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terça-feira, 26 de abril de 2016

"O diário de Anne Frank"

No ano de 1947, a primeira versão de "O diário de Anne Frank", intitulada "O anexo: notas do diário", foi publicada em sua língua original, o holandês. No entanto, somente quando traduzido para o inglês, em 1952, o livro conquista a crítica mundial e a atenção de leitores de diversos países. Existem três versões do diário: a versão A é a original, mantida desde o momento em que Anne recebe o diário até a última carta escrita; a versão B é a edição iniciada por ela mesma, quando, ao ouvir o pedido do ministro Bolkenstein na Radio Oranje para que refugiados lhe entregassem diários e anotações pessoais, ela decide publicá-lo após a guerra; e a versão C, uma reedição feita pelo pai de Anne Frank. 
Ver imagem originalA coletânea de trechos do diário foi muito bem elaborada no sentido de escolher as partes que fazem do livro uma obra literária, por vezes séria, mas por vezes adolescente. Há, inclusive, momentos de suspense, onde as famílias estão para serem descobertas, mas não o são, algo que poderia-se esperar de uma história fictícia, tornando o livro ainda mais interessante.
O livro não carrega a atmosfera pesada da Segunda Guerra Mundial. Muitos acontecimentos se dão rapidamente e de maneira prática, o que faz sentindo por não ser uma história romantizada, como "A Menina que Roubava Livros", mas verídica, permitindo, inclusive, que o leitor se veja capaz de lidar com essa situação, que, de tão aterrorizante, parece irreal, e, no entanto, é totalmente possível.
Annelies Marie Frank, ou simplesmente Anne Frank, nasceu no dia 12 de junho de 1929 em Frankfort, na Alemanha. Seus pais, Otto Frank e Edith Holländer, alemães de origem judia, possuíam também uma outra filha mais velha, chamada Margot. Até o ano de 1933, a família Frank vive em Frankfort, onde o pai, Otto, era diretor de um banco. Porém, como consequência da crise econômica e do crescente antissemitismo, eles decidem se mudar para Amsterdã, nos Países Baixos. Hitler acabara de chegar ao poder, glorificando a raça ariana. Ele instaura um regime de terror, banindo os judeus da sociedade.
Ao chegar aos países baixos, Otto cria sua própria empresa, enquanto suas filhas aprendem holandês, língua na qual Anne viria a escrever seu diário. No entanto, em 1940, os Países Baixos são invadidos pela Alemanha e severas medidas contra os judeus são impostas, proibindo Otto de exercer seu trabalho. Ele, então, pede a seus associados, Kleiman e Kugler, que emprestem seus nomes à empresa para que ele não fique registrado como proprietário. Assim que Margot recebe uma convocação da SS (Schutzstaffel, uma organização paramilitar ligada ao partido nazista), a família decide se refugiar no "anexo", que é o antigo posto de trabalho da usina de Otto, escondido por uma porta giratória em formato de biblioteca. Anne tem 13 anos quando começa a viver em esconderijo e é a partir de então que ela escreve a maior parte de seu diário. Com ela, vivem mais sete pessoas durante dois anos, supridas em alimentos, vestimentas e livros pela secretária e amiga de Otto, Miep Gies, seu marido Jan, outra secretária, Bep Voskuyl e os associados de Otto. Os habitantes do anexo são Otto, Edith, Anne e Margot Frank; Augusta, Hermann e Peter Van Pels (de codinome Van Daan no diário) e o dentista Fritz Pfeffer (de codinome Albert Dussel). Finalmente, em 1944, os habitantes do anexo são descobertos pelo serviço de espionagem da SS, bem como Kleiman e Kugler. Não nos é dito quem os havia denunciado. Não há suspeitas sob Bep e Miep, que consegue guardar o diário de Anne. Ela tenta, em vão, evitar a deportação da menina. Segundo dados recolhidos pela cruz vermelha holandesa, Anne foi deportada para o campo de Westerbork, perto da fronteira alemã, e, em seguida, foi transferida, junto a sua família, em direção à Auschwitz. Finalmente, é deslocada, com sua irmã, à Bergen-Belsen, onde provavelmente morreu de tifo em março de 1945.
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No diário, Anne encontra um amigo e confidente, que ela instintivamente personifica para diminuir a solidão do abrigo. Dessa forma, seus escritos tomam o formato de carta e não são simplesmente monólogos, uma vez que ela dá também a palavra à Kitty, nome pelo qual ela apelidou o diário. Diversas vezes, ela refere-se a si mesma na terceira pessoa, como se quisesse analisar as situações de fora, diferenciando as duas "Annes" que ela diz representar: em sociedade, uma Anne insolente e impulsiva, que, indiferente, dá de ombros quando o assunto não lhe agrada, mas, em seu interior, uma menina doce, sonhadora, inteligente e preocupada. Nosso primeiro impulso, ao vê-la apresentando-se assim, é, talvez, o de desqualificar esse aparente autoconhecimento como a ingenuidade de uma adolescente que, mesmo revoltada e impaciente com o mundo à sua volta, se conhece sempre superior ao que os outros imaginam. No entanto, os mais sensatos e eloquentes adultos se vêem tantas vezes incompreendidos e mal interpretados, pois, ao passo que somos falhos ao colocar em palavras nossos verdadeiros pensamentos e sentimentos, são também os outros falhos em os decifrar, seja por ignorância ou dissimulação. Além disso, a vivência faz com que, voluntária ou involuntariamente, resguardemos nossos sentimentos por segurança, na tentativa de mascararmos nossas fraquezas e evitarmos o julgamento alheio. Esse comportamento pode ser equivocado, pois, para os que, como Rousseau, acreditam que o homem é genuinamente bom e é a sociedade o transforma, há muita bondade a ser encontrada no íntimo de cada pessoa. Sem mais divagações, assim também, acredito que Anne era, de fato, emocionalmente superior àqueles à sua volta, ainda que com sua falta de moderação.

