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domingo, 2 de dezembro de 2012

"Um Conto de Natal", Charles Dickens

Poucos personagens, em contos ou em vida, são capazes de suportar a teimosia sem tamanho do velho Scrooge. Não é, portanto, improvável, que o protagonista da história que surgiu em 1843, criação do inglês Charle Dickens, esteja tão vivo na mente dos leitores atuais quanto estivera na dos vitorianos. Foi com essa figura peculiarmente perversa que "A Christmas Carol" tornou-se uma obra amplamente reproduzida e adaptada até os dias de hoje. A óbvia (e abrupta) ciclicidade de seu personagem nos traz uma narrativa não somente comovente, mas, principalmente, interessante, pois, de fato, o ciclo é completado. Diferente de personagens que do mal, vão ao bem e vice-versa, Scrooge passa de um jovem de coração puro a um homem corrompido pela filosofia capitalista e, enfim, novamente retorna aos valores essenciais ao ser humano.
Ebenezer Scrooge era um homem amargo, ranzinza e mesquinho, que odiava o Natal. Não tinha compaixão, nem piedade. Ele mantinha uma empresa, junto com seu sócio, Marley, que também não era muito maior em espírito que o outro. Marley morre, sozinho, em uma véspera de Natal. Não há quem lamente sua morte ou chore por sua falta, nem mesmo seu grande companheiro de negócios há anos, Scrooge. Sete anos depois, o velho rabugento, protagonista de nossa história, recebe a visita do fantasma de Marley. Acorrentado e sofrendo por todos os males que fez (ou bens que não fez) no mundo dos vivos, ele vem para introduzir a visita de outros três fantasmas que virão no decorrer da noite para, através das imagens do passado, do presente e do futuro, dar mais uma chance de mudança a Scrooge. O fantasma do passado vem para mostrar os momentos felizes, bem como os tristes, do passado de Scrooge: o desprezo do pai, o carinho da irmã, o encontro de um grande amor e sua subsequente perda, quando a mesquinhez começa a penetrar o espírito de Scrooge. O do presente vem mostrar os natais que se passam nas casas das famílias de alguma maneira próximas a Scrooge: o ódio que a esposa de seu empregado sente pela perversidade dele e a carência financeira da família, fruto do baixíssimo salário do pai, que, além de tudo, não tem condições de dar a o atendimento adequado a seu filho deficiente; o Natal na casa de seu antigo amor, que, agora, casada, com filhos lindos e muito feliz, o faz perceber tudo aquilo que poderia ser dele, mas que sua avareza não permitiu; finalmente, o Natal na casa de seu sobrinho, para o qual ele é chamado todos os anos, convite que ele sempre nega, tornando sua rabugice um motivo de piadas dentro da própria família.


O fantasma do futuro lhe mostra o dia do seu enterro: ninguém para lamentá-lo, uns ou outros a comentar sobre o que será agora do dinheiro que ele tanto guardou e para nada serviu, muitos querendo se aproveitar da solidão de sua morte para roubar o defunto sem que ninguém perceba. Após todas essas visões, a preocupação de Scrooge é: será que esse futuro é imutável? Ou será que, mudando a atitude, o que virá também pode mudar? É então que ele assume uma postura completamente diferente ds anterior sobre a vida. De repente, torna-se generoso, alegre, cheio de amor. Vai ao Natal na casa do sobrinho, ajuda a família de seu empregado, faz doações... Assim, a visão que muitos possuíam sobre ele vai, aos poucos, mudando. É fato que alguns, espantados com a abrupta modificação, acham que ele enlouqueceu, que está com um parafuso a menos. As más línguas sempre irão existir. Scrooge, porém, não abre mão de aproveitar o pouco de amor que lhe resta para dar e receber por causa das críticas e, assim, conquista pessoas. com muitos a seu redor, não permanece solitário e, cada dia que passa, torna-se mais pleno e feliz.


Scrooge pode clamar a honra de ser um dos seres mais energéticos e comprometidos dentre os grotescos da literatura inglesa: ninguém saboreia tanto apresentar uma postura sovina quanto ele, que está sempre atento aos menores detalhes, mas é também verdade que ninguém sofre uma transformação tão brusca e dramática. O conto mais aclamado de Dickens é uma história sobre redenção e sobre o potencial de mudança inerente ao homem: ainda que velho, rabugento e avarento, uma última chance é dada ao personagem e ele é salvo antes de morrer sozinho, sem nenhuma lágrima sob seu túmulo.
"– O senhor Marley faleceu há cerca de sete anos. Morreu nesta mesma noite, fará seguramente sete anos. 
– Não temos a menor dúvida de que a generosidade do sócio sobrevivente seja igual à dele, – disse um dos cavalheiros, apresentando os papéis que o autorizavam a pedir. 
E não se enganava, pois que os dois sócios eram bem dignos um do outro. 
Diante da inquietante palavra generosidade, Scrooge franziu a sobrancelha, sacudiu a cabeça e devolveu os papéis. 
– Nesta festiva época do ano, senhor Scrooge, – prosseguiu o cavalheiro, tomando uma pena –, parece ainda mais oportuno do que em nenhuma outra ocasião, arrecadar algum dinheiro para aliviar os pobres e os deserdados da sorte, que sofrem cruelmente os rigores do inverno. A muitos milhares de infelizes falta mesmo o estritamente necessário, e muitas outras centenas de milhares não conhecem o mais insignificante conforto  
– Não há prisões? – perguntou Scrooge. 
– Prisões não faltam, – disse o cavalheiro, largando a pena. 
– E os asilos? Não fazem nada? – perguntou Scrooge.
– Sim, de fato, embora eu preferisse dizer o contrário. 
– Então, as casas de correção estão em plena atividade? 
– Sim, estão em plena atividade, senhor. 
– Oh! Eu já estava receando, pelo que o senhor me disse há pouco, que alguma coisa tivesse interrompido uma atividade tão salutar, – disse Scrooge. Estou satisfeitíssimo por saber que tal não aconteceu. 
– Persuadidos de que estas organizações não podem proporcionar ao povo o consolo cristão da alma e do corpo, de que ele tem tanta necessidade, tornou o cavalheiro, alguns dentre nós resolveram empreender uma coleta, cujo produto seria distribuído aos pobres, em forma de alimento, combustível e roupa. Escolhemos esta época do ano porque, mais que nenhuma outra, é aquela em que mais cruelmente se faz sentir a penúria e em que o conforto se torna mais doce. Quanto posso pôr em seu nome? 
– Nada. 
– Desejaria guardar o anonimato? 
– Desejo que me deixem em paz; já que os senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu não faço banquetes para mim próprio pelo Natal, vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço muito em dar minha contribuição às organizações de que falamos ainda há pouco, e elas não ficam barato! Aqueles que tiverem necessidade que recorram a elas. 
– Muitos não o podem fazer, outros preferem a morte. 
– Se preferem a morte, – disse Scrooge –, está ótimo! Que morram! Isso virá diminuir o excesso de população. 
De resto, queiram desculpar-me, porém não estou bem a par dessa questão."

Mas além desta intenção evidente, a obra é uma triunfante afirmação da alegria de viver, amar e compartilhar. Nenhum pensamento, sentimento ou ideologia é saudável, nem compensatória, se nos tira a capacidade de ser feliz, o que está amplamente relacionado à boa convivência e, principalmente, à criação de laços. Uma vez que os três espíritos mostram a Scrooge os erros que ele cometeu, é através de um processo gradual de confrontação, catarse e descongelamento emocional que o personagem se torna o homem mais alegre de toda a cidade. De seu amargo interior, surge um Scrooge "tão leve quanto uma pena... tão feliz quanto um anjo... tão imprevisível quanto um bêbado".
Apesar dos terríveis avisos sobre sua catástrofe social que o fantasma do presente vem apresentar a Scrooge, o espírito do livro é positivo e tranquilizador. Ele acaba por levar ao leitor a esperança de que os erros e as más lembranças, apesar de não poderem ser reconstruídos e já haverem afetado o desenrolar da história até o momento presente, podem ser, pouco a pouco, anestesiados por uma mudança de postura frente à vida.
Um dos personagens secundários, cujo contraste com relação a Scrooge é de grande importância, é seu sobrinho Bob. Enquanto um é sempre perverso e miserável, o outro mostra-se generoso e alegre. Por mais que Bob insista em convidá-lo para festejar o Natal, o tio, sempre com a resposta na ponta da língua, afirma que o Natal não é mais que uma desculpa para o consumismo desenfreado, o que se torna uma ironia, tendo em vista que o maior "capitalista" da história é ele mesmo.
É também fato que o que mantêm a comicidade da obra, apesar de seus momentos trágicos, é a escolha das palavras da narrativa. A profusão dos verbos, dos adjetivos, cada um com uma ressonância cômica, é parte e todo da generosidade de bons fluidos em cada cena e no livro, como um todo. A abundância de descrições visuais é grande característica dos livros de Dickens. "Um conto de natal" torna-se, então, uma boa comédia e um documento de críticas sociais. De fato, o livro é uma dramatização cômica dos valores que deprecia. Aquele que no início detesta todos que lhe desejam "Feliz Natal", passa nas ruas a desejar o mesmo aos mais ilustres desconhecidos. Scrooge percebe, finalmente, que virtudes como compreensão e generosidade emergem dos mais comuns relacionamentos ou contratos sociais e, somente depois, difundem-se por mundo afora.

Dickens adiciona também sua crítica à vida miserável e sofrida dos marginalizados no período, plena revolução industrial, onde, de fato, a situação da maior parte da população era caótica. Podemos dizer que ele faz uma "exposição romântica" do fato verídico para sensibilizar, sem chocar demais o leitor. Ele vai mais longe ao enfatizar a Necessidade e a Ignorância (também adaptados para o português como Fome e Miséria) como duas crianças apresentadas pelo fantasma do presente, antes de se extinguir. Essa torna-se uma realidade, cujo futuro desconhecemos, mas que são frutos do abandono da sociedade.
É da mesma maneira que Scrooge se vê, no futuro, como um cadáver abandonado e abala-se extremamente com a cena. E no espírito de que as melhores lições são as mais difíceis, Scrooge é impulsionado em seu processo de transformação.
"Um conto de Natal" nos inclui e envolve em cada virada de página, desafiando, entretendo e nos encantando até nos momentos mais "pavorosos". Ainda que a narrativa tenha capturado o espírito e a sensibilidade da era vitoriana (diferente de sua contemporâneo singular, "O morro dos ventos uivantes"), ela permanece atemporal em seu encanto para o leitor da idade moderna, não somente pelos seus valores nostálgicos, mas principalmente porque estes são embasados na mais pura realidade.


