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domingo, 2 de dezembro de 2012

"Um Conto de Natal", Charles Dickens

Poucos personagens, em contos ou em vida, são capazes de suportar a teimosia sem tamanho do velho Scrooge. Não é, portanto, improvável, que o protagonista da história que surgiu em 1843, criação do inglês Charle Dickens, esteja tão vivo na mente dos leitores atuais quanto estivera na dos vitorianos. Foi com essa figura peculiarmente perversa que "A Christmas Carol" tornou-se uma obra amplamente reproduzida e adaptada até os dias de hoje. A óbvia (e abrupta) ciclicidade de seu personagem nos traz uma narrativa não somente comovente, mas, principalmente, interessante, pois, de fato, o ciclo é completado. Diferente de personagens que do mal, vão ao bem e vice-versa, Scrooge passa de um jovem de coração puro a um homem corrompido pela filosofia capitalista e, enfim, novamente retorna aos valores essenciais ao ser humano.
Ebenezer Scrooge era um homem amargo, ranzinza e mesquinho, que odiava o Natal. Não tinha compaixão, nem piedade. Ele mantinha uma empresa, junto com seu sócio, Marley, que também não era muito maior em espírito que o outro. Marley morre, sozinho, em uma véspera de Natal. Não há quem lamente sua morte ou chore por sua falta, nem mesmo seu grande companheiro de negócios há anos, Scrooge. Sete anos depois, o velho rabugento, protagonista de nossa história, recebe a visita do fantasma de Marley. Acorrentado e sofrendo por todos os males que fez (ou bens que não fez) no mundo dos vivos, ele vem para introduzir a visita de outros três fantasmas que virão no decorrer da noite para, através das imagens do passado, do presente e do futuro, dar mais uma chance de mudança a Scrooge. O fantasma do passado vem para mostrar os momentos felizes, bem como os tristes, do passado de Scrooge: o desprezo do pai, o carinho da irmã, o encontro de um grande amor e sua subsequente perda, quando a mesquinhez começa a penetrar o espírito de Scrooge. O do presente vem mostrar os natais que se passam nas casas das famílias de alguma maneira próximas a Scrooge: o ódio que a esposa de seu empregado sente pela perversidade dele e a carência financeira da família, fruto do baixíssimo salário do pai, que, além de tudo, não tem condições de dar a o atendimento adequado a seu filho deficiente; o Natal na casa de seu antigo amor, que, agora, casada, com filhos lindos e muito feliz, o faz perceber tudo aquilo que poderia ser dele, mas que sua avareza não permitiu; finalmente, o Natal na casa de seu sobrinho, para o qual ele é chamado todos os anos, convite que ele sempre nega, tornando sua rabugice um motivo de piadas dentro da própria família.


O fantasma do futuro lhe mostra o dia do seu enterro: ninguém para lamentá-lo, uns ou outros a comentar sobre o que será agora do dinheiro que ele tanto guardou e para nada serviu, muitos querendo se aproveitar da solidão de sua morte para roubar o defunto sem que ninguém perceba. Após todas essas visões, a preocupação de Scrooge é: será que esse futuro é imutável? Ou será que, mudando a atitude, o que virá também pode mudar? É então que ele assume uma postura completamente diferente ds anterior sobre a vida. De repente, torna-se generoso, alegre, cheio de amor. Vai ao Natal na casa do sobrinho, ajuda a família de seu empregado, faz doações... Assim, a visão que muitos possuíam sobre ele vai, aos poucos, mudando. É fato que alguns, espantados com a abrupta modificação, acham que ele enlouqueceu, que está com um parafuso a menos. As más línguas sempre irão existir. Scrooge, porém, não abre mão de aproveitar o pouco de amor que lhe resta para dar e receber por causa das críticas e, assim, conquista pessoas. com muitos a seu redor, não permanece solitário e, cada dia que passa, torna-se mais pleno e feliz.