Nos escritos, encontramos uma menina em plena descoberta da vida: seus amigos, sua escola, seus primeiros amores. Sua alegria de viver é genuína e, apesar das drásticas mudanças que ela vivencia, dificilmente demonstra ódio ou tristeza. Ela não tece muitos comentários sobre o momento político e econômico - também não poderia se esperar isso de uma pré-adolescente -, mas somente explica um pouco sobre as novas leis e restrições aos judeus e como isso afetaria a vida de sua família. Durante muito tempo, as novas limitações não parecem lhe incomodar, mas, somente quando sua irmã é convocada pela SS e ela compreende a necessidade de entrar na clandestinidade, ela toma consciência da gravidade da situação. Assim, lhe é requerido um amadurecimento mais rápido que o previsto, ao que ela corresponde revelando seu espírito forte e sólido. Ela evita se lamentar, apesar da angústia trazida pela clandestinidade e busca sempre um olhar positivo, algo possível talvez pelo fato de ela não se interessar tanto pela guerra e mesmo pelo destino dos judeus. Por mais cruel que essa suposição possa parecer com a própria Anne – a de um desinteresse pelo próprio fado - há de se considerar primeiro a pouca idade de nossa escritora e, depois, o fato de que muitas vezes a ignorância, e não o conhecimento, leva à felicidade, ainda que esta não seja autêntica. Anne tem muitas resoluções e discernimentos de um adulto e, por isso, considera Peter, apenas um pouco mais velho que ela, um fraco por suas dúvidas e carências. A realidade é dura para uma adolescente que tem que conviver com a perseguição, mas Anne encontra meios de sobreviver a isso, seja fantasiando ou escrevendo. A segurança emocional da menina fica ainda mais evidente quando comparada às reações dos outros, como, por exemplo, o fato da sra. Van Daan, em desespero, falar em bala na cabeça, prisão, enforcamento e suicídio. Além disso, tanto Margot quanto Peter dizem constantemente à Anne: "Ah se eu tivesse sua força e coragem, se eu perseguisse meus objetivos com tanta vontade quanto você, se eu tivesse tanta energia e perseverança...". A história de Anne é, portanto, também uma história de esperança e felicidade, pois, apesar de tantos fatores externos, políticos e sociais, se contraporem à alegria e paz da menina, ela não se deixa atingir e permanece firme em seus ideais, sem sinais de depressão e desistência. Talvez, inclusive, gere mais comoção e reflexão nas pessoas que diversos livros de auto-ajuda por seu caráter verossímil e exemplificativo.
Apesar de todos os esforços para sempre ver as coisas pelo lado bom, ela nos relata alguns fatos inquietantes sobre essa vida em clandestinidade. Por exemplo, sempre que um apito estridente é ouvido, todos ficam apavorados. Há ainda toda uma organização a ser levada em conta e uma grande engenhosidade da família Frank e seus protetores ao inventar histórias para evitar que os alemães os procurem. Para que tudo corra bem no anexo, é necessário seguir um rigoroso regulamento que inclui silêncio e discrição. Os habitantes no anexo também não podem sair, o que acaba levando a uma grande dificuldade de convivência. Anne tem vários problemas de relacionamento, principalmente com a mãe, mas também com diversos outros moradores. A única pessoa que ela realmente ela ama e admira é seu pai. Assim, contrariando a hipótese mais direta de que o fato de estar escondida, vivendo em uma guerra e procurada pelos alemães fortaleceria os laços familiares de Anne, a convivência diária e exaustiva, sem a liberdade de ir e vir, faz com que as angústias se amontoem, aumentando as tensões. É quando ela acha em Peter uma distração através do romance, mais uma ferramenta que a cabeça dela usa, inconscientemente, para não adoecer ou esmorecer. Mas isso é uma percepção que apenas o leitor, vendo tudo de fora, pode ter. Para Anne esse amor é bem real. E, nesse ponto, o livro tangencia, por vezes, um romance pré-adolescente, ate mesmo no sentido do amor fantasioso, ou seja, imaginar no amado um ser encantador e, geralmente, bem superior ao que ele de fato é. A isso se deve também a decepção de Anne ao perceber as fraquezas de caráter de Peter.
Com a guerra e, principalmente, com suas leituras no anexo, Anne levanta diversos questionamentos sobre a vida e as pessoas. "Você saberia me dizer por que as pessoas escondem, com tanto cuidado, suas personalidades?", "por que confiam tão pouco uns nos outros". Sua evolução intelectual é perceptível até pela própria Anne. "Estou muito contente de ter aprofundado meus conhecimentos na espécie humana". De fato, ela sente que amadureceu. Essa maturidade a leva a constantes alterações de humor e de opinião, chegando a parecer contraditória. Por exemplo, após duras críticas à sua irmã Margot, um belo dia ela muda completamente sua visão, apontando Margot como "tão gentil, muito mudada, tornando-se uma verdadeira amiga". E, no entanto, não temos como saber se quem mudou foi Margot ou os olhos de Anne. O ser humano que não é capaz de ceder e mudar de visão, é incapaz de evoluir.
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A última carta de Anne, que finaliza o diário, se termina com seu desejo de que a família conseguisse enxergar o lado dela que, aparentemente, não é notado. Anne é uma jovem adolescente em busca de autoconhecimento que não compreende por que a guerra existe e por que as pessoas se machucam com tanta frequência, tanto em termos bélicos, quanto em termos pessoais. Tudo o que ela gostaria era de aproveitar a natureza, conquistar seus sonhos e mostrar o papel da mulher moderna - sendo assim diferente da sua mãe.
O sonho de Anne é ser jornalista e, no futuro, uma célebre escrivã. Ela tinha a pretensão de publicar um livro ao final da guerra, baseando-se no diário. Mas, apesar de sua triste história, não realizou Anne seus maiores desejos? Afinal, "O diário de Anne Frank" é um dos mais famosos e divulgados relatos verídicos sobre a segunda guerra mundial em formato de livro autobiográfico.