Video-curiosidades:

O conto não é somente muito famoso por ele mesmo, mas, uma de suas adaptações também conseguiu alcançar um grande sucesso e merece, portanto, destaque: Tio Patinhas (Scrooge Mc Duck), da Disney, teve seu caráter obviamente inspirado em Ebenezer Scrooge, o nosso grande pão-duro. No curta "Mickey's christmas carol", de 1983, McDuck revive Ebenezer.
Em 1988, surge a adaptação, estrelando Bill Muray, "Scrooge."
Os Muppets também tiveram sua parcela na popularização do conto. Em 1992, fizeram o filme "The Muppet Christmas Carol", que, mais uma vez, adaptava a obra de Dickens.
E, como a história infantil que foi criada pra ser, foi adaptado para uma versão feminina pela Barbie no ano de 2008, em "Barbie em uma canção de Natal", que deve passar na sessão da tarde qualquer dia desses.
Em um espírito totalmente diferente, "Minhas adoráveis ex namoradas", de 2009, toma os 3 espíritos de Dickens emprestados para mostrar a um homem os erros que ele cometeu na forma de tratar as mulheres que passaram por sua vida. E, no caso, com Matthew McConaughey, não tem erro. Jennifer Garner também estrela no filme.
E, também em 2009, a Disney lançou um filme em desenho animado, estrelando Jim Carrey e Colin Firth, entre outros, com uma super ideia de adaptação da história de Scrooge, que tinha tudo para dar certo, mas... . Apesar de seguir a obra devidamente, o filme é extremamente monótono e, na minha opinião, um verdadeiro fiasco. Deveriam ter ficado com o curta de tio Patinhas.


domingo, 4 de novembro de 2012

"O Morro dos Ventos Uivantes", Emily Brontë

A confusão entre as irmãs escritoras britânicas Anne, Emily e Charlotte Brontë é natural, em primeiro lugar, graças ao sobrenome comum e à relativa simultaneidade de publicação de suas obras. Mas, além disso, em seu período, como era comum às mulheres escritoras reprimidas pela sociedade patriarcal, elas se utilizavam de pseudônimos, o que, obviamente, dificulta a anexação da obra ao verdadeiro autor.
O livro "Wuthering Heights", publicado em 1847 sob o pseudônimo de Ellis Bell, é o único romance de Emily. Uma história com caracteres únicos e marcantes, se tornou um sucesso não somente pela sua originalidade, mas também pela fantasiosa relação familiar apresentada, que, apesar de buscar a naturalidade, encontra devaneios delirantes, conduzindo a diálogos e confissões inusitadas que beiram o ridículo. Atualmente, é considerado uma das grandes obras da literatura inglesa, não pelo fato de ser um excelente exemplo de um estilo específico de narrativa, e sim por ser o único exemplo. Diferente de outros autores vitorianos que buscaram adicionar o realismo social, diferentes personagens e lições de moral a suas obras, Emily resolveu deixar sua imaginação tomar conta, cedendo ao público um estranho romance, que se mistura a uma violência chocante e a visões oníricas. A intensidade e a individualidade são aspectos que definem a obra.
O sofrimento do legendário Heathcliff e sua amada Cathy é proveniente quase que completamente de suas ferozes individualidades e da incapacidade que eles tem de aceitar  que, às vezes, as coisas não acontecem à nossa maneira e que é preciso aprender a conviver com isso. Essa personalidade de nossos personagens é espelhada na da própria autora: independente em sua maneira de se vestir, em seus hábitos e em seu estilo de vida, chegando ao ponto da arrogância.
Apesar de incomum, a história de Wuthering Heights é bastante simples. O Sr. Earnshaw, dono da casa no "Morro dos ventos uivantes (Wuthering Heights - não ficou muito interessante essa tradução em português para designar um lugar)" - uma casa isolada numa região do norte da Inglaterra - resolve cuidar de um menino órfão, que ele encontra na estrada, e lhe dá o nome de Heathcliff. A filha do Sr. Earnshaw, Cathy, fica amiga do menino e eles crescem brincando juntos, em plena convivência, que apresenta traços de um jovem romance. Numa casa vizinha, Thrushcross Grange, mora a família Linton, da qual as crianças Edgar e Isabella fazem parte. Após ser atacada pelo cachorro dos Linton em uma de suas aventuras com Heathcliff, Cathy é obrigada a ficar no Grange até se recuperar. Durante esse tempo, em convivência com os educados e mimados Edgar e Isabella, um certo orgulho começa a crescer dentro de Cathy e, ao voltar para casa, ela começa a encontrar defeitos em seu velho amigo Heathcliff, que, em comparação com seus novos amigos, lhe parece imundo e incivilizado.
Em certo ponto, Cathy casa-se com Edgar, para a fúria de Heathcliff que, então, desaparece por alguns anos, dos quais ele retorna rico, forte e com a aparência de cavalheiro (e, aqui, retomo o sentido da palavra aparência, associando-a com algo de exterior). Sua principal intenção ao voltar é a de causar estragos, se vingar, o que ele começa a realizar através de seu casamento com Isabella. Enquanto trata sua esposa de maneira apavorante, ele tenta destruir financeira e psicologicamente o irmão de Cathy, Hindley, que havia sido extremamente cruel para  com ele quando crianças.
Após a morte de Cathy, sua memória começa a perseguir Heathcliff intensamente, tornando-o ainda mais cruel, pois atormentado. Ele cuida de Hareton, o filho de Hindley, após a morte deste, fazendo o menino tornar-se um bruto, como ele quando jovem. Utilizando-se da filha de Cathy, Catherine, e de seu filho com Isabella, Linton, ele busca criar uma situação igual a que ele mesmo viveu: desprezo, diminuição e incapacidade de ter aquilo que deseja. Vingando-se de Hindley, ele tenta colocar Hareton no seu lugar, levando-o a se apaixonar por Catherine e a obrigando a casar-se com Linton, um menino muito frágil, mimado e, por vezes, intolerável. O menino morre e Catherine continua desprezando seu primo Hareton por sua brutalidade involuntária. Finalmente, após muitos anos de sofrimento, Heathcliff morre literalmente "de fome" causada por uma misteriosa incapacidade de comer, deixando o espaço livre para os primos serem felizes e viverem um romance menos problemático que os outros. A autora deixa em aberto a possibilidade de que as almas de Heathcliff e Cathy estariam passeando juntas pela região e há a aproximação de um final feliz  com o casamento de Catherine e Hareron, que une a família uma vez mais.
Por si só, o conto não passa se uma narrativa estranha e pouco provável. No entanto, Brontë nos relata os fatos através de círculos narrativos concêntricos, que sugerem uma submissão à "monomania" do amor, o que, página após página, nos envolve e nos mescla à insanidade humana dos personagens. Somos arrastados a seus mundos de tristeza e morte em um ambiente claustrofóbico, como Wuthering Heights. A história frusta o nosso eu romântico, quando nos desafia a odiar Heathcliff pelas atrocidades que ele realiza, mesmo sabendo que tudo que ele faz, faz por amor. Há quem afirme que Heathcliff era, mais que louco, um energúmeno, um possuído, por causa de sua maldade sem freios. O amor que ele sente por Cathy é tão misturado com ódio, rancor e vingança que mescla-se a algo abominante. Mas, a despeito de seu comportamento violento e sua crueldade inescrupulosa, ele não passa de um homem derrotado no amor pela única coisa que ele realmente desejava. Há também quem acredite que o único sentimento humano que Heathcliff apresenta não é seu amor por Cathy, e sim um carinho inexplicável por Hareton, o filho do seu irmão e objeto da sua vingança. Talvez por se enxergar no menino, nosso "antagonista" o maltrata muito mais por obrigação com seu próprio objetivo que por vontade e nutre, internamente, o desejo de que ele seja feliz, como se, assim, ele mesmo tivesse uma nova chance.
Mas existe também um tipo de coerência ou lógica por trás do conto. Ninguém age irracionalmente: eles simplesmente agem um pouco além do que a maioria de nós consideraria racional. Para os personagens, tudo depende somente daqueles que eles conhecem e amam. Existem sim, neste livro, como em tantos outros, exemplos de um amor altruísta, como é o caso do sentimento que o Sr. Earnshaw nutre por Heathcliff, maior que o que ele tem por seus próprios filhos, e gratuito. Da mesma maneira, a principal fonte de interesse da obra é o fato de que o amor não é sempre uma força benigna: ele pode levar o homem a uma perversidade e sadismo inconsequentes quando um desejo, como o de Heathcliff e Cathy colocam a razão de lado.

"Meus maiores sofrimentos neste mundo têm sido os sofrimentos de Heathcliff; fui testemunha deles e senti-os todos, desde o começo. Meu maior cuidado na vida é ele. Se tudo desaparecesse e ele ficasse, eu continuaria a existir. E se tudo o mais ficasse, e ele fosse aniquilado, eu ficaria só num mundo estranho, incapaz de ter parte dele. Meu amor por Linton é como folhagem da mata: o tempo há de mudá-lo como o inverno muda as árvores, isso eu sei muito bem. E o meu amor por Heathcliff é como as rochas eternas que ficam debaixo do chão; uma fonte de felicidade quase invisível, mas necessária. Nelly, Eu sou Heathcliff. Sempre, sempre o tenho em meu pensamento. Não como um prazer, porque eu também não sou um prazer para mim própria, mas como o meu próprio ser. Portanto, não fale mais em separação: é impraticável"

Em contrapartida, personagens de bom caráter e dignidade, como Edgar, são retratados como seres mundanos e banais. A brutalidade, o ciúme e a inveja entre os personagens é uma constante, cuja solução sempre envolve a morte. 
A reclusão dos personagens da história em uma região isolada de Yorkshire assemelha-se à reclusão em que viviam as próprias irmãs Brontë. Na realidade, podemos associar o estilo narrativo singular da autora  e a maneira estranha de convivência de seus personagens à carência de relacionamentos de Emily. Pouco envolvida com e, portanto, influenciada por, outras pessoas, foi capaz de criar sua própria escrita, fazendo escolhas genuínas para seus personagens, sem sucumbir à pressão social.
"O povo daqui vive na verdade mais intensamente, mais dentro de si e menos em superficiais, mutáveis e frívolas exterioridades."
O mundo que Emily nos mosra pode não ser estritamente realista em seus eventos, mas é sentimentalmente bastante realístico  e apresenta um poderoso retrato da mais obscura parte da essência humana. Ela nos mostra as possíveis consequências de nosso egoísmo e orgulho, quando levados ao extremo. Assistimos a criação de um vilão, proveniente do sofrimento causado pelo desprezo e vemos que, ainda que pareça haver uma razão, a crueldade nunca poderá ser justificada.
Iniciando-se com sentimentos puros, como amor e generosidade, finaliza-se com vidas arruinadas e perdidas. Ainda assim, os contemporâneos da autora não tiveram a capacidade de enxergar a "lição de moral" lida nas entrelinhas dessa obra particular.
"E por mais infelizes que nos torne, teremos sempre a desforra de pensar que a sua crueldade deriva da sua desgraça."

