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domingo, 5 de fevereiro de 2012

"Ensaio sobre a cegueira", José Saramago

Em 1995, o grande escritor português, que ganhou o prêmio Nobel da Literatura em 1998, José de Sousa Saramago, escreveu um livro, o qual o próprio autor definiu da seguinte maneira: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso." Esta obra intitula-se "Ensaio sobre a cegueira".
Um vírus desconhecido, capaz de cegar o ser humano instantaneamente, insere-se, de repente, na vida da humanidade. As pessoas que adoecem se "vêem" envoltas em uma claridade imensa e infinita, uma cegueira branca. Devido à rápida capacidade de propagação do vírus, os governantes chegam à conclusão de que a melhor maneira de tentar reverter a situação de "calamidade pública" é deixar os cegos e aqueles com suspeita de contaminação de "quarentena", como feito com a cólera e a febre amarela, mas, neste caso, um isolamento por tempo indeterminado. Os cegos 'encarcerados' são alertados de que o governo não irá interferir em nenhum acontecimento do local de reclusão: nem mortes, nem doenças, nem guerras farão com que os seres humanos assustados do lado de fora entrem para ajudar os doentes. A única coisa com que eles se comprometem é a entrega de comida (que, no entanto, é muito mal controlada, pulando refeições e sempre em quantidade não suficiente). Dentre nossos personagens principais, está a única mulher que não ficará "cega dos olhos" (e é importante atentar para esta expressão). Entretanto, o verdadeiro protagonista da obra é a cegueira da humanidade, que não é doença viral, mas, na verdade, psicológica.
Uma pequena parcela dessa humanidade sem escuridão é instalada em um manicômio, onde é criado um novo tipo de sociedade, com novas regras e novas formas de governar. Os cegos "malvados", assim mesmo descritos no livro, tomam o poder a partir do controle da comida e utilizando-se de artifícios de violência e repressão, no caso representados por uma arma de fogo, obviamente temida pelos outros cegos que não tinham como se defender. É a involução da humanidade. Criam-se novas definições de moral e ética, de honra e decência. As pessoas mostram sua essencialidade animalesca diante da busca pela sobrevivência, nos expondo uma realidade que sempre estava ali, dissimulada através de ternos e gravatas, de uma intelectualidade de farsa e de um conhecimento inútil e descartável. O ápice desta mudança brusca de valores se dá com a requisição dos "cegos malvados" de que as mulheres de todas as camaratas fossem servir-lhes o corpo. A seguinte cena, a qual eu acho extremamente interessante, apesar de seu sentido triste e deplorável, resume grande parte da nova estrutura de vida a que aquela sociedade precisa habituar-se, onde coisas que para nós são indecentes e incorretas tornam-se a melhor opção:

"O primeiro cego começara por declarar que mulher sua não se sujeitaria à vergonha de entregar o corpo a desconhecidos em troca do que fosse, que nem ela o quereria nem ele o permitiria, que a dignidade não tem preço, que uma pessoa começa por ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida. O médico perguntou-lhe então que sentido da vida via ele na situação em que todos ali se encontravam, famintos, cobertos de porcaria até às orelhas, roídos de piolhos, comidos de percevejos, espicaçados de 
pulgas, Também eu não quereria que a minha mulher lá fosse, mas esse meu querer não serve de nada, ela disse que está 
disposta a ir, foi a sua decisão, sei que o meu orgulho de h
omem, isto a que chamamos orgulho de homem, se é que depois 
de tanta humilhação ainda conservamos algo que mereça tal 
nome, sei que vai sofrer, já está a sofrer, não o posso evit
ar, mas é provavelmente o único recurso, se queremos 
viver, Cada qual procede segundo a moral que tem, eu penso 
assim e não tenciono mudar de ideias, retorquiu agressivo o 
primeiro cego. Então a ra
pariga dos óculos escuros disse, Os outros não sabem quantas 
mulheres há aqui, portanto você poderá ficar com a sua para 
seu exclusivo gasto, que nós os alimentaremos, a si e a ela, 
sempre quero ver como se irá sentir de dignidade depois, 
omo lhe vai saber o pão que nós lhe trouxermos, A quest
ão não é essa, começou o primeiro cego a responder, a 
questão é, mas ficou com a frase no ar, na verdade não sa
bia qual era a questão, tudo quanto ele havia dito antes não 
passava de umas quantas opiniões avulsas, nada mais que 
opiniões, pertencentes a outro mundo, não a este, o que ele 
deveria, isso sim, era levantar as mãos ao céu e agradecer a 
sorte de poderem ficar-lhe, por assim dizer, as vergonhas em 
casa, em vez de ter de suportar o vexame de saber-se sus
tentado pelas mulheres dos outros."
É assim que, aos poucos, nossos personagens, guiados pelos instintos, entregam-se à sujeira, à hábitos grosseiros, à selvageria, levando o autor a tomar emprestado o zoomorfismo do naturalismo, demonstrando que os homens podem transformar-se em seres ainda mais selvagens que aqueles que chamamos animais (esquecendo-nos que também o somos) quando se trata de sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, Saramago apresenta como as facilidades da nova era tornaram frágil e desamparado o "rei do mundo" quando lhe falta um dos sentidos.
A nossa única personagem que consegue livrar-se da cegueira, de repente, sente-se tão cega quanto os outros. Mas uma cega com olhos, que pode ver todas as atrocidades que acontecem em sua volta, fazendo-a desejar ser igual aos outros, estar na mesma situação de debilidade. E envolta numa cegueira psicológica muito maior que a dos que estão junto a ela, ela assassina o chefe dos "cegos malvados".