Scrooge pode clamar a honra de ser um dos seres mais energéticos e comprometidos dentre os grotescos da literatura inglesa: ninguém saboreia tanto apresentar uma postura sovina quanto ele, que está sempre atento aos menores detalhes, mas é também verdade que ninguém sofre uma transformação tão brusca e dramática. O conto mais aclamado de Dickens é uma história sobre redenção e sobre o potencial de mudança inerente ao homem: ainda que velho, rabugento e avarento, uma última chance é dada ao personagem e ele é salvo antes de morrer sozinho, sem nenhuma lágrima sob seu túmulo.
"– O senhor Marley faleceu há cerca de sete anos. Morreu nesta mesma noite, fará seguramente sete anos. 
– Não temos a menor dúvida de que a generosidade do sócio sobrevivente seja igual à dele, – disse um dos cavalheiros, apresentando os papéis que o autorizavam a pedir. 
E não se enganava, pois que os dois sócios eram bem dignos um do outro. 
Diante da inquietante palavra generosidade, Scrooge franziu a sobrancelha, sacudiu a cabeça e devolveu os papéis. 
– Nesta festiva época do ano, senhor Scrooge, – prosseguiu o cavalheiro, tomando uma pena –, parece ainda mais oportuno do que em nenhuma outra ocasião, arrecadar algum dinheiro para aliviar os pobres e os deserdados da sorte, que sofrem cruelmente os rigores do inverno. A muitos milhares de infelizes falta mesmo o estritamente necessário, e muitas outras centenas de milhares não conhecem o mais insignificante conforto  
– Não há prisões? – perguntou Scrooge. 
– Prisões não faltam, – disse o cavalheiro, largando a pena. 
– E os asilos? Não fazem nada? – perguntou Scrooge.
– Sim, de fato, embora eu preferisse dizer o contrário. 
– Então, as casas de correção estão em plena atividade? 
– Sim, estão em plena atividade, senhor. 
– Oh! Eu já estava receando, pelo que o senhor me disse há pouco, que alguma coisa tivesse interrompido uma atividade tão salutar, – disse Scrooge. Estou satisfeitíssimo por saber que tal não aconteceu. 
– Persuadidos de que estas organizações não podem proporcionar ao povo o consolo cristão da alma e do corpo, de que ele tem tanta necessidade, tornou o cavalheiro, alguns dentre nós resolveram empreender uma coleta, cujo produto seria distribuído aos pobres, em forma de alimento, combustível e roupa. Escolhemos esta época do ano porque, mais que nenhuma outra, é aquela em que mais cruelmente se faz sentir a penúria e em que o conforto se torna mais doce. Quanto posso pôr em seu nome? 
– Nada. 
– Desejaria guardar o anonimato? 
– Desejo que me deixem em paz; já que os senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu não faço banquetes para mim próprio pelo Natal, vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço muito em dar minha contribuição às organizações de que falamos ainda há pouco, e elas não ficam barato! Aqueles que tiverem necessidade que recorram a elas. 
– Muitos não o podem fazer, outros preferem a morte. 
– Se preferem a morte, – disse Scrooge –, está ótimo! Que morram! Isso virá diminuir o excesso de população. 
De resto, queiram desculpar-me, porém não estou bem a par dessa questão."

Mas além desta intenção evidente, a obra é uma triunfante afirmação da alegria de viver, amar e compartilhar. Nenhum pensamento, sentimento ou ideologia é saudável, nem compensatória, se nos tira a capacidade de ser feliz, o que está amplamente relacionado à boa convivência e, principalmente, à criação de laços. Uma vez que os três espíritos mostram a Scrooge os erros que ele cometeu, é através de um processo gradual de confrontação, catarse e descongelamento emocional que o personagem se torna o homem mais alegre de toda a cidade. De seu amargo interior, surge um Scrooge "tão leve quanto uma pena... tão feliz quanto um anjo... tão imprevisível quanto um bêbado".
Apesar dos terríveis avisos sobre sua catástrofe social que o fantasma do presente vem apresentar a Scrooge, o espírito do livro é positivo e tranquilizador. Ele acaba por levar ao leitor a esperança de que os erros e as más lembranças, apesar de não poderem ser reconstruídos e já haverem afetado o desenrolar da história até o momento presente, podem ser, pouco a pouco, anestesiados por uma mudança de postura frente à vida.
Um dos personagens secundários, cujo contraste com relação a Scrooge é de grande importância, é seu sobrinho Bob. Enquanto um é sempre perverso e miserável, o outro mostra-se generoso e alegre. Por mais que Bob insista em convidá-lo para festejar o Natal, o tio, sempre com a resposta na ponta da língua, afirma que o Natal não é mais que uma desculpa para o consumismo desenfreado, o que se torna uma ironia, tendo em vista que o maior "capitalista" da história é ele mesmo.
É também fato que o que mantêm a comicidade da obra, apesar de seus momentos trágicos, é a escolha das palavras da narrativa. A profusão dos verbos, dos adjetivos, cada um com uma ressonância cômica, é parte e todo da generosidade de bons fluidos em cada cena e no livro, como um todo. A abundância de descrições visuais é grande característica dos livros de Dickens. "Um conto de natal" torna-se, então, uma boa comédia e um documento de críticas sociais. De fato, o livro é uma dramatização cômica dos valores que deprecia. Aquele que no início detesta todos que lhe desejam "Feliz Natal", passa nas ruas a desejar o mesmo aos mais ilustres desconhecidos. Scrooge percebe, finalmente, que virtudes como compreensão e generosidade emergem dos mais comuns relacionamentos ou contratos sociais e, somente depois, difundem-se por mundo afora.