Videocuriosidades:

A primeira adaptação do filme, filmada na Inglaterra em 1920 foi dirigida por A.V. Bramble.
Em 1939, surge a mais famosa adaptação cinematográfica da obra, sob a direção de William Wyler e estrelando Laurence Olivier e Merle Oberon. Essa versão, no entanto, elimina a segunda geração da história (Linton, Catherine e Hareton).
A primeira versão cinematográfica surge em 1970 e estrela Timolthy Dalton como Heathcliff.
Em 1978, a BBC lança uma série baseada no livro.
Em 1992, suerge uma adaptação que inclui a segunda geração da história, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche.
Dirigido por David Skynner, em 1998 uma adaptação interessante retrata com candura o amor de Catherine e Hareton.
Várias outras adaptações teatrais, musicais e cinematográficas surgiram no decorrer dos anos.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"A Princesinha", Frances Hodgson Burnett

Publicado em 1905, "A Princesinha" ("The Little Princess"), da escritora inglesa Frances Hodgson Burnett, retoma a ideia do poder dos pensamentos positivos, já relatada e analisada no blog com a postagem de "O Jardim Secreto".
Criada na Índia(como é comum das histórias de Hodgson), Sara Crewe é uma menina muito doce, bondosa e educada, que, apesar de não ter mãe, tem um lindo relacionamento com o pai, que a ama muito e faz de tudo pela menina, tentando sempre imaginar o que a mãe dela gostaria que fosse feito.
O pai de Sara decide deixá-la num internato para meninas, que seria responsável por sua educação , enquanto ele viaja para fechar um negócio com um grande amigo, que é um investimento em  minas de diamantes. O lugar escolhido é propriedade da Sra. Michin, uma mulher amarga e gananciosa que, sabendo da grande riqueza que iria pertencer à família de Sara, fruto do negócio das minas, trata a menina de maneira diferencial, como se fosse uma princesa, dentro do internato. Sara tem um lugar especial na mesa de refeições e a Sra. Michin compra tudo que ela deseja. Mas, ao mesmo tempo que Sara causa inveja em algumas meninas, como é o caso de Lavínia, sua doçura, generosidade e paciência são responsáveis pelas grandes amizades que Sara ganha no internato, uma delas sendo Becky, uma menina que trabalha como serviçal e realiza praticamente todas as atividades de limpeza da casa, sendo tratada muito mais como um bicho que como um ser humano. Um certo dia, no entanto, o advogado do pai de Sara aparece no internato para informar sobre a morte do Sr. Crewe, consequência do grande impacto da notícia sobre a perda do investimento nas minas, o que significava toda a sua fortuna. Desolada e cheia de ira, a Sra. Michin não pode expulsar a menina de sua casa para não sujar a imagem de sua propriedade e então chama Sara a seu escritório. Explica, secamente, à menina sobre a morte de seu pai, a perda de sua fortuna e seu novo lugar no internato: o mesmo que o de Becky, mas com a responsabilidade também de dar aulas às pupilas mais novas. Seus "aposentos" seriam agora, como os de Becky, no sótão frio e sujo da casa.
Mas a amizade da menina com sua "vizinha de quarto" e com as outras crianças do internato que não se deixaram corromper pelo preconceito lhe dá forças para superar as dificuldades. Além disso, mesmo em tempos melhores, Sara tem o enorme poder de inventar histórias e imaginar que está em situações diferentes das que ela se encontra. Essa capacidade é, então, ainda mais desenvolvida e torna-se essencial em sua nova vida. Só fingindo estar em outras situações ela consegue suportar os dias de trabalho pesado e as noites no sótão gelado. Becky também se beneficia com essa companhia tão cheia de positividade, o que melhora um pouco sua vida triste e cansativa.
Mas a vida dá voltas e, após algum tempo nesse sofrimento, mágicas começam a acontecer na vida da menina. Um homem muito rico vindo da Índia compra a casa vizinha ao internato. Muito doente, o homem tem alguns criados, como Ram Dass, um indiano muito hábil que cuida do proprietário da casa. Vendo o sofrimento da menina através das janelas das duas casas, Ram Dass repassa para seu patrão, que se comove e começa a enviar presentes sceretos para a menina. Quando ela está fora do sótão, a lareira é acesa e lindos cobertores tapetes e cortinas são colocados, deixando o lugar mais cheio de vida e mais aquecido. Sem saber a quem agradecer, mas imaginando que alguém no mundo se importa com ela, que ela não está mais sozinha e que, de fato, tem um amigo, Sara fica muito alegre, enquanto esconde o seu segredo. E essa magia reflete-se também em Becky, que ganha alguns dos cobertores e pode aproveitar do aquecimento do lugar, enquanto escuta as histórias que Sara lhe conta.
O vizinho, cheio de posses, porém, tem uma amargura muito grande em seu coração. Ele fizera um grande amigo investir, junto com ele, em um negócio de minas de diamantes, mas o negócio não deu certo e os dois perderam a fortuna. Ele fugira para não encarar o amigo, o qual morreu de tristeza diante da desgraça financeira. No entanto, o que não se sabia é que, na realidade, a fortuna não estava perdida, pois as minas acabaram por dar lucros. Ele, então, ficou com as duas fortunas, sua e do amigo. Mas ele sabia que seu amigo deixara uma filhinha pequena em um internato antes da viagem que iria levar a seu falecimento e, desde que ele recebera o capital financeiro de volta, estava em busca dessa menina.
Por coincidência do destino (ou providência divina), a menina estava o tempo todo na casa ao lado e, em certo ponto, mais tarde que o necessário e cedo o suficiente para evitar maiores desgraças, o homem que viera da Índia encontra Sara, a filha de seu amigo, e ela retoma suas posses e volta a ter uma vida descente, levando consigo Becky, que, apesar de não ser tratada como igual, torna-se uma espécie de "ama" da menina, mas tendo, definitivamente, uma vida muito mais qualificada que a anterior.

Da mesma forma que no caso da personagem mais "jovem", porém igualmente memorável, de Burnett, Mary Lennox, em "O Jardim Secreto" - também órfã - a vida de Sara Crewe é definida através de seu otimismo. E é irrefutável o fato de que as circunstâncias em que Sara passa a viver necessitam do uso incansável desse atributo, afinal, ela tem de superar vários obstáculos o tempo todo.
Seu sofrimento inicia-se quando ela é deixada no "Seleto seminário para meninas" de Miss Michin, separando-se de seu amado pai, e sendo deixada, ainda que não voluntariamente, em um ambiente hostil e carente de amor para as meninas ali instaladas, ainda que Sara ocupe um lugar de privilégio, a princípio, por causa de sua fortuna. 

"[...] Ao despedir-se dele em seus lindos aposentos, a menina olhou-o terna e longamente.
- Que foi filha? Está querendo me aprender de cor?
- Não, pai. Eu já conheço você de cor. Você mora no meu coração "
(E aqui é feito um trocadilho com a expressão, do inglês, learn by heart, aprender de cor, e a palavra heart, coração. Posso, então, fazer um ponto de certa importância para os leitores: apesar do não conhecimento da língua não prejudicar enormemente o entendimento dos leitores, muita da riqueza da escrita é perdida na tradução. Essa passagem, por exemplo, eu acho emocionante, mas não tem o mesmo impacto quando traduzida.) 

Ainda que seja um luxo particular o fato de que ela tenha um aposento individual, também isto pode ser visto como um fornecedor de solidão, já que nem mesmo a mais bela das decorações parisienses é garantia de felicidade.
Além disso, apesar de ser uma menina muito doce, que busca sempre ver o melhor nos outros e acaba ficando absolutamente impressionada pelos sinais visíveis da aceitação de todos os que estão em sua volta (o que não seria de se estranhar, já que ela é uma menina boa, bonita e rica), Sara não busca responder às rivalidades causadas pela inveja de algumas de suas colegas. Isso acaba por deixá-la muito sozinha e ela torna-se, então, a única responsável por sua própria felicidade. É aí que sua imaginação começa a vir à tona com mais vigor: na tentativa de fugir da solidão, saudade e, por consequência, tristeza. Suas amizades, que se mostram pouco a pouco no decorrer do livro, são as meninas marginalizadas e impopulares na escola, as quais ela oferece a companhia e a ajuda que elas precisam, aumentando ainda mais a admiração que essas garotas, que nunca pensaram que alguém como Sara, que tinha tudo, ia se tornar amiga delas, tem pela menina. Uma dessas meninas, e talvez o maior exemplo da aproximação de Sara dos que estão à margem da sociedade, é sua amizade com Becky, pois, indiferente aos decretos do sistema educacional da Sra. Michin (e da maior parte da sociedade do período), a menina torna-se amiga e companheira da serviçal, uma "burro-de-carga" miserável que é tratada muito mais como um cachorro que como um ser humano. A perspectiva de Sara da vida é estabelecida da seguinte forma: da mesma maneira que ela tem o direito de ser bem alimentada, assim também o tem Becky. Assim, o otimismo e o senso que a menina tem da importância da justiça coordena não somente a escolha de suas amizades, como também, seu propósito na vida.
É também verdade que somente quando as condições de Sara são completamente modificadas e ela tem sua vida virada de cabeça para baixo que todas as suas qualidades são verdadeira mente testadas. Mas ainda assim, na beira do abismo, em meio aos desastres, Sara se desvia do desespero e mantém seu extraordinário equilíbrio (que passa a ser visto como um insulto pelos olhos da Sra. Michin), dizendo sempre a si mesma que ela continua sendo uma princesa, ainda que não tenha as posses de uma. Ser uma princesa significa, para Sara o desejo de ser digna, comedida e generosa. A seguir, outra passagem que merece grande destaque:
"- Um dos 'fingimentos' de Sara é que ela é uma princesa - disse Jessie. - Ela brinca disso o tempo todo, até na escola. Ela quer que Ermengarde também seja uma,mas Ermengarde diz que é muito gorda.

- Ela é muito gorda - disse Lavinia.

- E Sara é muito magra.

