sobre suas ações de acordo com as palavras dele e guardar tudo isto no coração.
Postarei algumas passagens do livro que achei de grande interesse interpretativo. Não farei sua interpretação para que os leitores busquem perceber o que está escrito nas entrelinhas.
A história se inicia com seu narrador, que cai em pleno deserto do Saara com seu avião. E, após dias tentando consertá-lo sem sucesso, encontra o pequeno príncipe. Não se sabe como uma criança como aquela pode parar em pleno deserto do Saara, mas quando o príncipe começa a contar sua história, começamos a compreender. Ele vinha de um asteróide pequeno, B612, onde vivia com uma flor. A flor era arrogante e orgulhosa e, no entanto, o principezinho a amava. Todos os dias ele tirava as larvas de sua flor, mas deixava vivas duas ou três.
"É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas."
Em seu planeta, ele tinha problemas com raízes de baobás, que ele tinha de retirar todos os dias. Por isso, precisava de um carneiro que comesse esses baobás.
"Fiz notar ao principezinho que os baobás não são arbustos, mas árvores grandes como igrejas. E que mesmo que ele levasse consigo todo um rebanho de elefantes, eles não chegariam a dar cabo de um único baobá.
[...] 
Mas notou, em seguida, sabiamente:
- Os baobás, antes de crescer, são pequenos."
Antes de chegar à terra, o principezinho havia passado por vários outros planetas, onde encontrou pessoas as mais diversas.
O primeiro deles foi o Rei, que vivia em um asteróide muito pequeno e pensava governar sobre o Sol e as estrelas. Para ele, todos eram súditos, pois assim é para os reis. No entanto, ele possuía razões coerentes para acreditar que tudo que ele ordenava era cumprido.
"É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que se lance ao mar, farão todos uma revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis."  
E entre essas ordens razoáveis estava, por exemplo: "Que o Sol repouse durante o pôr-doSol".
O rei queria que o principezinho ficasse em seu planeta, tornando-o juiz. No entanto, o planeta, à excessão da presença do rei, era deserto.
 "- Tu julgarás a ti mesmo, respondeu o rei. É o mais difícil . É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar aos outros. Se consegues julgar-te bem, eis um verdadeiro sábio."
No segundo planeta que visitou, o pequeno princípe encontrou um vaidoso, que achava que todos eram admiradores, pois assim é para os vaidosos. Sua alegria se dava em aplausos e elogios. A única coisa que ele almejava era ser admirado.
No terceiro planeta, o principezinho conheceu um bêbado que bebia por vergonha... de beber. E aqui a obra não trata somente da bebida, mas da incoerência humana.
No quarto planeta, conheceu um homem de negócios que vivia a contar as estrelas, pois pensava que as possuía. Mas qual a utilidade de possuir coisas somente para contá-las. O principezinho lhe disse:
"Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe. É últil para meus vulcões, é útil para minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas..."
No penúltimo planeta, conheceu um iluminador de lampadas. O primeiro personagem que realmente possuía um trabalho útil. No entanto, seu planeta girava cada vez mais rápido e cada vez mais rápido ele precisava acender e apagar as lâmpadas. Havia um tempo em que este serviço era realmente coerente, visto que o tempo entre o amanhecer e anoitecer era longo. Neste tempo, foi criado um regulamento que o iluminador seguia até então. Ele representa o conservadorismo e a alienação. É, em sua simplicidade, um dos personagens mais representativos do livro.
Por fim, ele visita o planeta de um geógrafo que não conhece seu próprio planeta, pois "um geógrafo é  muito importante para estar passeando". Por isso, ele precisa de exploradores, que não existem em seu planeta. Ele representa as pessoas que precisam da narração de outras para conhecer as coisas, enquanto que para o principezinho é necessário esforço para conhecer as coisas.
Já na terra, o príncipe conhece uma raposa e então se dá o diálogo mais belo e conhecido do livro.
"-Os homens,disse a raposa,têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que eles fazem. Tu procuras galinhas?
-Não,disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida,disse a raposa.Significa "criar laços...".
-Criar laços?
-Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
-Começo a compreender,disse o principezinho...Existe uma flor...eu creio que ela me cativou...
[...]
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa nenhuma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa nenhuma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estaria inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.- Que é um rito? perguntou o principezinho.- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. 
[...]Assim, o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada.
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo. 
[...] E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa... "
Após este diálogo, não há condições de tecer comentários.
Ao final, para retornar a seu planeta, o príncipe pede a uma cobra que o morda. Ao aviador, ele parece estar morrendo. O príncipe, antes se explica:
"Tu compreendes. É longe demais. Eu não posso carregar esse corpo. É muito pesado."
Deste trecho, podemos também retirar um leque de interpretações, inclusive espirituais e religiosas, as quais deixarei para os leitores.
O enigma final sobre a morte do pequeno príncipe nos faz refletir: dependendo de nossa capacidade de ver o lado bom das coisas e imaginar, consideramos o principezinho morto ou não. É a velha história de ver o copo meio cheio ou meio vazio. Quando desconhecemos o fim da história, cabe ao nosso otimismo fazer o fim feliz ou triste.
Temo que meus comentários sejam parcos e pobres diante da vastidão de interpretações e lições que a obra fornece. Se há um conselho, porém, que posso lhes dar; se há um livro, dentre todos, que merece ser lido e gravado no coração, "O Pequeno Príncipe" é este.