O anexo da casa onde Anne Frank ficou escondida com sua família, em Amsterdã, na Holanda, pode ser visitado até os dias de hoje. Tive a oportunidade de conhecê-la em maio de 2018*.
Para mais informações sobre a história de Anne, clique aqui.

Videocuriosidades:

Em 1959, após grande repercussão da versão em inglês, uma adaptação cinematográfica do filme foi dirigida por George Stevens. O filme ganhou três Oscars em 1960.
Desde então, diversas outras adaptações de diversas nacionalidades, inclusive televisivas, foram criadas, incluindo a francesa de 1999, dirigida por Julian Wolff, um documentário americano de 1995, dirigido por Jon Blair ("Anne Frank Remembered") e, mais recentemente, um filme alemão, lançado em janeiro de 2016, dirigido por Hans Steinbichler.


*Post atualizado.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Persuasão", Jane Austen

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Último romance escrito por Jane Austen, "Persuasion" (em português, "Persuasão") foi finalizado em 1816 e publicado postmortem, em 1818. Posterior à "Emma", a obra tem um toque de sobriedade não encontrado em seus precessores, se contrapondo à vivacidade de "Pride and Prejudice" e a indulgência satírica de "Northanger Abbey". Enquanto títulos como "Sense and sensibility" indicam um conflito de valores discordantes, "Persuasion" é exclusivo em sua temática e, ainda assim, amplamente ambíguo. As obras citadas, associadas a "Mansfield Park", completam o conjunto de romances longos publicados pela autora, e, portanto, com esta resenha, o blog finalmente possui uma análise para cada uma das obras mais relevantes de Austen.
Anne Elliot, a segunda filha do barão Walter Elliot, é uma mulher de 28 anos tranquila e solitária. Ela carrega consigo uma seriedade melancólica. Seu único arrependimento na vida é de não haver se casado com Frederic Wentworth oito anos antes, quando ele havia proposto. Seu pai era contra a união e sua grande amiga, a sra. Russel, lhe havia persuadido de que esta era uma união desfavorável, pois Frederic não tinha relações sociais ou poder financeiro, mas apenas o futuro incerto de um oficial da Marinha em início de carreira. Após todos esses anos, no entanto, Frederic retorna rico e com o título de capitão, após adquirir grande prestígio por seu sucesso nas guerras napoleônicas. Ele guarda ainda uma grande amargura por Anne e, diante de uma mulher que foi tão facilmente manipulada, está convicto de que a ela falta caráter e firmeza de espírito. Muitas são suas pretendentes, incluindo as outras irmãs de Anne, a qual ele parece ignorar. Pelo menos, a princípio.
"Persuasion" é intrigantemente moderna na forma como nos apresenta a vida íntima de Anne. Nenhuma outra personagem parece familiarizada com seus sentimentos. Somente o leitor conhece suas verdadeiras emoções. Tímida e reservada, a modéstia de Anne chega a ser dolorosa. Ela toca piano muito bem, mas sente que, ao fazê-lo, está "satisfazendo somente a si mesma". Essa introversão da protagonista afeta a textura do romance, que, mais que qualquer outro de Austen, exige uma atenção especial aos detalhes. Da mesma forma que Anne está sempre atenta às mais leves nuances na fala de cada interlocutor, também o leitor precisa estar. Por exemplo, ao longo da obra, as palavras "persuadir", "persuasão" e "persuadível" aparecem por volta de 30 vezes, enfatizando a importância das escolhas pessoais e levantando um questionamento sobre qual é o melhor valor: a conviccção ou a flexibilidade. Afinal, se por um lado a flexibilidade é tantas vezes indispensável para promover a compreensão, incitar o diálogo e alimentar a empatia, por outro, a convicção nos ajuda a lidar com nossas próprias escolhas. Somente quando acreditamos nos caminhos que definimos para nós mesmos, conseguimos seguir sem remorso e arrependimento. A convicção nos dá clareza, ainda que tudo dê errado, por nos oferecer a certeza de trilharmos nossa própria estrada e sermos donos de nossa história. Mas, ao passo que a flexibilidade exacerbada pode nos tornar facilmente sugestionáveis, há uma linha muito tênue entre uma forte convicção e a arrogância. Determinação beira à teimosia e verdades absolutas constantemente nos conduzem a situações lamentáveis.