- Sara diz que não, isso não tem nada a ver com sua aparência ou suas posses. Só tem a ver com o que você pensa, e o que você faz - explicou Jessie "
Antes ela afirmava a Becky que era apenas um acaso, um acidente, que uma tenha nascido rica e a outra pobre (coisa que a infeliz garota não conseguia compreender, por causa de sua ignorância involuntária): "Tive sorte, pois muitas coisas boas me aconteceram. Não é mérito meu ter boa memória, gostar de ler e ter um pai que me dá tudo que eu quero. Nunca sofri provações. Isso é pura sorte!". Vale notar que eu simplesmente amo essa passagem do livro. Essa é uma lições que merecem destaque, pois, ainda mais nos dias de hoje, parece ter sido esquecida por pessoas que desmerecem o esforço e a luta, porque desconhecem a satisfação de conseguir as coisas pelos próprios pulsos. No momento de desgraça, então, Sara diz a Becky: "Oh Becky... Eu te disse que nós éramos iguais - apenas duas meninas - só duas crianças. Você pode ver o quanto isso é verdade. Não há mais diferença agora." 
E assim, utilizando-se de sua bravura, otimismo e até mesmo de um pouco de orgulho no que diz respeito a abaixar a cabeça para a Sra. Michin, ela mantém um impecável nível de respeito próprio e dignidade. Mesmo seu luto pela morte de seu amado pai é, temporariamente, deixado de lado.
Ainda que humilhada na frente de suas antigas colegas, tratada como burro-de-carga, fazendo entregas na chuva, faminta, suja e maltrapilha, ela supera tudo de tal maneira que só uma princesa de verdade seria capaz. Mais uma vez, são os pensamentos positivos, combinados com uma imaginação muito fértil, que sustentam Sara, até porque suas histórias e invenções são as únicas coisas que a dona do internato não pode tirar dela.
"Eu não posso parar de inventar histórias. Se eu parasse, eu não sobreviveria"
Sara é muitas vezes definida no livro como estranha, mas a palavra que realmente poderia descrevê-la é: única. Talvez por nunca ter conhecido a figura da mãe e crescido só com o amor do pai em um país distante, Sara mostra-se um adulto em um corpo de criança. Acontecimentos como o fato de ela "saber reagir" ou "reagir da melhor maneira possível" à morte de seu pai e às novas condições impostas é, senão fantástico, no mínimo, interessante. Além disso, apesar de todo luxo no qual ela cresceu, ela não é mimada. Rica ou pobre, ela é sempre generosa. Mas Sara não é só virtudes. Teimosa, ultrajante e orgulhosa, ela tem defeitos como todas as outras crianças.
Seguindo a filosofia de seu pai, ela afirma: "Como um soldado, vou fingir que isso é parte da guerra". E um soldado não sai de uma batalha antes que esta acabe. Embasada em suas poucas, porém leais - o que é muito mais importante - amizades, ela consegue ter total controle sobre suas emoções, deixando sua opressora furiosa. E seu poder baseia-se  também em sua habilidade de conter sua raiva. Quanto mais comedida e calma Sara encontra-se, mais enfurecida a Sra. Michin se torna.

"Quando estão insultando a gente, a melhor resposta é não dar uma palavra, só olhar e pensar. [...] Quando a gente não perde a calma, as pessoas sabem que a gente é mais forte que elas, porque consegue se controlar, e elas ficam dizendo coisas estúpidas, das quais depois se arrependem. Não existe nada mais forte do que a raiva - a não ser o que você controlar a raiva, que é mais forte. É muito bom não responder nunca aos inimigos."
Aspectos como o interesse financeiro e em status das pessoas, que são atemporais, também são mostrados claramente no livro, o que vai da inveja de Lavínia à ganância da Sra. Michin. Os estilos de roupa e os hábitos das pessoas da época também são disfarçadamente apresentado, ou seja, tem seu grau de importância, apesar de não ser o foco ou a intenção do livro.
Muitas vezes fugindo um pouco do lugar-comum, a autora atem-se à realidade do período quando escreve o final da menina Becky, que continuou como serviçal, mas de patrões mais sensíveis às suas necessidades. Não acredito que isso seja consequência de um possível preconceito ou racismo (tendo em vista que a menina era negra) da autora, mas, talvez, muito mais buscando a aceitação do público, que na época não conseguia enxergar pessoas como Becky em situações "privilegiadas" (e que as aspas que aqui escrevo sejam bem lidas, visto que refiro-me ao privilégio como casa, comida, higiene e atividades de criança, como brincar e estudar). De qualquer maneira, essa parte do fim não me agradou muito.
Mas, afinal, nos resta a dúvida: será que Sara, tendo retomado sua fortuna e encontrado amigos que verdadeiramente se importam com ela, conseguirá ser feliz? Perguntas como essas podem ser respondidas apenas em nossa imaginação, pois a autora não nos deixa nem sequer um palpite. Eu acredito que a perda do pai será uma tristeza eterna no coração da menina, mas, por outro lado, na vida real as coisas nunca acontecem da maneira mais fácil. A fortaleza de Sara demonstra, apesar dessa dor que agora é inerente a ela, vai fazê-la continuar vivendo e até conseguir ser feliz. É fazendo boas ações e sendo generosa com os mais necessitados que ela consegue alcançar uma grande satisfação no final do livro e é por esse caminho que eu acho que ela, bem como todos nós, conseguirá superar as dores de sua vida e reencontrar a felicidade.
O drama mágico, emocionalmente poderoso e moralmente instrutivo com o qual Hodgson nos presenteou é algo peculiar. Ler sobre o livro ou suas análises não é o suficiente: a leitura se faz aqui necessária para sentir, de sua própria maneira, o impacto único que a obra tem em cada um.



Videocuriosidades:

A primeira adaptação cinematográfica é um filme de 1939, estrelando Shirley Temple.

O filme que verdadeiramente marcou minha infância por sua doce e triste beleza, com grande fidelidade ao livro, é de 1995, com Liesel Mathews como Sara. O papel de Becky nesse filme torna-se ainda maior e o final é extraordinário. No lugar do amigo do pai de Sara retornar, é o próprio Sr. Crewe quem retorna, com a memória perdida. O desenrolar é muito mais bonito e, no final, também Becky torna-se filha, mas adotiva, dele. Por mais irrealístico que seja, o fato de eu ter conhecido esse final antes do outro me causou certa antipatia pelo original. Afinal, quem não gosta do final mais feliz possível para os personagens queridos? Eu trocaria, pelo menos, a retomada do dinheiro pela volta do pai, mas talvez mesmo isso seja querer demais.

Tenho uma opinião que não posso ter como confirmada, tendo em vista que mesmo minha busca na internet não me deu respostas. Para os que conheceram a telenovela "Chiquititas" na infância, eu fiz uma comparação entre a personalidade da personagem Mili e Sara Crewe e, imagino, que a primeira foi inspirada na protagonista deste livro. Talvez isso possa parecer apelação para alguns, mas uma boa história ou um bom personagem pode sempre ser retomado de várias formas diferentes, obtendo sempre sucesso para o seu público, como foi o caso da telenovela e, mais especificamente, da personagem para as crianças de 1996 e alguns anos posteriores. Mas claro apenas aqueles que vivenciaram profundamente as duas personagens são capazes de perceber as minúcias dessa semelhança

domingo, 30 de setembro de 2012

"Romeu e Julieta", William Shakespeare


A história que é, para alguns, a representação atemporal do amor perfeito, não exige introduções. Escrita entre 1591 e 1595, conquistou leitores, expectadores e amantes do mundo inteiro e de todas as épocas desde sua estréia. Como é o caso de suas outras obras aqui publicadas, "Hamlet" e "A Megera Domada",  Shakespeare inspirou-se em contos da tradição oral do período para imortalizar o romance de "Romeu e Julieta"(ou, originalmente, "Romeo and Juliet") através de uma tragédia teatral repleta de imaginação, doçura, dignidade e intensidade de sentimentos. Foi sob sua escrita que a história tornou-se um glorioso louvor daquele sentimento que somos incapazes de expressar com palavras e que enobrece a alma, deixando-a ainda mais sublime.
Romeu e Julieta é a primeira tragédia que Shakespeare escreveu que tem, do início ao fim, como sujeito principal, uma história de amor. O vívido espírito da juventude é percebido em cada linha, tanto na arrebatadora intoxicação da esperança, quanto na amargura do desespero. É um livro inteiramente feito de Shakespeare.
O conto se passa na belíssima cidade de Verona, na Itália, onde duas famílias inimigas, os Montecchios e os Capuletos, vivem em um estado de iminente guerra civil. Em meio a essa atmosfera hostil, dois seres feitos um para o outro, apaixonam-se perdidamente à primeira vista. Qualquer tipo de empecilho desaparece frente ao irresistível impulso de viver um para o outro. E é  sob circunstâncias extremamente contrárias à sua ligação que eles se unem através de um casamento secreto, confiantes na proteção de um poder invisível. Mas, devido a incidentes desagradáveis que se seguem sucessivamente, a heroica constância dos dois amantes é posta à prova até que, separados um do outro pela força do destino, eles se unem novamente na sepultura, através de uma morte voluntária, para se reencontrarem em um outro mundo.
A linha entre a tragédia e a comédia é tênue. Assim, Romeu e Julieta, apesar de ser uma das mais aclamadas tragédias, apresenta diversos aspectos e ingredientes das comédias de Shakespeare - a estupidez de seus pais, ou seja, a geração anterior; a atração instantânea entre os jovens; brigas de rua; bailes de máscara e criados cômicos. Mas essa mistura do estilo de "Hamlet" com "A Megera Domada" não prejudica "Romeu e Julieta". Na realidade, esses efeitos de gênero são uma estratégia do autor para aumentar a tensão e dar margem para ampliar o papel dos personagens secundários e a utilização de sub-enredos para embelezar a história.