Obs.: Na maior parte das edições do livro e nesta postagem, as aquarelas são do autor.

Video-curiosidades:

Em 1974, foi lançado o musical "The Little Prince".
Na década de 80, uma série chamada "As aventuras do pequeno príncipe" surgiu na TV.
Uma nova série de desenhos animados já foi lançado e está fazendo sucesso em outros países.
São diversas as adaptações deste livro e a escolha destas três para citar foi aleatória, visto que eu não tive contato com nenhuma delas. No entanto, o livro é insuperável.

sábado, 4 de junho de 2011

"A Menina que Roubava Livros", Markus Zusak

Para dar sequência a série de "best-sellers" da atualidade, exponho um livro muito tocante e bem elaborado, outra excessão à minha regra de que os novos autores publicam livros vazios.
"The Book Thief", escrito por Markus Zusak e publicado em 2006, é um romance contemporâneo, que retrata a vida numa Alemanha pobre durante a Segunda Guerra Mundial de uma maneira apaixonante e sutilmente trágica.
O livro é narrado pela morte, que nos conta a história de Liesel Meminger, uma menina que atravessou sua vida três vezes e conseguiu, dessa maneira, ganhar a afeição da colhedora de almas.

"É só uma pequena história, na verdade, sobre, entre outras coisas: 
* Uma menina 
* Algumas palavras 
* Um acordeonista 
* Uns alemães fanáticos 
* Um lutador judeu 
* E uma porção de roubos 
Vi três vezes a menina que roubava livros."
O primeiro encontro das duas se dá no dia da morte do irmão de Liesel, durante uma fuga que ela fazia com sua mãe. Nesse dia, nossa ladra inicia sua série de roubos de livros, roubando o "Manual do Coveiro", depois do enterro de seu irmão. A mãe da menina, comunista e fugitiva, leva ela para viver na rua Himmel, onde era mais seguro. O casal Hubberman fica responsável de cuidar da menina. São pessoas de vida simples, mas que, ao longo do tempo, ensinam a Liesel diversas lições sobre a vida, a solidariedade e o amor verdadeiro. Hans, o pai adotivo de Liesel, cria um vínculo muito forte com a menina, vínculo este formado através da paixão pela leitura. Outra forte amizade feita pela garota é com seu vizinho, Rudy Steiner. A princípio, os dois não se davam muito bem, mas, como é comum das histórias, aos poucos eles vão adquirindo sentimentos muito fortes um pelo outro, o que poderia vir a tornar-se mais que amizade, não fosse a morte de Rudy ainda bastante jovem. Confesso que este personagem me fascina de uma maneira que não consigo explicar. Mas, ao que parece, não é só a mim:

