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quarta-feira, 20 de março de 2013

"Jane Eyre", Charlotte Brontë

Publicado em 1847, "Jane Eyre" é um livro inteligente de excelente e sutil elaboração. Obra de Charlotte, uma das irmãs Brontë, aqui já citadas em "O morro dos ventos uivantes", é uma obra considerada indubitavelmente de alta apreciação, divergindo deste último, por cuja qualificação literária críticos de todas épocas entram em atrito (minha humilde opinião permanecendo com aqueles que glorificam a autenticidade de sua escrita). "Jane Eyre" é um livro formado por livros, um ninho de narrativas. De contos de fadas ou narrativas góticas a escritos da psicologia, a obra inspira, em suas entrelinhas, influências das mais diversas histórias. Incute-nos, pois, a simpatizar com suas perspicazes, porque disfarçadas e "adultificadas", pinceladas de histórias há tempos por nós conhecidas, como "Cinderella" e "A Bela e a Fera".
Órfã, Jane Eyre é destinada a viver na casa de seu tio, ficando, após o falecimento deste, aos cuidados da esposa dele. Com três filhos, duas meninas e um menino, aproximadamente da idade de Jane, a sra. Reed não se esforça para dissimular a diferença existente entre ela e seus filhos, que ela considera crianças de porte superior. Injustiçada, maltratada e desprezada, Jane inicia um tal processo interno de amargura que chega ao ponto de confrontar sua "tia", ferinamente atentando-lhe para suas falhas de caráter. A senhora começa, então, a ver a menina não somente como uma menina ruim, mas praticamente como uma possuída. Eyre é enviada para o colégio interno de Lowood, onde, após superar os conflitos iniciais causados pelas terríveis referências que a sra. Reed havia fornecido sobre ela, consegue ficar demasiadamente satisfeita com sua vida.
Após término dos estudos, Jane passa dois anos dando aulas para as novas pupilas, até que decide-se por aceitar um emprego de tutora de uma menina mais nova e mudar totalmente o rumo de sua vida, indo trabalhar e habitar na casa de outrem, possuindo um patrão específico e outras coisas que ela não havia experienciado.
A casa para qual ela parte pertence ao sr. Rochester e a menina, Adèle, é uma francesa, filha de uma concubina do sr. Rochester que havia falecido. O sr. Rochester não chega a ser o herói perfeito da literatura romântica: lhe falta beleza, apesar de possuir, aos olhos de nossa protagonista, um porte físico interessante, e lhe falta juventude. Nos deparamos, então, com um amor fora do comum entre uma simples criada de 19 anos e seu senhor rico e poderoso, que beira os 40. Mas há ainda maiores mistérios que se colocam como empecilhos a esse romance. Fatos extremamente esquisitos e inexplicáveis acontecem em Thornfield Hall: tentativas de assasinato, gritarias noturnas e risadas assombrosas. Após, enfim, toda a luta travada para que os sentimentos entre o sr. Rochester e Jane Eyre se tornassem públicos e o casamento fosse arranjado, descobre-se, no meio da cerimônia, que os movimentos estranhos em Thornfield são produzidos pela esposa de Edward Rochester, que enlouqueceu com poucos anos de casamento.
Jane sente-se obrigada a fugir da propriedade. Sem aviso prévio, conduz-se ao mais longe possível e, miserável, é acolhida na casa de duas moças e um rapaz, irmãos. O rapaz, St. John Rivers é um pastor na pequena congregação da vila. Muito bonito e jovem, é sempre sério e impenetrável. Um afortunado tio dos três proprietários do lar que abriga Jane morre, mas, diferente do que se poderia imaginar, no lugar de deixar sua fortuna para eles, salvando-os da situação precária na qual estavam se afundando, o herdeiro escolhido é parte do outro lado da família. Por fim, Eyre acaba descobrindo-se a herdeira de uma fortuna e, mais importante e afortunado que isso, descobrindo que possui uma família. Divide, então, sua herança, que é suficiente para garantir o conforto de todos, com os primos e, com essa generosidade, conquista ainda mais o afeto destes. St. Rivers, após analítico estudo do caráter e personalidade de Jane, pede-lhe em casamento, não por fins amorosos, e sim, pois tem a intenção de realizar uma missão de solidariedade na Índia e pretende levar uma mulher consigo, na qual o posto de esposa de um missionário caia bem, o que demanda virtudes como a coragem, a disposição e o prazer no trabalho árduo. Após relutância, ela decide partir com ele. 