Romeu e Julieta é a imagem do amor e seu lamentável destino em um mundo, cuja atmosfera é muito amarga para o que há de mais terno na vida humana. Mas esse amor torna-se ainda mais bonito, porque não lhe foi permitido ser corroído pelo tempo. É exatamente por causa dessa efemeridade que temos uma amostra do amor em seu mais belo e puro estado, o que o torna, de certa maneira, pouco realístico. Apesar de ultrapassar o teste da separação através da morte, é um amor que não foi posto à prova mais árdua: o cotidiano. Por isso, o livro pode também ser interpretado como a história de uma moça e um rapaz que mal se viram e pouco se conheceram para criar uma afeição racional e genuína um pelo outro. Além disso, eles não haviam experienciado das melhores e piores coisas da vida até então e, por isso mesmo, o êxtase e o desespero que eles sentem no decorrer de sua história podem ser igualmente lidos como fantásticos e infundados. Na realidade, Shakespeare fundamenta a paixão dos dois amantes não no que eles vivenciaram, e sim no que eles ainda não haviam vivenciado.
Na cultura popular, o nome Romeu praticamente tornou-se um sinônimo de 'amante'. O poder do amor de Romeu, no entanto, muitas vezes obscurece fortes marcas de seu caráter. A relação de Romeu com o amor não é tão simples. No início da obra, Romeu anseia por Rosaline, proclamando-a a personificação do amor e se desesperando com a indiferença dela. Essa paixão, porém, tem um aspecto bastante juvenil. Romeu é um amante das poesias de amor e sua paixão por Rosaline sugere uma tentativa de recriar os sentimentos sobre os quais ele lê. Assim que vê Julieta, porém, Rosaline sai de sua cabeça. Mas Julieta não é uma substituta qualquer. O amor que ela divide com Romeu é muito mais profundo, autêntico e único que o amor clichê e infantil que Romeu nutria por Rosaline. O amor de Romeu amadurece no decorrer da peça a partir do de seu desejo de experimentar uma paixão intensa e verdadeira. Mas, finalmente, é possível dar o mérito dessa evolução do rapaz à própria Julieta, que, com suas deduções e observações sagazes, acaba por abrir os olhos de Romeu, retirando de sua cabeça a ideia superficial do amor e inspirando-o a recitar uma das mais belas e intensas poesias amorosas jamais escritas.

"ROMEU — Só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo. (Julieta aparece na janela.)Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente? Surge, formoso sol, e mata a lua cheia de inveja, que se mostra pálida e doente de tristeza, por ter visto que, como serva, és mais formosa que ela. Deixa, pois, de servi-la; ela é invejosa. Somente os tolos usam sua túnica de vestal, verde e doente; joga-a fora. Eis minha dama. Oh, sim! é o meu amor. Se ela soubesse disso! Ela fala; contudo, não diz nada. Que importa? Com o olhar está falando. Vou responder-lhe. Não; sou muito ousado; não se dirige a mim: duas estrelas do céu, as mais formosas, tendo tido qualquer ocupação, aos olhos dela pediram que brilhassem nas esferas, até que elas voltassem. Que se dera se ficassem lá no alto os olhos dela, e na sua cabeça os dois luzeiros? Suas faces nitentes deixariam corridas as estrelas, como o dia faz com a luz das candeias, e seus olhos tamanha luz no céu espalhariam, que os pássaros, despertos, cantariam. Vede como ela apoia o rosto à mão. Ah! se eu fosse uma luva dessa mão, para poder tocar naquela face!  
JULIETA — Ai de mim! 
 ROMEU — Oh, falou! Fala de novo, anjo brilhante, porque és tão glorioso para esta noite, sobre a minha fronte, como o emissário alado das alturas ser poderia para os olhos brancos e revirados dos mortais atônitos, que, para vê-lo, se reviram, quando montado passa nas ociosas nuvens e veleja no seio do ar sereno.  
JULIETA — Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo. 
ROMEU (à parte) — Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo?  
JULIETA — Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira. 
ROMEU — Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em diante não serei Romeu.     [...] 
JULIETA — No caso de seres visto, poderão matar-te. 
ROMEU — Ai! Em teus olhos há maior perigo do que em vinte punhais de teus parentes. Olha-me com doçura, e é quanto basta para deixar-me à prova do ódio deles. 
JULIETA — Por nada deste mundo desejara que fosses visto aqui. 
ROMEU — A capa tenho da noite para deles ocultar-me. Basta que me ames, e eles que me vejam! Prefiro ter cerceada logo a vida pelo ódio deles, a ter morte longa, faltando o teu amor.     [...] 
JULIETA — Sabe-lo bem: a máscara da noite me cobre agora o rosto; do contrário, um rubor virginal me pintaria, de pronto, as faces, pelo que me ouviste dizer neste momento. [...] Se amas, proclama-o com sinceridade; ou se pensas, acaso, que foi fácil minha conquista, vou tornar-me ríspida, franzir o sobrecenho e dizer "não", porque me faças novamente a corte. Se não, por nada, nada deste mundo. Belo Montecchio, é certo: estou perdida, louca de amor; daí poder pensares que meu procedimento é assaz leviano; mas podeis crer-me, cavalheiro, que hei de mais fiel mostrar-me do que quantas têm bastante astúcia para serem cautas. Poderia ter sido mais prudente, preciso confessá-lo, se não fosse teres ouvido sem que eu percebesse, minha veraz paixão. Assim, perdoa-me, não imputando à leviandade, nunca, meu abandono pronto, descoberto tão facilmente pela noite escura."

Além disso, essa enorme capacidade de Romeu para amar é uma mera parte de sua ainda maior capacidade de sentir intensas emoções de todos os tipos. De uma outra maneira, é possível descrever Romeu como alguém que carece de moderação. O amor o compele a invadir o jardim da filha de seu inimigo, arriscando-se a morrer somente para vislumbrá-la. O desespero dos rumores sobre a morte de Julieta o compele ao suicídio. Esse comportamento extremo domina o personagem durante a peça e contribui para a tragédia final que cai sobre os dois apaixonados. Se Romeu se tivesse restringido de matar Teobaldo ou esperado pelo menos um dia a mais antes de se matar após ouvir sobre a morte de sua amada, a história poderia ter um final feliz. Por outro lado, no entanto, se os sentimentos de Romeu não fossem tão intensos, o amor dele por Julieta poderia nunca ter existido.

Entre seus amigos, Romeu mostra verdadeiros traços sobre de sua personalidade. Espirituoso e apreciador de discussões, nosso protagonista apresenta qualidades como a lealdade e a corajem.

Com quase  14 anos, Julieta está no limite entre a maturidade e a imaturidade. À primeira impressão, no início da obra, ela se mostra uma criança obediente, mimada e inocente. Apesar de muitas mulheres – inclusive sua própria mãe – terem se casado na sua idade, Julieta nunca havia pensado sobre isso. Quando a sra. Capuleto menciona que Páris está interessado em casar-se com ela, Julieta obedientemente responde que ela vai tentar considerar se é capaz de amá-lo, uma reação que parece infantil em sua obediência e em sua concepção imatura do amor.

Julieta dá demonstrações de sua determinação, força e sagacidade em suas primeiras cenas, oferecendo assim, uma amostra da mulher que ela virá a se tornar no decorrer da obra. Mesmo sua promessa de tentar amar Páris, que é, aparentemente,  uma prova de obediência, pode ser lida como uma refusa à passividade e como uma representatividade de sua determinação. Julieta consente com os desejos de sua mãe, mas não sem antes tentar apaixonar-se primeiro.
O primeiro encontro de Julieta com Romeu a impulsiona a mostrar sua maturidade. Apesar de estar profundamente apaixonada por ele, Julieta é capaz de enxergar e criticar as decisões precipitadas de Romeu e a sua tendência de romantizar todas as coisas. Após o assassinato de Teobaldo por Romeu, Julieta não segue seu amante cegamente. Ela decide de maneira lógica e sincera, que a sua lealdade e amor por Romeu serão suas prioridades. Quando ela acorda na tumba para encontrar um Romeu morto, ela não se suicida devido a uma fraqueza feminina, mas sim por causa da intensidade do seu amor, da mesma maneira que fizera Romeu. O suicídio de Julieta, inclusive, necessita de mais força e coragem que o dele: enquanto ele bebe veneno, ela apunhala o próprio coração.

O desenvolvimento de Julieta de uma menina assustada para uma mulher segura, leal e corajosa é um dos primeiros triunfos de caracterização de Shakespeare. Julieta também é a marca de um dos mais confiantes, ativos e lapidados personagens femininos da literatura.
Diversas vezes no decorrer do livro, Romeu se refere a Julieta como uma luz, a luz do Sol, a luz das estrelas e, da mesma forma, Julieta compara o amor deles om a iluminação, não somente para enfatizar a rapidez com a qual o romance deles evolui, como também sugerir que, como a luz é um glorioso rompimento da escuridão do céu da noite, assim também é esse novo amor, que iluminou a escuridão do seu mundo, um mundo em que todas as suas ações são controladas pelos que a rodeiam.
Os amantes tentam ultrapassar os obstáculos estabelecidos pela vaidade dos mais velhos. Os pais, na obra, são apresentados como estúpidos que, por causa de orgulho e vaidade, não permitem a si mesmos, nem a seus filhos, desfrutar da paz e do amor.
Dentro de seu próprio contexto, a obra abrilhanta o início de uma literatura rebuscada, da poesia mais doce e minuciosa, que traz a mais esmera descrição do amor. Mas esse sentimento exacerbado entre Romeu e Julieta poderia ser desviado para um tom mais satírico quando implementado no contexto dos dias de hoje.

Existem diversos estudos psicanalíticos, feministas e mesmo teorias de homossexualidade na obra. Todas tentando revelar o que existe nas entrelinhas, não necessariamente percebidos em uma primeira leitura. Todas essas visões e análises aqui apresentadas não são mais que suposições, hipóteses presunçosas de compreender o que um dos maiores autores de todos os tempos buscou afirmar na sua precoce habilidade dramática e maturidade artística. Recomendo, portanto, não somente a leitura atenciosa, mas principalmente uma pesquisa mais apurada sobre as mil faces da obra para os interessados.

Curiosidades:
E, aos amantes dessa tão bela história de amor, uma curiosidade: até hoje, em Verona, jazem os túmulos de Romeu e Julieta, bem como a própria casa e sacada de nossa protagonista, com sua estátua em bronze ao centro, que o pai de Romeu mandara esculpir, como um presente para o pai de Julieta, após a morte dos recém-casados. Tive o prazer de, pessoalmente, ver essas relíquias do maior romance de todos os tempos. Segundo a tradição, as moças que passarem a mão no seio direito da estátua de Julieta encontrarão o amor verdadeiro.
Milhares de adaptações musicais, teatrais, cinematográficas, dentre outras, já foram realizadas em torno de "Romeu e Julieta". O belo livro "Inocência", do Visconde de Taunay, o qual, apesar de já ter lido, não tive a oportunidade de postar no blog, é inspirado na obra e considerado o "Romeu e Julieta sertanejo". Com tantas adaptações nas artes, restringirei as indicações de filmes, apresentando somente os que tive o prazer de apreciar:
Em primeiro lugar, e, para mim, o melhor da lista, o filme ítalo-britânico de 1968, dirigido por ninguém menos que Franco Zefirelli e protagonizado pela eterna Julieta, Olivia Hussey, e com Leonard Whiting como Romeu.
Em 1996, um "Romeu e Julieta" mais moderno foi estrelado por Leonardo Di Caprio e Claire Danes. Apesar de interessante, o filme não tem a mesma classe e beleza do primeiro.
Um grande clássico do cinema americano "West side story" (Amor, Sublime amor) que reflete sobre a richa existente entre imigrantes e nativos estadunidenses, é uma bela história de amor totalmente inspirada no clássico.
O filme "Inocência", adaptação do livro anteriormente comentado, é estrelado por Fernanda Torres e Edson Celulari e dirigido por Walter Lima Jr. Apesar de uma produção simples, é também muito interessante.
Finalmente, uma comédia romântica que, apesar de não ser inspirada na história de Romeu e Julieta, a tem como objeto central de atenção, é o filme "Cartas para Julieta", de 2010, dirigido por "Gary Winick" e protagonizado por "Amanda Seyfried".