Ver imagem originalAo mesmo tempo, o livro apresenta interesse em problemas de maior âmbito social, como a mudança dos papéis do homem e da mulher na sociedade, refletida na alteração das expectativas, valores e conduta de cada um. Há uma contraposição direta entre dois grupos da sociedade na obra: os nobres de berço, representados por Sir Walter e os que, por mérito, conquistaram riqueza e patentes, onde se encontram Fréderic e seu irmão, o almirante Croft.
Logo no início, encontramos o Sr. Walter Elliot lendo seu livro preferido - um livro sobre aristocracia - cuja parte que mais lhe agrada é a que se trata dele mesmo. Seu notável narcisismo é o principal e único ponto que constitui seu caráter. Ele acredita que a aparência física é a melhor medida de valor de uma pessoa e esse seu superficial orgulho próprio é apoiado e compartilhado por outras personagens. Ele chega, em um momento, a afirmar que o sucesso naval nada mais é que uma forma de alavancar pessoas de berço inferior à uma distinção indevida. Por isso, quando descobre que o almirante Croft será seu inquilino, fica satisfeito não pelos méritos navais deste último, mas por achá-lo muito apresentável em termos de beleza, tão grande é sua futilidade.

No entanto, assim que o almirante chega à casa, logo se livra dos imensos espelhos do quarto do Sr. Walter, já que não não compartilha de seu pomposo egocentrismo. Além disso, é notável a diferença de relacionamento que o sr. Walter tem com sua mulher, quando comparado a de outros personagens. Ambos participam ativamente das atividades do outro: tanto a Sra. Croft conhece amplamente o ofício de seu marido, quanto o sr. Croft colabora bastante com as atividades domésticas. Eles também se dividem na hora de dirigir. Ou seja, levando em conta essas e outras características, pode-se afirmar que esse é o ideal de Austen de um casal moderno. A representação que Austen faz da Marinha carrega a ideia de uma sociedade aberta e meritocrática, na qual a autora acredita. Sua admiração por esta instituição pode ser também associada ao fato de dois de seus irmãos terem servido na guerras francesas, sendo que um deles tornou-se também almirante.

Ver imagem originalOutro ponto de contraste que podemos notar entre esses personagens é sua atitude com relação aos sentimentos. Enquanto o Sr. Walter é emocionalmente incapacitado, os Croft parecem possuir um autoconhecimento completo. Assim, "Persuasion" é também um romance sobre aprender a sentir. Apesar de iniciar-se no verão, a maior parte da história se passa no outono e no inverno e, assim, a atmosfera do livro é maculada pelo declínio. Nos é dito que Anne "foi uma bela menina, mas logo seu brilho devanesceu". Agora, aos 27 anos, ela está "velha demais" para ser ainda solteira.
A história do crescimento de Anne é também a história do desencadeamento de suas emoções. Logo no início, ela não é ninguém para o Sr. Walter e Elizabeth: sua palavra não tem peso, seu conforto sempre dá lugar ao dos outros. Ela chega a afirmar que "um forte senso de dever não é algo ruim para uma mulher" e, no entanto, seus sentimentos com relação a essa obrigação para com os outros precisam constantemente ser suplementados pela crença que ela possui em si mesma. Na verdade, ainda muito jovem, nossa protagonista havia sido forçada à prudência e somente aprendeu sobre romance quando já estava mais velha, uma sequela natural de sua infância incomum. Assim, com o passar do livro, suas emoções naturais vão sendo revitalizadas.
Ver imagem originalAo mesmo tempo, essas reais emoções precisam ser divulgadas discretamente. Por isso, o capitão Wentworth revela seus sentimentos por Anne numa carta. Este é um padrão no trabalho de Austen: as cartas permitem às personagens articular seus sentimentos de uma forma que, em público, seria inapropriada. No final, Frederic e Anne se reencontram no amor, agora de uma forma mais madura, consciente e, portanto, mais sólida. Mas, ainda assim, as incertezas sobre o futuro de Wentworth na Marinha, como a possibilidade de futuras guerras, ameaçam a felicidade de Anne. Nossa personagem parece, portanto, sempre fadada à melancolia.


