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domingo, 3 de junho de 2012

"O Perfume", Patrick Süskind

Publicado pela primeira vez em 1985, a obra do escritor alemão Patrick Süskind, cujo título original é: "Das Parfurm - Die Geschichte eines Mördes", ou seja, "O perfume - A história de um assassino", encanta e intriga com sua escrita de elegância macabra e profunda.  A descrição de uma sociedade ambientada na Paris do século XVII é tão minuciosa e analítica que pode, a princípio, ludibriar o leitor quanto ao ano em que a narrativa foi escrita. Ao menos, confesso que assim foi para mim. No entanto, examinando mais uma vez a situação de extremo conhecimento e a análise detalhista dos pormenores sociais e ambientais do período, pode-se afirmar que as palavras vem de um observador distante, que baseia suas informações em um estudo minucioso do que não presenciou.
"Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de penas, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros, fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a  rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor."
O ano é 1738. Um bebê, quase vítima da morte pelas mãos da própria mãe, chora, na intenção de ser encontrado e delatar as más intenções daquela que lhe havia dado à luz. Não por questões de maldade ou justiça, mas, como em uma primeira batalha de sua luta pela sobrevivência. O bebê é levado para a Igreja, cujo padre responsável decide pagar para que uma ama de leite o alimente, como era feito com tantos outros bebês que ali foram parar. É nesse instante, ainda no início de nossa narrativa, que começamos a perceber algo de muito errado com aquela criatura: a mulher que dava àquele bebê do que comer decide negar-lhe, devolvendo-lhe ao padre... Não é que o dinheiro que lhe estava sendo pago era pouco. Por nada nesse mundo ela manteria aquela criança dentro de sua casa, junto aos seus filhos, afinal, como é possível confiar em um ser que, simplesmente, não possui odor.
Este fato será a maior angústia e, ao mesmo tempo, trará a maior ambição de nosso personagem.
Deixado em um orfanato, Jean-Baptiste Grennouille cresce sem que ninguém lhe perceba, nem se preocupe.  Isso lhe dá liberdade para, aos poucos, ir-se descobrindo e encontrar em si um dom único e maravilhoso: um nariz capaz de sentir até os odores mais distantes e imperceptíveis. Em certo ponto, ele é dado como capaz de adivinhar o futuro, pelo fato de conseguir dizer "as pessoas que estão chegando para a visita" ou "onde está o dinheiro que a dona do orfanato havia guardado e não sabia mais aonde". É esta última "pequena adivinhação", inclusive, a causa de sua saída do orfanato. Ele então é jogado para um trabalho pesado e contaminante, do qual poucos saem vivos. Devido à sua excepcional capacidade de sobrevivência, no entanto, ele ganha a confiança do chefe. Sem que nem mesmo nós, leitores, percebamos, Grennouille começa a criar em si o desejo de ligar os cheiros que ele armazena em sua vasta memória odorífica e, atrelado a isso, o desejo de trabalhar em uma perfumaria. A malícia já começa a instalar-se em nossa personagem. Sua aparência inocente e sua presença desprezível (proveniente de um ser humano sem odor) são seus aliados nas diversas batalhas que ele travaria a partir dali para conseguir o que quer. A primeira delas é a perfumaria.
Um dia, passeando pelas ruas da cidade, este projeto de homem com um olfato extremamente desenvolvido, depara-se com um aroma nunca antes sentido: aroma esse que, após uma longa perseguição, descobre-se oriundo de uma jovem russa no que chamaríamos de "a flor da idade". Para melhor apreciar este espetáculo odorífico da natureza, e sem nenhuma intenção verdadeira de maldade, Jean-Baptiste assassina a bela menina, na esperança de melhor "cheirá-la". É a partir daí que, após diversos acontecimentos, nosso personagem entra numa longa e sinistra jornada para criar o melhor perfume do mundo, transformando-o em um facínora sem escrúpulos.