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"Frankenstein", Mary Shelley


Na realidade, a intenção deste post, diferente dos demais, não é, a princípio, a de sugerir ou recomendar uma leitura. Acima de tudo, viso desmistificar a concepção criada sobre uma obra da qual a maioria de nós, direta ou indiretamente, ouviu falar.
Poucos trabalhos da literatura são tão destorcidos pela sua popularidade, a ponto de se tornarem irreconhecíveis, por causa dos mitos criados ao redor deles. A obra da escritora britânica Mary Shelley, "Frankenstein", de 1818, porém, está na lista dos desventurados: um livro cuja essência foi esmagada pela excessiva exploração de seus intérpretes. O título do livro passou a ser, então, sinônimo do 'monstro' que foi construído a partir de corpos de defuntos. Só posteriormente o nome é corretamente associado ao criador deste "ser" grotesco, Victor Frankenstein. Este equívoco, no entanto, pode parecer plausível, tendo em vista que a criatura é anônima durante todo o romance. O que é ainda mais alarmante que esta confusão lógica, porém infundada, é o fato de que a maior parte das sutilezas deste conto foram perdidas em anos de adaptações nos palcos e nas telas.
No entanto, a própria autora, Mary Shelley, pode ser considerada parcialmente responsável pelo início desse processo, pois ela alterou significantemente sua obra inicial para uma edição de 1831, extraindo os elementos mais controversos, que concerniam ciência e sociedade, e tornando Victor Frankenstein um personagem mais simpático ao público.

 Assim, esta edição forneceu à obra um aspecto sobrenatural, retirando todas as poderosas representações dos perigos provenientes do conhecimento e da ambição, as flutuações de humor inspiradas pela solidão e pela perda, e a infindável e problemática relação entre o homem e Deus. Nesta reformulação, perdeu-se também a critica à moral e aos valores da sociedade, bem como às imposições e aflições da relação entre pais e filhos. Só o que restou foi a noção de uma ciência pervertida por um louco e a imagem de uma ser abominante, gigantesco e violento, com parafusos cravados em sua cabeça.

É impossível, após ler "Frankestein", não lamentar a quantidade de riqueza literária perdida  quando uma boa escrita é retirada da página. Na narrativa, a "criatura" explica o desespero e sofrimento de sua isolação do mundo tão eloquentemente que, ainda que involuntariamente, simpatizamos com ele. Quando sua voz é retirada pelos diretores dos filmes e peças, a criatura torna-se mais aterrorizante e a história, mais tolerável. No entanto, desconhecemos as experiências que levaram aquele ser a fazer coisas tão rancorosas e abomináveis. Essencialmente, eles nos fazem ignorar os motivos de sua maldade e, simplemente, sentir repulsão.
No romance, é o anonimato que fornece o efeito de alienação. Como Frankenstein não dá um nome para sua criatura, faz com que ele mesmo, o pai efetivo, não possa ver além do exterior demoníaco de monstro.
Ainda que, em alguns aspectos, "Frankenstein" fuja do modelo de horror exacerbado e dos cenários medievais das narrações góticas, ao contrário do que os filmes inspiram, a obra atinge os leitores por buscar o realismo, mesmo lidando com eventos absurdos.
Buscando fugir do extraordinário, a autora não tenta duelar com os detalhes dos experimentos de Frankenstein, mesmo porque, isso não poderia ser descrito com o menor grau de verossimilhança. Em vez disso, ela nos mostra a inspiração do estudioso: as minúcias de sua educação, embasada nos físicos renascentistas. Vemos as influências de Darwin e Galvani. Podemos inferir, então, uma analogia: a caixa de Pandora das novas tecnologias, ou seja, até onde um cientista pode se deixar levar com os conhecimentos que tem em mãos.
Após o abandono do criador e as ações execráveis da criatura, ambos são levados ao exílio até que, finalmente, são conduzidos um ao outro, como uma condenação fatal. Ironicamente, o único ser capaz de compreender a situação de um deles, é o outro. A genialidade de Frankenstein o leva à solidão. O sofrimento, a traição e as falhas do homem são inevitáveis.
É difícil determinar com quem simpatizamos mais no livro. Temos três narradores de importância, porém nenhum deles é amável ou confiável. De fato, não é que não acreditamos nos fatos que Walton - o viajante que encontra Frankenstein e escuta sua história - e o próprio Frankenstein nos relatam, não acreditamos nos seus sentimentos. Suas interpretações sobre os acontecimentos são carentes de autoconhecimento. Cada um enxerga somente seu próprio sucesso e ignora o contexto sangrento de cada uma de suas ações: no caso de Frankenstein, a morte das vítimas da criatura; no caso de Walton, a morte de sua tripulação em sua busca por glória. Frankenstein consegue ir tão longe que chega a dizer que não possui culpa alguma. Tudo o que lemos é filtrado pelas forças da ambição e da ilusão. Encontramos, até mesmo na maneira com que foi escrita a história, mentes que buscam equiparar-se a Deus.

Mas é somente com o assassinato dos inocentes William,  Clerval e Elizabeth, que provoca o falecimento de Justine e do pai de Frankenstein, que a criatura torna-se verdadeiramente detestável e monstruosa. Isso tudo  produz um livro friamente emocional, onde as pessoas amam à distância e odeiam de perto.
O atordoamento do leitor é reforçado pelas arbitrárias flutuações de humor. Frankenstein vai da "beleza do sonho" do sucesso científico para o desgosto com a sua criação, da alegria ao horror que o retorno do "demônio" lhe provoca, ele passa da felicidade aos sentimentos de vingança e luto. Da mesma maneira, o "monstro" começa com atos de bondade e gentileza com a família a qual ele "adota" como sua e que o despreza, levando-o aos crimes cometidos contra o seu criador.
Shelley não nos permite ignorar o fato de que a consequência de toda criação é  perda. A criatura descreve sua situação fazendo referência a dois seres imperfeitos: 
"Deveria ser seu Adão, mas sou apenas um anjo caído, expulso do paraíso. Em toda parte vejo felicidade, mas parece que somente eu não tenho direito a ela!"
 A mídia visual eliminou a eloquente fala da criatura e o fez uma caricatura do medo humano da morte. No livro, porém, ele possui os mesmos sentimentos e qualidades dos homens, e consegue manter sua dignidade até o ponto em que é completamente abandonado, como ele mesmo explica:
"Eu era benevolente e bondoso; a miséria fez de mim um demônio. Faça-me feliz, e eu serei virtuoso."
 Na verdade, ele fala por todos aqueles que estão à margem da sociedade, os necessitados, os miseráveis, os abandonados.
Os dois séculos de tentativas de torná-lo um ser absurdo, porém vulgar, demonstra um desejo de silenciar os fisicamente repugnantes e a esperança de que eles desapareçam. A diferença existente entre o mito de Frankenstein e o romance que o originou baseia-se na falta de confiança da autora na capacidade de compreensão e análise dos leitores.
"Frankenstein" pode e deve ser analisado diversas vezes de várias maneiras diferentes. A sua lição sobre a futilidade tamanha que é a vingança olho-por-olho é atemporal. Esse é, na verdade, um dos melhores mitos não-religiosos existentes e, no entanto, é extremamente rico em aprendizados éticos. Somos lembrados de que todos sofremos de alguma maneira, justa ou injustamente, mas, para sofrer com dignidade, devemos fazê-lo sem criar ainda mais sofrimento para os outros e para nós mesmos.

Sugestão:

Um outro livro que deixa bem mais clara essa ideia de que o desprezo e o preconceito, ou seja, a falta de amor, podem transformar um ser, ou um homem, de atitudes boas e gentis em uma criatura grosseira e violenta, é "O Corcunda de Notre Dame". Esse último é rico em tantos outros aspectos, que, ainda que a leitura de "Frankenstein" não apeteça, recomendo-o, para aprofundamento no tópico das "consequências do desamor", um de meus prediletos, que já foi postado no blog.

Videocuriosidades:

Um dos filmes que mais marcaram minha infância, graças à sua triste beleza, foi inspirado na verdadeira história de Mary Shelley, apesar de não fazer nenhuma menção à mesma: "Edward mãos de tesoura", dirigido em 1990 por Tim Burton, estrelando Johnny Depp, retoma a ideia de um ser bondoso e ingênuo que, por causa da incompreensão e do preconceito, é levado à reclusão e a comportamentos anti-sociais, que acabam por reforçar a impressão inicial que sua aparência causa.