Videocuriosidades:

Em sua maioria, as adaptações cinematográficas mais conhecidas - e nem tão conhecidas assim - de Persuasion estrearam na TV.
A rede BBC fez duas minisséries, uma em 1960 - com Daphne Slater e Paul Daneman - e outra em 1971 - com Anne Firbank e Bryan Marshall.
Em 1995, uma adaptação com Amanda Root e Cláran Hinds estrou na televisão.
Finalmente, outro filme televisivo estrou em 2007 com Sally Hawkins e Rupert Penry-Jones. Este último, que eu assisti, não é dos melhores e fica longe de adaptações como as de Emma  e Pride and Prejudice, mas se mantem fiel ao livro, nos ajudando a captar sua atmosfera melancólica e, talvez, por isso mesmo, não seja um filme tão atraente. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"Little Women", Louisa May Alcott

Publicado em 1868,  "Little Women" (traduzida para o português como "Mulherzinhas" ou “Pequenas Mulheres”ambos títulos com os quais não me identifiquei), de Louisa May Alcott, é reconhecido como um dos mais amados clássicos da literatura infantil de todos os tempos. Atemporal em sua evocação do ideal de harmonia familiar e convívio fraterno, foi originalmente escrito como uma história "para meninas", mas logo transcendeu os limites de tempo e idade, tornando-se tão popular entre os adultos quanto entre as crianças.
É difícil identificar-se apenas com um dos personagens. Seja a linda e doce Meg ou a independente e original Jo; a delicada e amável Beth ou a bela e precose Amy, o bebê da família. Desde a primeira página do clássico sobre mocidade, mergulhamos no círculo familiar dos March, onde somos convidados a presenciar uma tipicamente animada discussão entre as garotas. O laço de intimidade e empatia estabelecido entre leitor e personagens é firme e imediato, extinguindo-se após o fim da última página, ou ainda perdurando na reflexão pós-literal.
Escrito a partir da sugestão de seu editor, que queria uma "história para meninas", o livro oferece uma caracterização tão ricamente imaginativa e visualmente viva que sentimo-nos, ao final do livro, como se estivéssemos dando um adeus de despedida a velhos amigos. Apesar da modéstia de Alcott com relação ao livro, o grande sucesso da obra assegurou que mais uma vez as cortinas se abririam para o drama doméstico da família March em "Good Wives", que foi publicado no ano seguinte.
Lido por muitos, enquanto crianças, uma vez que o livro foi originalmente escrito para esse público, tornou-se, indiscutivelmente, um livro também para adultos. Seu atrativo ao leitor infantil, preferencialmente feminino, é bastante óbvio. A excentricidade de Jo e seu jeito "de menino", os dramas e as crises, o estilo de prosa lúcido e despretencioso: tudo isso torna a leitura deliciosamente agradável. Mas qual é o encanto para adultos? É exatamente nesse sentido que um aspecto ainda mais interessante é ressaltado. Enquanto Little Women pode ser um livro charmosamente simples, retratando um mundo relativamente inocente, está longe de ser um livro ingênuo. Em sua essência está a mensagem de que, na vida, a experiência é a melhor professora, e que as melhores lições são aprendidas a partir da adversidade.
Ver imagem originalO livro de Alcott, conscientemente, ecoa a obra "The Pilgrim's Progress", de John Bunyan. Este é o livro que Marmee - afetuoso apelido com o qual as filhas chamam a mãe - dá a cada uma das filhas, como um guia instrutivo para ajudá-las na jornada da vida. Elas são encorajadas a consultar a história regularmente, na esperança de que o conto de Bunyan reenforce as lições de moral que a mãe tenta transmitir através de sua sabedoria prática, além de consolá-las em tempos de dificuldade. Isso as assegura que não estão sozinhas em suas lutas, reconfortando-as. Assim, a obra exerce um poderoso encanto nos leitores adultos, lembrando-os da alegria inocente da infância e dos obstáculos a superar na juventude, os quais não aparentam mais ser um problema na vida adulta. Mostra o sofrimento como uma parte necessária da experiência humana, mas confirma que essa experiência pode também ser muito positiva. Da experiência, surge a sabedoria.
De fato, Little Women possui diversos contos que exemplificam, com um humor fascinante, várias lições de moral. Marmee acredita firmemente na virtude do auto-aperfeiçoamento, uma convicção que, indubitavelmente, ecoa os valores do pai da autora, que era conhecido por suas visões não-ortodoxas de educação, de que os estudantes deveriam estar ativamente envolvidos no processo de aprendizagem. Por sua vez, cada menina se depara com diversos testes de sua força de caráter ou desafios de fraquezas pessoais. Assim, Jo aprende a importância do perdão e de controlar seu gênio quando sua irmã Amy quase se afoga em um rio congelado; e Meg aprende o valor da modéstia e de ficar feliz com o que tem quando ela se humilha na festa dos Morffats. As meninas também enfrentam desafios coletivos, os quais elas precisam negociar em grupo, como quando marmee pergunta se elas estariam dispostas a sacrificar o café-da-manhã de Natal - um raro e ansiado regalo em tempos austeros - para ajudar a pobre família Hummel. Essas vívidas lições ilustram o fato de que há outras pessoas em situações bem piores que os March.
Este triste episódio é compensado pela comédia do experimento do "descanso e brincadeira": um grande fracasso, mesmo com a determinação das garotas de aproveitar sua libertação das tarefas diárias. Mais uma vez, as meninas chegam a conclusão de que marmee sabe o que é melhor para elas. Sem a estrutura oferecida pelas responsabilidades domésticas, as meninas se vêem sem rumo. Esta é uma casa que prospera na tranquilizadora regularidade da rotina e tradição, com refeições familiares e certezas diárias, além de uma insistência puritana no valor do trabalho duro. Estrutura e previsibilidade fornecem conforto, gerando harmonia doméstica e enfatizando as alegrias do companheirismo.