"Estou, simplesmente, em meu estado original... despido daquele manto manchado de sangue com o qual o cristianismo cobre a deformidade humana... um homem frio, duro, ambicioso. Só a afeição natural, entre todos os sentimentos, tem um poder permanente sobre mim. A razão, e não o sentimento, é o meu guia; minha ambição não tem limites; meu desejo de elevar-me mais alto, fazer mais que os outros, é insaciável. Respeito a resistência, a perseverança, a diligência, o talento; porque esses são os meios pelos quais os homens atingem grandes metas e se erguem à grande eminência. Observo sua carreira com interesse, porque a considero um espécime de mulher diligente, ordenada, enérgica; não porque me compadeça profundamente pelo que sofreu, ou sofrerá ainda."
No entanto, antes de partir, decide retornar a Thornfield para ter notícias de seu verdadeiro amado. Descobre, então, que a louca esposa dele incendiou e arruinou o lugar e que muitos saíram feridos, mas a única morta foi ela mesma. O maior infortúnio para Jane, porém, é descobrir que Edward saiu cego e com uma mão amputada do acidente. Dirigindo-se ao atual local de morada de seu amado, ela decide lhe falar e percebe que seu lugar é ao lado dele, cuidando como se fosse os olhos e as mãos de Edward. Eles se casam e, com o tempo, Edward ainda consegue adquirir de volta a visão de um dos olhos. E, assim, temos o nosso final feliz.
Muitos apontaram "Jane Eyre" como um perigoso e sexualmente excitante manifesto feminista. O verdadeiro feminismo virotiano! De fato, presenciamos os novos ventos do pensamento a favor da modificação do posicionamento da mulher na sociedade, que não possuía o direito ao voto, ao divórcio ou aos estudos numa universidade, em diversas linhas de nossa história. Os inimigos da revolução psicológica alegavam que a obra possuía um tom pouco feminino e uma mensagem extremamente incendiária, repudiando sua nudez emocional e seu poder de sedução. A começar pela personalidade da própria protagonista. Ao mesmo tempo que racional e lógica, disposta e de inteligência aguda, Jane tem paixão e segue seus impulsos sem pensar duas vezes. Força de vontade, mente honesta, coração amoroso e personalidade peculiar e fascinante são as qualidades de nossa personagem principal. Seu principal impulso é a raiva e seu temperamento é extremanmente forte. Assim a define St. John: "embora você tenha um vigoroso cérebro de homem, tem um coração de mulher". Ainda me impressiona o fato de que, no período, a racionalidade e a lógica eram qualidades identificadas apenas com o cérebro masculino.
A voz do romance nos fala sobre paixão erótica (revolucionária apenas nos termos da época, mas em níveis mais que naturais para um romance dos dias de hoje, sem apelar para o confronto sexual como forma de atrair a leitura, como fazem tantos), aspirações de uma "casta" inferior e a ira feminina, em uma época onde o radicalismo político ameaçavam os limites da ordem (movimento cartista de meados de 1840). O murmúrio do romance contra o conforto dos ricos e as privações das classes pobres envolve uma asserção orgulhosa e perpétua dos direitos dos homens, para a qual não encontramos autoridade nem na palavra de Deus, nem na providência divina.  Jornais denunciaram a obra como com traços de um fundamentalismo não cristão, quando, na realidade, podemos sentir a importância da religião, ainda que questionada como verdade absoluta, no decorrer do livro.
"Espera-se que as mulheres sejam calmas. Entretanto, sentem da mesma forma que os homens. Precisam exercitar suas faculdades, assim como precisam de um campo para os seus esforços, tanto quanto seus irmãos. Sofrem de limitações, abnegações, da mesma forma que os homens sofreriam. É uma limitação, por parte de suas companheiras mais privilegiados, achar que devem confinar suas vidas a fazer pudins, coser, tocar piano e bordar. Seria irresponsável condenar aquelas mulheres que procuram fazer mais ou querem aprender mais do que o costume declara necessário ao sexo"
Leis do direito do indivíduo estão espalhadas e podem ser encontradas ao longo de todo o romance. As relações econômicas, como entre patrões e empregados, são vastamente questionadas, buscando reafirmar a liberdade dos assalariados diante de seus mestres, apesar do respeito devido, reivindicando  talvez não propositalmente, a favor dos trabalhadores cartistas que se autodenomivavam, debochadamente, "escravos brancos".
Ao passo que revolucionária, obra apresenta também tendências racistas ao demonizar, através da loucura, a esposa do sr. Rochester, que é mestiça ou, como denominada no livro, crioula. Essas passagens poluem a ética da obra, que possui um espírito tão enriquecedor e inovador para o período. Há, nessa e em outras comparações, inúmeras referências à superioridade européia e à selvageria encontrada nos países do "novo mundo". Encontro frequentemente nas melhores obras européias esses traços de racismo e xenofobia, tristes, pois não me permitem admirar com plenitude o romance ou o autor. Quando existem aspectos de luta por direitos do ser humano, encontro-me com ainda mais desprezo por ver que, apesar de sentir-se injustiçado, o escritor não foi capaz de perceber as injúrias que cometeu com uma classe de pessoas pormenorizadas não menos importante que a sua.