Tendo em vista que filmes de terror não me agradam, não posso dar nenhuma opinião com relação aos listados abaixo, a não ser o fato de que não seguem o perfil do romance:

Produzido por Thomas Edison e estrelado por Charles Ogle, o primeiro filme "Frankenstein" estreou em 1910.
Em 1931, surge uma nova adaptação dirigida por James Whale, estrelando Boris Karloff.
Em 1943, surgiu o filme "Frankestein encontra o lobisomem", com Béla Gulosi como o monstro.
Em 1969, surge "Frankenstein tem que ser destruído", do diretor Terence Fisher.
Em 1980, mais uma adaptação do filme aparece, dessa vez dirigida por Peter Cushing. Também nesse ano, o filme "Gothic", de Ken Russel, apresenta a figura do monstro.
Em 1994, uma adaptação cinematográfica de Kenneth Branagh, chamada "Mary's Shelley Frankenstein", apresentava Robert de Niro como Frankenstein e Helena Bonham  Carter como Elizabeth. Ainda que o título sugira uma grande verossimilhança com a história do livro, o filme toma uma série de liberdades com relação à história original, no entanto, é ainda a adaptação que segue a história original com mais fidelidade.

domingo, 1 de julho de 2012

"O Jardim Secreto", Frances Hodgson Burnett

O romance "The Secret Garden", da escritora inglesa Frances Hodgson Burnett, foi publicado pela primeira vez em 1911. Não é à toa que essa história é considerada o mais importante escrito da autora. "O Jardim Secreto" é caracterizado por sua habilidade de estabelecer uma linguagem que direciona-se para crianças, mas, ao mesmo tempo, lida com elementos simbólicos de grande complexidade.
A história inicia-se na Índia, onde a menina Mary Lennox crescera orfã de pais vivos e rodeada pelos cuidados de criados que pouco se importavam com ela. Vítima de sua própria sorte, Mary torna-se uma menina mimada, emburrada, adversa, egoísta e extremamente desagradável. Em seu interior, porém, encontramos uma garota negligenciada, mal amada e solitária.
A cólera atinge a região, tirando a vida dos desatenciosos pais de Mary e deixando a menina sozinha não somente espiritual, mas também fisicamente.
Ela é então enviada para a grande mansão de seu tio, Mr. Craven, em Yorkshire, na Inglaterra. Lá, ela conhece Martha, uma jovem e doce criada que ajuda a menina a dar seu primeiro passo em busca do renascimento, a partir do contato com a natureza. Quando Mary começa a brincar fora de quatro paredes, ela começa a abrir-se para um mundo novo e belo, onde não cabe a arrogância ou o egoísmo antes inerentes à sua personalidade.
Um belo dia, caminhando pelos jardins da propriedade do seu tio, ela descobre uma parte do terreno contornada por muros e, aparentemente, sem entrada. Sua curiosidade aumenta e ela começa a buscar os motivos pelos quais aquele lugar estava fechado e como ela conseguiria entrar. Um passarinho, do qual ela fica amiga, lhe mostra onde estava escondida a chave do jardim e a direciona até a entrada. Mary se encanta com aquele "pedaço de terra" que, em grande parte, parece estar morto, e, no entanto, apresenta pequenos, porém, eminentes resquícios de vida.
Ela, então, diz a Martha que gostaria de cultivar um jardim e a moça tem a idéia de pedir a ajuda de seu irmão Dickon, um menino um pouco mais velho que Mary, e que, diferente dela, foi criado em um ambiente cheio de amor e em pleno contato com a natureza, o que o tornou dócil,  amável, e, ao mesmo, seguro de si e corajoso. As duas crianças iniciam, assim, o que se torna uma grande amizade.
Uma certa noite, Mary começa a atentar para um episódio peculiar que se repete não tão esporadicamente: ela escuta choros e gritos, cuja origem é, para a menina, desconhecida. Resolve, então, investigar a fonte daqueles sons perturbadores e descobre, morimbundo em uma cama em um quarto de difícil acesso, seu primo Colin, do qual ela nunca ouvira falar.
Trancafiado em um aposento desde a morte de sua mãe, Colin acreditava com grande convicção que iria desenvolver uma corcunda e morrer ainda jovem. Ele havia crescido em uma atmosfera de medo sufocado e preconceito, subsistindo nos rumores e sussurros secretos que ele escutava do mundo dos adultos. O sedentarismo enfraqueceu suas pernas e a crença em coisas negativas o deixou enfermo, arrogante e egoísta. Seu pai nunca ia vê-lo, pois a lembrança da mãe que o menino trazia para ele o machucava muito. Assim, em uma situação parecida com a de Mary, deixado de lado pelo pai e órfão de mãe, fora deixado aos cuidados de pessoas que não estavam verdadeiramente preocupadas com sua saúde ou seu bem-estar, tornando-se extremamente arrogante, histérico e inseguro.
Mas a mudança de Mary e sua crescente felicidade são tão contagiantes que acabam por ser a salvação de seu primo doente. Sua exaltação por Dickon, seus animais e o jardim acendem uma pequena chama de entusiasmo em Colin, que também inicia seu processo de mudança. Logo, Colin também desperta uma paixão e, como Mary, não consegue mais ficar longe do jardim. 
É quando Mary entra em sua vida, portanto, que ele torna-se livre dos terrores secretos que o atormentavam. Enfurecida pelo comportamento autopiedoso de Colin, ela lança-se a um ataque ao menino, no qual ela examina suas costas e proclama: "Não tem sequer um caroço aqui!". E adiciona: "Histerismo é o que faz caroço. Não existe nada de errado com suas costas horríveis, a não ser histerismo!". Quando ele escuta essas palavras vindas de outra criança, faladas sem malícia ou qualificação, ele começa a aceitar a verdade.
Sua miraculosa transformação de pálido, murcho e hipocondríaco para confiante, energético e rejuvenescido é ainda mais marcante. Todas as conversas sobre deformidade e morte antes da maturidade desintegram-se a cada onda de excitação, planejamento e diversão e vemos, então,  a recuperação de sua saúde.
Um belo dia, o menino que não gostava de Sol, nem de ar puro, resolveu sair para ver o jardim e, a partir daí, fez isso por todos os dias subsequentes. Em pouco tempo, começava a andar e, principalmente, começava a acreditar que existe bem e que existe mágica no mundo. A companhia de sua prima, a natureza e sua fé o haviam salvado das moléstias de seu corpo e de seu futuro.
Ele resolve, então, usar sua carga de pensamentos positivos para trazer seu pai, que havia viajado para um lugar distante, de volta pra casa. Talvez por coincidência, talvez por mágica, o tio de Mary volta para encontrar seu filho correndo pelos jardins como um menino normal e feliz. E, apesar de todas as dores e perdas pelas quais passaram nossos personagens, no fim eles encontram uma maneira de alegrar-se consigo mesmo e com os outros, conseguindo superar as dificuldades e encontrar a felicidade em meio às tristezas da vida, através do amor e da fé. 
A obra infantil de Burnett não é somente um dos mais criativos contos já narrados sobre a mudança, a transformação, mas também é um dos mais duradouros e populares.
Seu encanto atemporal e sua revelação contínua, ambos responsáveis por traçar a obra como um clássico, podem ser atribuídos a vários fatores. Primeiro - o presente de Burnett para as histórias tensas e dramáticas: esse é um livro que nos faz ficar tentando adivinhar o que virá em seguida. Segundo - a perspicácia psicológica do livro: nós não somente acreditamos, como também simpatizamos, com as personagens. E, finalmente, há a exploração de diversas idéias que são tão pertinentes atualmente quanto há séculos atrás, particularmente a temática de que todos, sem exceção, devem ir em busca da saúde mental e física.
As páginas iniciais do livro estabelecem imediatamente a existência marginal de Mary, que é crucial para o nosso entendimento sobre ela e o curso dos eventos futuros. A partir daí, a narrativa que se segue é preenchida de tensão e incerteza, altas emoções e drama, mesmo que a crise na Índia no início do livro acabe por colocar Mary em seu inesperado caminho para a felicidade. Existem mistérios que parecem insolúveis, - de quem é a voz que Mary escuta a chorar à noite? - crises a serem negociadas - um garoto histérico que deve ser acalmado - e a maravilhosa descoberta das crianças que deve ser mantida em segredo no mundo dos adultos. O elemento crucial da incerteza é o que assegura a tensão do leitor.
No decorrer dos acontecimentos, descobrimos o real caráter da menina, que havia sido enterrado por anos de negligência de seus pais. Quando, conversando com Martha, ela começa a sentir um certo interesse em Dickon, enquanto que ela nunca antes havia se interessado por ninguém a não ser ela mesma, nós podemos perceber essa mudança na personagem.
Assim começa a jornada de Mary pela auto-descoberta. Ela encontra uma nova fonte de energia, apetite e entusiasmo e experiencia um despertar quase religioso para as alegrias da natureza, culminando em seu renascimento. E esse renascimento é tanto físico quanto mental. Se antes magra e pálida, ela se torna rosada, saudável e sorridente. Se, uma vez, azeda e rancorosa, ela mostra-se um exemplo de altruísmo e pensamentos positivos. Assistimos o surgimento de uma menina rejuvenescida e amável.
Mas, de fato, o que torna sua transformação tão convincente é a maneira com que ela está intimamente ligada com a descoberta do jardim secreto, o estabelecimento de uma firme amizade (possivelmente ligada a uma paixão infantil) com Dickon, que parecia "bom demais para ser verdade", e os meios pelos quais ele acorda os sentidos dela e a encoraja a apreciar a natureza. O relacionamento de Mary com a natureza - e, por extensão, o mundo a sua volta - é um aspecto que define o espírito do livro. Quando se volta para o jardim secreto, ela nutre sua alma vazia e experiencia a felicidade plena. Se seu mundo era antes atrofiado, ele é agora tão pleno de potencial que ela salta da cama de entusiasmo a cada nova manhã.
Como Mary, o crescimento de Colin está alinhado às estações do ano e o surgimento da vida no jardim: é o início da primavera.  O menino que antes era histérico, quase louco e hipocondríaco torna-se um profeta do otimismo e zelo pela vida.
A transformação final, porém, que coincide magicamente com o momento de triunfo de Colin, é de Mr. Craven. Após anos de uma miséria auto-imposta, ele renasce e volta para casa para ser recompensado com a aparição de seu filho em perfeita saúde.
A inicial ruína dos dois primos é a falta de um amor familiar: a mãe de Mary era muito frívola e vaidosa para se preocupar com a menina e, na ausência da mãe, o pai de Colin é muito temeroso e depressivo para lidar com o garoto. Diferente deles, Dickon cresceu em harmonia com o mundo à sua volta. A sua família poderia ser pobres materialmente, mas o ambiente que ela proveu para Dickon não poderia ser mais amoroso. Como resultado, ele é confiante e seguro sobre o amor de sua mãe. 
Assim, as duas crianças anseiam por conhecer a mãe de Dickon desde a primeira vez que ouvem falar sobre ela e, quando, finalmente, Colin a encontra, sua incontrolável reação é a de dizer: "Você é tudo o que eu queria... Eu queria que você fosse a minha mãe." E essa mãe, cujos preceitos são respeitados e admirados pelos personagens do livro, cria seu filho de maneira a torná-lo desenrolado e proativo, libertando-o, sem abandoná-lo, para o contato com a natureza.
Uma das passagens que ilustra muito bem o sentido da obra é a seguinte:
"...pensamentos simples são tão poderosos quanto uma pilha - tão boa quando a luz do Sol ou tão ruim quanto veneno."
Interessante também notar que, para a época, a "pilha elétrica" era um elemento poderoso. A tecnologia se desenvolveu, mas a parte importante da afirmação permanece.
A mágica que envolve o fim do livro transforma os personagens, as palavras do narrador e acaba por intoxicar o leitor. O jardim não é somente secreto, mas, principalmente, encantado, transmitindo, com sua beleza e mutação, as mais valiosas lições com o mais leve dos toques.
"'A senhora acredita em mágica?', perguntou Colin depois que lhe explicou sobre os faquires da Índia. 'Tomara que sim'. 
'Acredito sim, meu filho. Eu nunca conheci por este nome, mas o nome não importa. Aposto que na França tem um nome diferente e na Alemanha tem outro. Mas é a mesma coisa que faz semente inchar e o Sol brilhar, e fez você ficar bom. É uma coisa boa. Não é que nem a gente, que se importa com o nome. Essa Coisa Boa Enorme nem se preocupa [...] Nunca deixe de acreditar nessa Coisa Boa Enorme, e de saber que o mundo está repleto dela, não importa o nome.'" 
Ler "O Jardim Secreto" é deixar-se tocar pela magia e acabar por fazer parte dela.