A personagem criada por Süskind é de um caráter especial e complexo. À princípio, Grennouille não tinha nada, mas, aos poucos, talvez como um organismo de defesa, cria-se nele um ser extremamente egocêntrico. Tudo que ele consegue ver nos outros é inferioridade e ignorância. Ele sente-se o rei do universo, pois, por causa de seu dom, ele acaba por ser capaz de desnudar as pessoas, seus desejos, suas frustrações, sua realidade. Afinal, somos todos animais e, por mais que não percebamos, estamos, a todo momento, liberando odores que retratam nossas emoções. É também assim que ele descobre-se capaz de controlar as pessoas, pois os aromas, ainda que nos pareçam imperceptíveis, são capazes de mudar nosso humor e, até mesmo, nossas opiniões e pontos de vista sobre as coisas mais simples. A arrogância toma conta dele, que começa a sentir-se e comparar-se a um deus.
"[...]as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração - ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas."
O autor retrata as fixações e excentricidades macabras de seu personagem com tal eufemismo que podemos sentir a ilusão que está tentando ser criada de que o assassino em série, aparentemente inofensivo, tem motivos plausíveis e compreensivos para seus atos absolutamente contestáveis. Por vezes, é possível, inclusive, acreditar nessa ilusão, pois o criador dessa história é extremamente persuasivo.
Grennouille não buscava tirar a vida dos odores, mas sim, dar a eles vida e liberdade. Era como se, ao retirá-los em sua essência, colocando-os em frascos e aniquilando todo o resto, tudo o que havia de bom naquele ser, naquele corpo ou naquele objeto estava concentrado e não havia nada mais a se aproveitar. O que sobrava não tinha importância. Se o ser fosse mantido vivo, em convivência com uma atmosfera podre, acabaria por se corromper, corrompendo, assim, também seu odor. O melhor, portanto, era retirar o aroma enquanto inocente, límpido, puro e, consequentemente, mais delicioso.
Tomado pelo egocentrismo, tudo que o coração de gelo de Grennouille mais buscava era a capacidade de sentir algo que não fosse proveniente dele mesmo. Até mesmo porque não havia nada que viesse dele que, de fato, ele pudesse sentir.
Um recurso aqui disfarçadamente utilizado é o discurso indireto livre que, neste caso, não perde-se em monólogos divagantes, pensamentos ou emoções do personagem, e sim na própria essência de tudo que se passa dentro dele. Mas tudo que se passa dentro dele, todas as suas impressões do mundo, todos os seus mais profundos desejos e ambições originam-se no seu nariz. Eu diria, portanto, que o discurso indireto livre que é apresentado no livro não é proveniente do pobre Jean-Baptiste (um infeliz, cujo maior talento é também o maior fardo) mas sim do verdadeiro protagonista dessa história: o nariz de Grennouille. Esse dom espetacular é como um espírito mal que toma o corpo de um ser, a princípio, inocente. Neste caso, porém, não conseguimos distinguir o corpo e o espírito, pois é como se o primeiro fosse um nada sem um segundo. E, de fato, Grennouille não passaria de mais um alma desprezível e sem vida em uma cidade de miseráveis não fosse seu olfato.
Esta é a beleza do livro: apesar de ter chegado aos extremos da maldade, nossa personagem só foi realmente "vista" pelos olhos da humanidade por deixar-se tomar por seu impulso maléfico. Não fosse isso, estaria condenado, como tantos outros, a sofrer na realidade de um ser invisível.
O livro possui um aspecto muito interessante: ao passo que as "paisagens odoríficas" do livro aparentam, a princípio, ser vítimas de um demasiado hiperbolismo, precisamos atentar para o fato de que estas são vistas através do nariz do nosso personagem, que não é um nariz comum. Dessa forma, não há nada de exagerado com as descrições, tendo em vista que seguem à risca o que é perceptível por Grennouille.
Um outro traço extremamente relevante do livro é a maneira com que o autor apresenta a podridão que habita dentro das pessoas, metaforizada na podridão das ruas, das casas e das cidades. Aos poucos ele nos mostra, às vezes de maneira extremamente cruel e inesperada, os pensamentos mais profundos e obscuros do ser humano.
É um livro muito forte e chocante, mas ao mesmo tempo belo em sua lugubridade insana. Leitura imperdível e absolutamente inesquecível.


Video-curiosidades:

Em 2006, o diretor alemão Tom Tywker levou a obra aos cinemas, conseguindo captar o espírito e o estilo do livro. Dustin Hoffman e Alan Hickman constam no elenco. Mas o ator que fez o protagonista é a grande estrela, que captou o personagem e passou-o para os expectadores. A fotografia do filme é também de excelente nível.