"E não sou muito boa nessa história de consolar, especialmente quando tenho as mãos frias e a cama é quente. Carreguei-o  com delicadeza pela rua destroçada, com sal nos olhos e o coração mortalmente pesado. Observei por um instante o conteúdo de sua alma, e vi um menino pintado de preto, gritando o nome de Jesse Owens ao cruzar uma fita de chegada imaginária. Vi-o afundado até os quadris em água gelada, perseguindo um livro, e vi um garoto deitado na cama, imaginando que gosto teria um beijo de sua gloriosa vizinha do lado. Ele mexe comigo, esse garoto. Sempre. É sua única desvantagem. Ele pisoteia meu coração. Ele me faz chorar.  
[...] 
— Vamos, Jesse Owens... 
Mas o menino não acordou. 
Incrédula, Liesel afundou a cabeça no peito de Rudy. Segurou seu corpo amolecido, tentando impedir que pendesse para trás, até que precisou devolvê-lo ao chão massacrado. E o fez com delicadeza. 
Devagar.  
Devagar. 
— Meu Deus, Rudy... 
Inclinou-se, olhou para seu rosto sem vida, e então beijou a boca de seu melhor amigo, Rudy Steiner, com suavidade e verdade. Ele tinha um gosto poeirento e adocicado. Um gosto de arrependimento à sombra do arvoredo e na penumbra da coleção de ternos do anarquista."
Os Hubberman, pessoas de grande coração, acolhem um judeu fugitivo chamado Max, com quem Liesel também faz fortes laços de amizade.
A morte de Rudy é seguida da morte de quase todos os outros personagens, inclusive do querido "papai". A única sobrevivente é nossa pobre ladra de livros, que, trancada no porão, não é atingida pelo bombardeio que destroça toda a rua Himmel. Ela fica sozinha. Mas a história não acaba aí e, de certa forma, o livro busca um final, talvez não feliz, mas com certeza menos triste. No fim, ela reencontra seu querido Max.
"Por fim, em outubro de 1945, um homem de olhos alagadiços, plumas de cabelo e rosto escanhoado entrou na loja. Aproximou-se do balcão. 
— Há alguém aqui com o nome de Liesel Meminger? 
— Sim, ela está lá nos fundos — disse Alex. Ficou esperançoso, mas queria ter certeza. — Posso perguntar quem a está procurando? 
Liesel saiu. 
Os dois se abraçaram e choraram e desabaram no chão. "

Há uma incógnita no romance em termos de seu sentimentalismo. Por ser contado pela morte, deveria ser de certa maneira frio e pouco minucioso. No entanto, até a morte comove-se com a história da pequena Liesel e nós, pobres leitores, somos incapazes de não nos envolver e sofrer junto com a menina.
Os personagens - com excessão de alguns, como Hans Hubberman - de certa maneira reprimem seus sentimentos.A personalidade de Rosa Hubberman é um exemplo dessa frieza contraditória, pois, de uma maneira geral, demonstra falta de sentimentos, mas em certos instantes, é perceptível seu amor pelas pessoas que a rodeiam. Outro exemplo é a dificuldade que Liesel tem de demonstrar seus sentimentos a Rudy - ela o amava. A menina possui um caráter fechado, consequência das terríveis situações que vivera, mas, por outro lado, abre completamente seu coração a seu "papai" e a Max.
Um caráter interessante no livro é o fato de apresentar a morte como uma mera "operária", responsável por recolher as almas sem vida. A face assustadora do personagem "morte" é completamente desmistificada: ela não é mais a responsável por tirar a vida. Na verdade, nunca fora, e, mesmo assim, aprendemos a temê-la. Os verdadeiros culpados são apresentados na obra: os homens.
O livro nos arrebata, nos tira de nossa zona de conforto, nos apresentando uma realidade longínqua e, nos dias de hoje, nada comum. Os destroços da guerra, tanto físicos quanto psicológicos (deixados em Liesel), são expostos de uma maneira trágica, porém doce; sentimental, na tentativa de ser fria e objetiva.
Ainda que se passando durante a Segunda Guerra Mundial, é uma história de amor e esperança. Ainda que contada de maneira distante, nos prende da primeira a última página. Particularmente, reconheci-me na paixão de Liesel pelos livros, identificando-me com ela. Da mesma maneira, no decorrer do livro, podemos nos encontrar na personalidade de cada um dos personagens.
Finalizo esse post como a morte finaliza seu livro e faço minhas suas palavras:

"• UMA ÚLTIMA NOTA DE SUA NARRADORA • 
Os seres humanos me assombram."

Video-curiosidades:

Já foi dada a confirmação de que esta obra tão magnífica ganhará adaptação cinematográfica. A Fox Films comprou os direitos autorais e há rumores de que o filme seja dirigido por Tim Burton. Essa última informação, no entanto, é incerta. Só nos resta esperar!