Ver imagem originalEm diversas maneiras, o sucesso dos contos de Alcott pode ser atribuído à sensação de bem estar que eles transmitem, que vem de seu constante, e nada ingênuo, otimismo. É um otimismo baseado na fé cristã - Little Women enaltece valores como abnegação, amor e tolerância - e na crença de que o bem e a justiça prevalecem. Mesmo que cada personagem sofra, em pequenas e grandes instâncias, no fim, a aflição é superada. Beth sobrevive de seu surto de febre escalarte, sempre com a paciência de uma santa, e o pai, de quem elas são separadas logo no início do livro, consegue voltar da guerra. O sofrimento é parte da vida e é nossa atitude com relação a ele que define nossa experiência. Enquanto Beth parece ter nascido preparada para as provas da vida, as outras garotas tem um longo caminho a percorrer no desenvolvimento da paciência e tolerância.
Ao mesmo tempo que acalma e tranquiliza, a obra é extremamente divertida e, por vezes, hilária. Seus reservados prazeres e dramas são muitos. A narrativa é caracterizada pela leveza no toque, perfeita no humor gentil que põe graça aos defeitos das garotas. Vemos a impetuosa Joe lutando contra sua língua afiada, "pensando que manter seu temperamento em casa é uma tarefa mais difícil que enfrentar um ou dois rebeldes", e rir afetuosamente da precoce Amy que poderia "tocar doze notas, fazer crochê e ler francês sem errar a pronúncia de mais de dois terços de palavras". Certamente, a mimada Amy, a clássica caçula, é frequentemente o foco dos gracejos humorísticos da narradora: sua vaidade, amor pelas coisas bonitas e modismos passageiros fazem dela o alvo perfeito.
Porém, nem todo o humor do livro é de variedade gentil. A fantástica descrição mordaz da frívola e superficial Sra. Moffat tem um genuíno ferrão em sua cauda. A cultura dos Moffat de vaidosa superficialidade, como testemunhado pela impessionável Meg, é fortemente reprovada por desencorajar todos os valores cultivados por marmee.
O livro agrada não somente pela admirável criatividade com que as garotas se entretêm - os sóbrios e zombeteiros rituais adultos do clube Pickwick, o divertimento das esnobes crianças com o jogo de "autores" de Jo -, como também a forma como a linguagem descritiva é usada. Enquanto mantêm um infalível foco na claridade de expressão, a prosa de Alcott irradia vitalidade e bom humor. Algumas palavras cuidadosamente escolhidas falam muito sobre seus personagens e definem os aspectos positivos de qualquer situação ou circunstância. A ênfase está sempre na alegria que a vida pode oferecer: todos os ricos prazeres das coisas estão sempre disponíveis.
Outro elemento descritivo que encanta é o uso frequente das imagens retiradas da natureza. Os pássaros são uma preferência particular: Beth se refere as meninas como pássaros em seu pequeno ninho e Jo é descrita como uma ovelha sem lã em um dia de inverno quando ela vende seus cabelos para mandar dinheiro para o tratamento do pai - uma das mais belas cenas do livro -, dentre outras referências. Essas imagens, finalmente, acabam por enfatizar o ideal cristão de harmonia com o mundo de Deus.
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Enquanto muitas alegrias são divididas, cada menina aproveita a vida em seu modo particular. No fim do primeiro cápitulo, o leitor já possui um senso bem definido da personalidade de cada garota, que é seguido por diferenças também físicas e de indumentária. Em algumas ocasiões, Alcott aplica uma técnica, frequentemente com efeito cômico, onde ela dá a cada garota uma resposta diferente à mesma situação. Em uma acalorada ocasião, "Jo riu, Meg censurou, Beth implorou e Amy lamentou-se". Essa nítida descrição tanto define a atitude de cada garota diante da vida, quanto enfatiza suas diferenças coletivas.
Ainda que as garotas sejam as grandes protagonistas da narrativa, marmee  é o Sol ao redor do qual elas orbitam e que fornece a dinâmica organizacional do livro. Quando ela está longe, a casa se atrofia e as meninas sentem-se muito perdidas. Ao aparecer esporadicamente através do livro, sua influência permeia em cada página. Este é um livro definido pelo amor de mãe e o desejo materno de criar bem suas filhas e prepará-las para suas futuras vidas. Little Women  dramatiza a educação dos filhos de forma que a mãe enfrenta diferentes dilemas com cada garota, uma experiência extendida pelo fato de que ela é, efetivamente, uma "mãe sozinha", uma vez que o pai nem sempre está presente.
O trato de Alcott com os papéis da maternidade e seus desafios torna-se ainda mais impressionante pelo fato de que ela nunca foi mãe. Por outro lado, talvez seja esse mesmo o motivo pelo qual sua voz narrativa é definida por esse papel maternal, como vemos com a família March, para a qual demonstra querer sempre o melhor, mas sem a timidez de oferecer uma palavra gentil de crítica construtiva. É, assim, irrefutável, que o livro é definido pela influência matriarcal, tanto da própria marmee, quanto da prrsença maternal da narradora.Ainda assim, não é um livro só para garotas. A ausência do Sr. March cria um vazio no coração da narrativa e da vida familiar que é somente preenchido com seu retorno. Little Women é um livro para a vida e para uma variedade de leitores muito além da imaginação de sua modesta autora.


