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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Mansfield Park", Jane Austen

Escrita entre 1811 e 1813, "Mansfield Park" foi a primeira novela nascida da maturidade de Jane Austen. O tempo deixou suas marcas: comparada a seus antecedentes, apresenta um contexto mais amplo e um propósito mais sério, buscando aprofundar-se na maneira como o mundo a sua volta funcionava e no fluxo de energia que impulsiona a atitude das pessoas. São vários os aspectos que classificam a obra como uma das mais sutis e perspicazes do século 19. Alguns críticos, inclusive, consideram-a como o primeiro romance moderno.
Fanny é filha da mais humilde das três irmãs, ou seja, daquela que conseguiu o "pior" casamento. Sua mãe, já cheia de filhos, resolve permitir que a menina more com sua tia "rica", com o apoio da terceira irmã, que, como vemos no decorrer do livro, pretende única e exclusivamente usar a menina como criada da família. Fanny cresce, então, rodeada de primos que a excluem de seus círculos por considerá-la inferior. Seu status financeiro não permite que ela se coloque em uma situação equivalente e ela acaba crescendo nos cantos da casa, obedecendo a ordens e aprendendo a abaixar a cabeça. Seu primo Edward é o único que se preocupa com ela e lhe dá atenção. Como era de se esperar, aos poucos e sem perceber, ela vai se apaixonando por ele. Isso fica bem claro quando um casal de irmãos vai viver na vizinhança de Mansfield Park. Henry e Mary Crawford são dois filhinhos de papai que moraram muito tempo na cidade grande e detestam a vida no campo. Edward se apaixona por Mary e Henry resolve roubar o coração de Fanny por brincadeira. A convivência deles dois traz um pouco de jovialidade à casa. Talvez até demais. Eles resolvem realizar uma peça dentro de Mansfield Park, o que é altamente desaprovado pelo proprietário, pai de Edward. A única que fica contra todo o ensejo é Fanny, que ganha total suporte do tio que passou a vida toda a negligenciá-la.
O conto é cheio de gracejos. Jane Austen se delicia em pegar seus próprios personagens de surpresa, colocando-os em situações embaraçantes, como fazer Mary Crawford, uma menina completamente sem papas na língua, contar a Edmund o que todas as jovens pensam sobre vigários com seus rostos sem expressão, só para descobrir, na página seguinte, que ele mesmo se tornaria um. "Mansfield Park" é uma comédia tradidional, ou seja, um clássico humor do século 19. "Deixe que outras penas se ocupem com culpa e miséria", disse uma vez a autora.
Como em muitas comédias, no entanto, no decorrer a história, descobrimos quão defeituoso é o mundo e durante um bom tempo, todas as coisas parecem caminhar para o pior. Para compreender "Mansfield Park", é necessário ver o romance como um constante debate entre os méritos da cidade e do campo - ou, colocando de outra maneira, um debate entre a constância e a mudança, a agitação e a tranquilidade. No aparentemente estável mundo de Mansfield Park, os irmãos Mary e Henry Crawford irrompem com sua sofisticação. Mary é pura ação e vivacidade e Henry é igualmente irreverente, divertido e sedutor. É de se esperar que, de uma maneira geral, os leitores se identifiquem mais ainda com eles que com Edmund e Fanny, tendo em vista que eles são mais vivos e divertidos.
A intenção da autora é justamente a de mostrar os contrastes: a cidade, com suas fofocas, modas, suas danças sociais frenéticas, é um lugar atrante, de uma maneira diferente da campestre. Quando a ideia de realizar uma peça de teatro surge dentre os jovens presentes na casa que nomeia nossa obra, Mary e Henry são os primeiros a aprovar e incentivar os outros, enquanto Fanny se opõe de todas as maneiras possíveis a ideia e Edmund a aceita de mal grado com o intuito de agradar sua amada Mary.