O aspecto mais complexo e contraditório do romance é a maneira como trata o casamento e as relações entre gêneros, de uma maneira geral. Jane chama o sr. Rochester de "seu mestre" com uma afiada satisfação, ao passo que repudia desdenhosamente a autoridade de outros, como St. John Rivers, apesar de sua obediência. A radical autonomia feminista de Jane alterna-se com a ânsia por tornar-se uma das queridas de seu mestre.
"Eu me preocupo comigo. Quanto mais solitária, quanto mais sem amigos, quanto menos apoio eu tiver, mais respeito terei por mim mesma. Vou cumprir a lei dada por Deus; sancionada pelos homens. Vou me fiar nos princípios recebidos por mim quando eu era sã, e não louca - como estou agora. As leis e os princípios não são para os momentos em que não há tentação: são para momentos como este, quando corpo e alma se levantam em motim contra o rigor deles; são severos; serão invioláveis. Se, por minha conveniência pessoal, eu os quebrasse, qual seria o valor deles? Têm um valor — sempre acreditei nisso; e se não posso acreditar agora, é porque estou insana, com fogo correndo nas veias e o coração. As opiniões que formei, as decisões que tomei, isso é tudo que tenho neste instante para me firmar: essa é minha base de apoio."
No entanto, a atitude despótica do sr. Rochester com relação a Jane no início do livro não a agrada, porém ela consegue afirmar sua posição igualitária (ou mesmo superior) ao seu tão amado mestre, que por sua vez, não apenas assume a igualdade, como também sua inferioridade.
O casamento igualitário, onde a "pequeninês" da mulher torna-se a mais forte base de apoio para o "tão dominante" homem é o ideal da obra (uma noção ainda atrasada de igualdade, digamos). O fato do sr. Rochester perder os olhos e a mão, precisando do suporte incondicional de Jane, é uma afirmação disso. O amor consagrado em "Jane Eyre" é muito mais humano que divino. Ao recusar a proposta de St. John de um casamento dedicado explicitamente ao Espírito, que abdicaria das paixões carnais, "Jane Eyre" trilha um caminho da ambivalente heresia cristã e do tradicionalismo transgressivo: prefere o símbolo humano do amor, com o casamento, ao amor em si mesmo, na união com Cristo.
Um dos aspectos mais mágicos da obra é sua voz. Pessoal, emocional, fluida, ela infere uma pessoalidade e cria a ilusão de haver uma "pessoa real" por trás do texto, falando diretamente aos leitores. Talvez o fato de possuir influências autobibliográficas tenha colaborado com esse efeito. Paradoxalmente, o romance é densamente alusivo e possui grande riqueza literária, tão extensa que necessitaria de um estudo aprofundado que não posso fornecer em algumas linhas no blog, mesmo porque não tenho propriedade alguma no assunto. Mas textos shakesperianos como "Hamlet" e Othello são exemplos de fortes de interessantes alusões.
Jane Eyre é uma obra original, vigorosa, edificante e absolutamente interessante. É original em seus personagens, que possuem caráter peculiar, e em seu enredo, por mais simples, ao passo que rico, que o seja. É vigorosa em seu pensamento e, consequentemente, em seu estilo, afirmando ideias enfáticas e revolucionárias que encaixam-se perfeitamente ao contexto do período. É edificante por sua beleza e sinceridade. É, por fim, interessante, pois condensa traços de riqueza literária, forte influência de contexto histórico, pessoalidade e questionamento, nem como asserção, de valores e princípios, em uma narrativa que nos absorve com sua trama singular. "Jane Eyre" tem muito a nos ensinar e fazer refletir.

Curiosidade:


Ao visitar uma igreja anglicana em Galway, Irlanda, encontrei cravada na parede a homenagem a um poderoso casal da região, falecido muito antes do lançamento de nosso romance. Os nomes na parede? Jane Eyre e Edward Rochester. De família mais rica que o marido, porém, essa Jane Eyre não quis adotar o nome Rochester. Coincidência ou não, achei bastante curioso.


Videocuriosidades:


Em 2011 foi lançada a mais recente adaptação da obra, do diretor Cary Fukunaga, estrelando Mia Wasikowska e Michael Fassbender.

Mais um de Franco Zeffirelli, em 1996 William Hurt e Charlotte Gainsbourg foram as estrelas do longa. 
1983 foi o ano da mini-série com Zelah Clark e Timothy Dalton (que eu aprecio bastante pelo filme que adorei na infância e passava sempre na sessão da tarde: "The Beautician and the beast").
Em 1970, Delbert Mann dirigiu o longa com George Scott e Susannah York.
Dirigidido por Robert Stevenson, na adaptação de 1944 estrelavam Orson Welles, Joan Fontaine e Margaret O'Brien.