Videocuriosidades:

Em 1949, surgiu a primeira adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Mervyn Leroy e traduzida para o português como "Quatro destinos". Estrelaram June Allyson, Peter Lawford e Margaret O'Brien.
Uma nova adaptação foi realizada em 1994 com um incrível elenco: Susan Sarandon, Winona Ryder, Kirsten Dust e Christian Bale. O filme, traduzido como "Adoráveis Mulheres", é excelente, com ótimas atuações - como era de se esperar - e uma compressão bem feita da história.
Ambos os longas vão além da história de "Little Women", incluindo também sua sequência "Good Wives".


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Northanger Abbey", Jane Austen



"Northanger Abbey" é uma das primeiras e mais variadas obras de Jane Austen, que contém percepções fascinantes, tanto de sua vida como escritora, quanto como autora. A obra começou a ser escrita  por volta de 1798, quando romances góticos eram abundantes e Austen possuía 23 anos. No entanto, quando a obra foi finalmente publicada, em 1818, ela já havia falecido e muita coisa havia mudado no contexto literário. Nesse mesmo ano, o livro pós-gótico de Mary Shelley, "Frankenstein", foi também publicado. Estava claro que os dias de glória de doces heroínas e castelos medievais haviam acabado. Dessa forma, o livro habita em um lugar estranho perante os trabalhos de Austen (como os já aqui analisados "Mansfield Park", "Emma", "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade"), uma vez que ocupa a posição de primeiro ou último trabalho, dependendo do ponto de vista. Mas o aspecto que, talvez, mais diferencia esse trabalho dos outros é seu toque de jovialidade.
Pode-se dizer que Austen fez algumas revisões na sua obra original, mas é impossível saber quantas. Se seu desempenho técnico em termos de escrita e seus "insights" no mundo de uma mente inocente e imaginativa são fruto da jovem Austen, ou se foram manipulados pelas revisões de uma autora madura é, assim, um mistério.
Muitos julgam que a obra não é tão satisfatória quanto os outros escritos da autora. Ela se estabelece como uma adolescente precoce e ligeiramente desalinhada ao lado da elegante "Emma"  ou da conceituada "Mansfield Park", mas, ainda assim, é mais desenvolvida que suas histórias anteriores. No entanto, o leitor que toma a decisão de dar uma chande a "Northanger Abbey" encontrará muito não somente a se admirar, como também a se apreciar nas descobertas de sua protagonista
"Northanger Abbey" ou "A Abadia de Northanger" é a história de Catherine Morland, uma garota entusiasta, porém inocente, que pretende tornar-se uma heroína como a dos romances que tanto lhe agradam. Em busca de aventuras dignas de seus livros de ficção preferidos, ela acaba por se colocar num emaranhado de manipulações, ganâncias e deslealdades, típicas da vida real. Catherine demonstra uma grande dificuldade em discernir em quem e em o que deve confiar em um mundo onde amigos desapontam, livros distorcem, a mente se corrompe e aqueles que deveriam mantê-la no caminho certo estão mais interessados nos vestidos da moda.
Catherine cresce numa família bem estruturada que possui bens suficientes para ter uma boa qualidade de vida. É uma garota comum e demasiadamente inocente que ama romances e detesta livros de história. Um belo dia, a Sra. Allen, vizinha da família, parte de férias para a animada e jovial cidade de Bath e pede à família de Catherine para levá-la. Assim, a menina parte para um mundo bem diferente de sua vida pacata e bucólica no campo. Por sua falta de experiência com outras sociedades, ela sente dificuldade de ser natural e perceber a inaturalidade das pessoas em sua volta. Em um dos bailes rotineiros ao qual ela vai, conhece Isabella Thorpe, uma bela garota da cidade que se torna sua melhor amiga em questão de segundos. A família Thorpe é um pouco menos abastada que os Morland, mas procura, com vestimentas e relações pessoais, manter os ares de "alta sociedade". Mas essa "amizade" tão rapidamente criada não é em vão. O irmão de Catherine e o de Isabella estudam juntos e são muito amigos, de maneira que Isabella havia conhecido o irmão de Catherine e, aparentemente, se apaixonado por ele. Ela então dá sinais constantes dessa paixão à nossa heroína, que, por falta de experiência em ler nas entrelinhas, não é capaz de perceber as insinuações. Até que um dia, Isabella anuncia a Catherine que está noiva do irmão dela e esta, por sua