"Sim, matei-o eu, Porquê, Alguém teria de o fazer, e não havia mais ninguém, E agora, Agora estamos livres, eles sabem o que os espera se quiserem outra vez servir-se de nós, Vai haver luta, guerra, Os cegos estão sem pre em guerra, sempre estiveram em guerra, Tornarás a matar, Se tiver de ser. dessa cegueira já não me livrarei,"

Com esta passagem, o autor nos atenta para o fato de que o mundo sempre foi cego. De fato, os cegos, sentindo-se atacados, encontram a necessidade de defender-se. No entanto, o nosso mundo faz guerra quando pode resolver as coisas com o diálogo. A cegueira é ainda pior por possuirmos qualidade de vida e, consequentemente, capacidade de raciocínio. Afinal, é na necessidade do mundo do nosso livro que o raciocínio parece ficar bloqueado. Nossa personagem "assassina" considera-se ainda mais cega que os outros, por causa da atitude que tomou. É desta consciência que ela possui que o mundo carece. É através de alusões e metáforas à nossa realidade através de uma história aparentemente absurda que Saramago nos dá pautas de discussões e reflexões.
Um dos aspectos mais interessantes da obra só é perceptível quando o leitor se coloca no lugar dos personagens. A capacidade do autor de criar uma história a princípio fantástica e trazê-la para a realidade do ser humano, imaginando exatamente o que cada um faria nessas situações inesperadas e atrozes é impressionante. Ele nos leva a crer que não existe saída, que as decisões daquelas pessoas, das quais entramos na vida, é a mais correta diante do que elas estão vivenciando. A beleza de tudo isto é imaginar que os valores pregados no nosso mundo são completamente irrelevantes no que diz respeito ao que de fato é essencial na vida do homem. A única coisa ainda louvável diante desses destroços de irrealidade é a solidariedade, a generosidade e o carinho, ainda que seja amargo.
Outro aspecto importante da escrita deste autor sempre imprevisível é a constante aplicação de sua liberdade literária. Como pôde ser visto nos textos precedentes, os dois únicos artifícios de pontuação empregados são o ponto e a vírgula. Ainda assim, com a ausência de interrogações, exclamações, dentre outros, nós podemos compreender as entonações que nossos personagens enfatizam em cada fala, mostrando que a língua portuguesa não precisa ser tão complicada para ser compreendida.
Em todo caso, o objetivo do livro é também abrir nossos olhos para a nossa própria cegueira. A realidade atual fornece uma quantidade de informações imensurável. Com as publicidades na rua e na televisão e o advento da internet muitas coisas irrelevantes e descartáveis são atiradas através dos nossos sentidos no nosso cérebro e, se não sabemos filtrar o que recebemos do mundo, realmente acabamos por cegar. Ainda permito-me tentar inferir o motivo da brancura da cegueira de nossos personagens. Faço isso a partir da alusão às cores do arco-íris: a falta de cor nos leva ao preto, mas a mistura de todas as cores nos traz o branco. Essa cegueira, portanto, não vêm do fato de não conseguirmos enxergar, e sim de uma sobrecarga de visão, sem filtros, sem análise, sem entendimento. Assim, estamos cegos e alienados de tantas coisas importantes da vida, enquanto nossa atenção está voltada a futilidades passageiras e supérfluas.


Video-curiosidades:


Em 2008, foi realizada uma adaptação cinematográfica da obra, que deve sua excelência em transmitir a realidade do livro ao diretor brasileiro Fernando Meirelles. Estrelaram Julianne Moore, Mark Ruffalo e Alice Braga. Com um elenco de peso e um diretor de grande competência, tudo que nosso autor afirmou foi: "estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro" e que "agora conhecia a cara de suas personagens".