Curiosidade:

Dentro de um contexto rico e um desenvolvimento elaborado, a principal lição do livro assemelha-se a de seu contemporâneo "Pollyanna", da estadunidense Eleanor Porter. O fato curioso dessa similitude é que a publicação dos dois livros é separada por apenas dois anos.

Vídeo-curiosidades:

Quando escolhi, atualmente, fazer a leitura do livro, foi porque o filme "O Jardim Secreto" de 1993 embalou a minha infância e tocou o meu espírito de criança. Dirigido por Agnieska Holland, é um filme muito bem elaborado, que conseguiu transmitir com excelência o espírito do livro. Alguns detalhes que poderiam passar despercebidos nas telas de cinema foram sugeridos através da adição de cenas ou características dos personagens, como o fato de que Mary não consegue chorar. E, na realidade, o filme conseguiu levar essa bela história, que não podia passar despercebida, para o mundo inteiro. Para mim, é definitivamente um clássico.
Anterior a essa versão e dirigido por Fred Wilcox, em 1949 surgiu a primeira adaptação do livro para os cinemas.
Em 2001, foi lançada a continuação do filme de 1993, "De volta ao Jardim Secreto". Mas, como quase todas as continuações, não diria que é uma grande produção.

domingo, 3 de junho de 2012

"O Perfume", Patrick Süskind

Publicado pela primeira vez em 1985, a obra do escritor alemão Patrick Süskind, cujo título original é: "Das Parfurm - Die Geschichte eines Mördes", ou seja, "O perfume - A história de um assassino", encanta e intriga com sua escrita de elegância macabra e profunda.  A descrição de uma sociedade ambientada na Paris do século XVII é tão minuciosa e analítica que pode, a princípio, ludibriar o leitor quanto ao ano em que a narrativa foi escrita. Ao menos, confesso que assim foi para mim. No entanto, examinando mais uma vez a situação de extremo conhecimento e a análise detalhista dos pormenores sociais e ambientais do período, pode-se afirmar que as palavras vem de um observador distante, que baseia suas informações em um estudo minucioso do que não presenciou.
"Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de penas, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros, fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a  rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor."
O ano é 1738. Um bebê, quase vítima da morte pelas mãos da própria mãe, chora, na intenção de ser encontrado e delatar as más intenções daquela que lhe havia dado à luz. Não por questões de maldade ou justiça, mas, como em uma primeira batalha de sua luta pela sobrevivência. O bebê é levado para a Igreja, cujo padre responsável decide pagar para que uma ama de leite o alimente, como era feito com tantos outros bebês que ali foram parar. É nesse instante, ainda no início de nossa narrativa, que começamos a perceber algo de muito errado com aquela criatura: a mulher que dava àquele bebê do que comer decide negar-lhe, devolvendo-lhe ao padre... Não é que o dinheiro que lhe estava sendo pago era pouco. Por nada nesse mundo ela manteria aquela criança dentro de sua casa, junto aos seus filhos, afinal, como é possível confiar em um ser que, simplesmente, não possui odor.
Este fato será a maior angústia e, ao mesmo tempo, trará a maior ambição de nosso personagem.
Deixado em um orfanato, Jean-Baptiste Grennouille cresce sem que ninguém lhe perceba, nem se preocupe.  Isso lhe dá liberdade para, aos poucos, ir-se descobrindo e encontrar em si um dom único e maravilhoso: um nariz capaz de sentir até os odores mais distantes e imperceptíveis. Em certo ponto, ele é dado como capaz de adivinhar o futuro, pelo fato de conseguir dizer "as pessoas que estão chegando para a visita" ou "onde está o dinheiro que a dona do orfanato havia guardado e não sabia mais aonde". É esta última "pequena adivinhação", inclusive, a causa de sua saída do orfanato. Ele então é jogado para um trabalho pesado e contaminante, do qual poucos saem vivos. Devido à sua excepcional capacidade de sobrevivência, no entanto, ele ganha a confiança do chefe. Sem que nem mesmo nós, leitores, percebamos, Grennouille começa a criar em si o desejo de ligar os cheiros que ele armazena em sua vasta memória odorífica e, atrelado a isso, o desejo de trabalhar em uma perfumaria. A malícia já começa a instalar-se em nossa personagem. Sua aparência inocente e sua presença desprezível (proveniente de um ser humano sem odor) são seus aliados nas diversas batalhas que ele travaria a partir dali para conseguir o que quer. A primeira delas é a perfumaria.
Um dia, passeando pelas ruas da cidade, este projeto de homem com um olfato extremamente desenvolvido, depara-se com um aroma nunca antes sentido: aroma esse que, após uma longa perseguição, descobre-se oriundo de uma jovem russa no que chamaríamos de "a flor da idade". Para melhor apreciar este espetáculo odorífico da natureza, e sem nenhuma intenção verdadeira de maldade, Jean-Baptiste assassina a bela menina, na esperança de melhor "cheirá-la". É a partir daí que, após diversos acontecimentos, nosso personagem entra numa longa e sinistra jornada para criar o melhor perfume do mundo, transformando-o em um facínora sem escrúpulos.
A personagem criada por Süskind é de um caráter especial e complexo. À princípio, Grennouille não tinha nada, mas, aos poucos, talvez como um organismo de defesa, cria-se nele um ser extremamente egocêntrico. Tudo que ele consegue ver nos outros é inferioridade e ignorância. Ele sente-se o rei do universo, pois, por causa de seu dom, ele acaba por ser capaz de desnudar as pessoas, seus desejos, suas frustrações, sua realidade. Afinal, somos todos animais e, por mais que não percebamos, estamos, a todo momento, liberando odores que retratam nossas emoções. É também assim que ele descobre-se capaz de controlar as pessoas, pois os aromas, ainda que nos pareçam imperceptíveis, são capazes de mudar nosso humor e, até mesmo, nossas opiniões e pontos de vista sobre as coisas mais simples. A arrogância toma conta dele, que começa a sentir-se e comparar-se a um deus.
"[...]as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração - ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas."
O autor retrata as fixações e excentricidades macabras de seu personagem com tal eufemismo que podemos sentir a ilusão que está tentando ser criada de que o assassino em série, aparentemente inofensivo, tem motivos plausíveis e compreensivos para seus atos absolutamente contestáveis. Por vezes, é possível, inclusive, acreditar nessa ilusão, pois o criador dessa história é extremamente persuasivo.
Grennouille não buscava tirar a vida dos odores, mas sim, dar a eles vida e liberdade. Era como se, ao retirá-los em sua essência, colocando-os em frascos e aniquilando todo o resto, tudo o que havia de bom naquele ser, naquele corpo ou naquele objeto estava concentrado e não havia nada mais a se aproveitar. O que sobrava não tinha importância. Se o ser fosse mantido vivo, em convivência com uma atmosfera podre, acabaria por se corromper, corrompendo, assim, também seu odor. O melhor, portanto, era retirar o aroma enquanto inocente, límpido, puro e, consequentemente, mais delicioso.
Tomado pelo egocentrismo, tudo que o coração de gelo de Grennouille mais buscava era a capacidade de sentir algo que não fosse proveniente dele mesmo. Até mesmo porque não havia nada que viesse dele que, de fato, ele pudesse sentir.
Um recurso aqui disfarçadamente utilizado é o discurso indireto livre que, neste caso, não perde-se em monólogos divagantes, pensamentos ou emoções do personagem, e sim na própria essência de tudo que se passa dentro dele. Mas tudo que se passa dentro dele, todas as suas impressões do mundo, todos os seus mais profundos desejos e ambições originam-se no seu nariz. Eu diria, portanto, que o discurso indireto livre que é apresentado no livro não é proveniente do pobre Jean-Baptiste (um infeliz, cujo maior talento é também o maior fardo) mas sim do verdadeiro protagonista dessa história: o nariz de Grennouille. Esse dom espetacular é como um espírito mal que toma o corpo de um ser, a princípio, inocente. Neste caso, porém, não conseguimos distinguir o corpo e o espírito, pois é como se o primeiro fosse um nada sem um segundo. E, de fato, Grennouille não passaria de mais um alma desprezível e sem vida em uma cidade de miseráveis não fosse seu olfato.
Esta é a beleza do livro: apesar de ter chegado aos extremos da maldade, nossa personagem só foi realmente "vista" pelos olhos da humanidade por deixar-se tomar por seu impulso maléfico. Não fosse isso, estaria condenado, como tantos outros, a sofrer na realidade de um ser invisível.
O livro possui um aspecto muito interessante: ao passo que as "paisagens odoríficas" do livro aparentam, a princípio, ser vítimas de um demasiado hiperbolismo, precisamos atentar para o fato de que estas são vistas através do nariz do nosso personagem, que não é um nariz comum. Dessa forma, não há nada de exagerado com as descrições, tendo em vista que seguem à risca o que é perceptível por Grennouille.
Um outro traço extremamente relevante do livro é a maneira com que o autor apresenta a podridão que habita dentro das pessoas, metaforizada na podridão das ruas, das casas e das cidades. Aos poucos ele nos mostra, às vezes de maneira extremamente cruel e inesperada, os pensamentos mais profundos e obscuros do ser humano.
É um livro muito forte e chocante, mas ao mesmo tempo belo em sua lugubridade insana. Leitura imperdível e absolutamente inesquecível.


Video-curiosidades:

Em 2006, o diretor alemão Tom Tywker levou a obra aos cinemas, conseguindo captar o espírito e o estilo do livro. Dustin Hoffman e Alan Hickman constam no elenco. Mas o ator que fez o protagonista é a grande estrela, que captou o personagem e passou-o para os expectadores. A fotografia do filme é também de excelente nível.