Apesar de seu conservadorismo, Jane Austen sabia que os sistemas sociais não são imutáveis, mas permanecem ou decaem com as pessoas encarregadas de mantê-lo. No fim do romance, a nova geração de Mansfield Park - crescida sem um senso firme sobre deveres e princípios - está praticamente em queda livre. Sendo a natureza humana o que é, o mundo de modas, novidades e caprichos não precisa forçar sua entrada nos vulneráveis Tom, Maria e Júlia. Até mesmo Edmund é tentado. Somente Fanny julga "corretamente" (de acordo com os preceitos do romance) do início ao fim. Isso é bom enquanto simboliza os valores tradicionais que Austen admirava e, possivelmente, acreditava estarem ameaçados. No entanto, o que é Fanny enquanto personagem? Podem os leitores amá-la? Conseguem eles, ao menos, simpatizar com ela?
Na verdade, se durante toda a obra não nos encantamos com a personalidade da protagonista, é no final que nossos sentimentos começam a mudar. Nós, leitores, a vemos crescer em Mansfield Park com todos os seus privilégios, que para ela, são, na realidade, frias privações. Isso é sentido, por exemplo, na passagem onde seus primos lhe oferecem, "generosamente", seus menos amados brinquedos velhos como presente e a deixam sozinha com eles. Queremos estrangular a sra. Norris, que, aparentemente, a enviou à casa para ter alguém de status inferior que ela pudesse oprimir e desprezar o tempo todo. "As pessoas nunca são respeitadas quando saem de sua própria esfera.", diz ela, "Lembre-se, onde você estiver, você deve sempre ser a mais rebaixada e a última".
É possível notar traços da gata borralheira na história de Fanny, a menina modesta e humilde que fora sempre colocada abaixo dos primos, da própria família. No lugar do príncipe encantado, porém, Fanny encontra Henry, um mauricinho mal acostumado que resolve fazê-la se apaixonar por ele por puro divertimento. Mas Fanny não é tão facilmente enganada pelo pedido de casamento que Henry faz à própria família dela. Para se livrar dessa obrigação, entretanto, ela acaba tendo que se colocar contra seus primos, entregando-os ao tio. É nesse momento, quando Fanny toma uma posição difícil para não se permitir subjugar, que vemos que a heroína é mais forte do que aparenta. A protagonista é então mandada de volta ao seio de sua família em Portsmouth, mas sente-se ainda mais fora de contexto quando percebe a falta de modos e de educação de seus irmãos e de seus próprios pais. Ela começa a olhar para Mansfield park como um lugar de elegância e harmonia, embora tenha sido tão mal tratada. E aqui surge uma reflexão. A mãe a tia de Fanny são ambas extremamente fúteis e vazias de conhecimento, mas o comportamento da mãe reflete uma ignorância e brutalidade jamais vistas na tia. Seria isso efeito da natureza ou fruto da vivência? Da mesma maneira, o fato de Fanny não se sentir confortável junto aos irmãos mal educados não é consequência de uma genética superior, mas da criação diferenciada. O bom estímulo vence a própria natureza.
Irônica diversas vezes durante a peça, em seu melhor estilo, Jane Austen induz o leitor a tirar as conclusões erradas, estimula-o, por vezes, a pensar que o casamento entre Fanny e Henry é devido ou instiga ideias fúteis e preconceituosas como conceitos verdadeiros e irrefutáveis, quando sabemos que esse não é, de verdade, o pensamento da autora.
Dentre suas muitas mensagens, Mansfield Park busca sugerir que a dificuldade ao longo da vida, ainda mais se ela é imposta na juventude, pode trazer frutos positivos e fazer do jovem uma pessoa melhor. Apresentando a hipocrisia, o orgulho e a vaidade dos privilegiados, ela nos conduz à conclusão de que a humildade imposta torna-se a humildade inerente (o que nem sempre é verdade).
Finalmente, o romance pretende mostrar que os princípios e valores da sociedade são essenciais, mas nem sempre são encontrados em quem se espera, e sim onde ninguém imaginaria estar.


Videocuriosidades:

O único filme produzido até então com o enredo do romance é uma adaptação inglesa lançada em 1999 na direção de Patrícia Rozema, estrelando Franes O'Connor.
Em 1983 e 1990, a BBC lançou séries que seguiam o contexto de Mansfield Park.
Em 2007, a Company Pictures lançou uma adaptação televisiva do mesmo.