Dickens adiciona também sua crítica à vida miserável e sofrida dos marginalizados no período, plena revolução industrial, onde, de fato, a situação da maior parte da população era caótica. Podemos dizer que ele faz uma "exposição romântica" do fato verídico para sensibilizar, sem chocar demais o leitor. Ele vai mais longe ao enfatizar a Necessidade e a Ignorância (também adaptados para o português como Fome e Miséria) como duas crianças apresentadas pelo fantasma do presente, antes de se extinguir. Essa torna-se uma realidade, cujo futuro desconhecemos, mas que são frutos do abandono da sociedade.
É da mesma maneira que Scrooge se vê, no futuro, como um cadáver abandonado e abala-se extremamente com a cena. E no espírito de que as melhores lições são as mais difíceis, Scrooge é impulsionado em seu processo de transformação.
"Um conto de Natal" nos inclui e envolve em cada virada de página, desafiando, entretendo e nos encantando até nos momentos mais "pavorosos". Ainda que a narrativa tenha capturado o espírito e a sensibilidade da era vitoriana (diferente de sua contemporâneo singular, "O morro dos ventos uivantes"), ela permanece atemporal em seu encanto para o leitor da idade moderna, não somente pelos seus valores nostálgicos, mas principalmente porque estes são embasados na mais pura realidade.


Video-curiosidades:

O conto não é somente muito famoso por ele mesmo, mas, uma de suas adaptações também conseguiu alcançar um grande sucesso e merece, portanto, destaque: Tio Patinhas (Scrooge Mc Duck), da Disney, teve seu caráter obviamente inspirado em Ebenezer Scrooge, o nosso grande pão-duro. No curta "Mickey's christmas carol", de 1983, McDuck revive Ebenezer.
Em 1988, surge a adaptação, estrelando Bill Muray, "Scrooge."
Os Muppets também tiveram sua parcela na popularização do conto. Em 1992, fizeram o filme "The Muppet Christmas Carol", que, mais uma vez, adaptava a obra de Dickens.
E, como a história infantil que foi criada pra ser, foi adaptado para uma versão feminina pela Barbie no ano de 2008, em "Barbie em uma canção de Natal", que deve passar na sessão da tarde qualquer dia desses.
Em um espírito totalmente diferente, "Minhas adoráveis ex namoradas", de 2009, toma os 3 espíritos de Dickens emprestados para mostrar a um homem os erros que ele cometeu na forma de tratar as mulheres que passaram por sua vida. E, no caso, com Matthew McConaughey, não tem erro. Jennifer Garner também estrela no filme.
E, também em 2009, a Disney lançou um filme em desenho animado, estrelando Jim Carrey e Colin Firth, entre outros, com uma super ideia de adaptação da história de Scrooge, que tinha tudo para dar certo, mas... . Apesar de seguir a obra devidamente, o filme é extremamente monótono e, na minha opinião, um verdadeiro fiasco. Deveriam ter ficado com o curta de tio Patinhas.


4 comentários:

  1. Excelente sua visão crítica. Parabéns!

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  2. excelente ..parabéns!!!!

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  3. O Ebenézer Scrooge é o sovina de toda a Inglaterra. Porém o livro apresenta ao leitor outras características. Quais?

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