vez, fica imensamente feliz. Em meio a isso tudo, enquanto cortejada pelo irmão de Isabella, Catherine conhece Henry Tilney e se apaixona por ele. Algumas semanas depois, é também apresentada à irmã dele, Eleanor, e com ela constrói uma amizade verdadeira. General Tilney, o pai de Eleanor e Henry, é também apresentado a Catherine  pelo irmão de Isabella, que, buscando manter seu status social, induz o general a pensar que os Morlands são extremamente ricos e poderosos. Ele, então, decide juntar a menina a seu filho, Henry, e a convida para passar uns dias com Eleanor em sua casa. Lá, Catherine recebe uma carta de seu irmão, dizendo que seu casamento com Isabella estava acabado, pois ela o havia desprezado, pensando que tinha encontrado partido melhor. Catherine fica arrasada por não ter percebido antes as más intenções de sua falsa amiga, que havia dado sinais de seus interesses financeiros, quando achou o pai de Catherine pouco generoso com a quantia que escolheu oferecer em razão do casamento. Enquanto isso, o general descobre que os Morlands não são tão ricos quanto ele pensava e praticamente expulsa Catherine de sua casa de um dia para o outro. Envergonhado pela atitude de seu pai e após ter criado certa aproximação com nossa protagonista, Henry decide ir atrás dela e pede sua mão em casamento, com a permissão de seu pai de "ser um tolo se assim ele quisesse".
A primeira parte do livro não é diferente das outras famosas obras. Testemunhamos as famílias educadas, onde cada rapaz parece em busca de uma bela companhia e cada moça procura uma parceira de confidências. Há também a típica personagem de Austin, desta vez nomeada Sra. Allen: uma bem-intencionada tola da sociedade que não tem nada a acrescentar, a não ser seus recorrentes comentários simplórios e fúteis.
Apesar da grande vontade de Catherine de se tornar uma protagonista, somos relembrados a todo momento o quão banal é nossa heroína. Ela cresce uma criança que passa de feia para não tão feia assim, e se dá por satisfeita com isso. Não possui nenhum talento nato, como desenho ou canto, e se vê em inúmeras situações embaraçosas, nas quais uma heroína de verdade jamais se colocaria.
Se deixar enganar pela falsa amabilidade de Isabella é de uma ingenuidade sem tamanho. A Isabella egocêntrica e estúpida, cujos comentários exalam ostentação e interesse próprio, é percebida pelo leitor atento desde o primeiro momento em que é apresentada. Ela é um dos personagens do romance cujos discursos nunca conseguem encobrir seu verdadeiro significado, junto a seu irmão, John e à Sra. Allen. Mas resumir os instintos de Catherine pelo seu relacionamento com Isabella é injusto. Catherine é exposta a muito mais emoções que outras heroínas de Austen, ainda que sejam emoções criadas por sua própria imaginação. Ela vive em busca de significado para sua vida e esse impulso constante acaba desnorteando-a. Assim que ela se depara com Henry, por exemplo, o vê como um possível romance e ele passa a ser seu assunto constante. A princípio, podemos achar essa constatação ridícula, mas seus instintos se provam astutos, tanto nesse caso, como na primeira impressão que ela tem do general Tilney. Henry é exatamente o que aparenta ser e Catherine não é uma má juíza de caráter. Ela não consegue aguentar John Thorpe, com sua vaidade e ambição cansativas, desde o primeiro momento. É realmente no caso de Isabella que ela se equivoca, o que se mostra um sério descuido, pois Isabella explora a inocência de Catherine em benefício próprio. A lição de Austen é, talvez, que uma mente aguçada, porém acrítica, pode ser mais perigosa que mente nenhuma.
Mas o mais marcante traço de Catherine é sua inabilidade em ler as atitudes de outras pessoas: ela não percebe o relacionamento de Isabella com o irmão mais velho de Henry, James; permite, acidentalmente, que John Thorpe se apaixone por ela; e se deixa amedrontar pelas histórias escabrosas de Henry sobre a abadia. Ela é o tipo de pessoa que quer acreditar em tudo que lhe pareça fascinante e fora do comum. No entanto, o que importa realmente não é quem você é hoje, mas o que você pode se tornar através das experiências que tem. O problema é que é impossível acreditar que a família Thorpe pode se tornar alguma coisa que não seja pior.
Mas talvez um dos aspectos mais interessantes do livro é o marketing, negativo em sua sátira, que ele faz de outro livro. O romance gótico "Os mistérios de Udolpho", escrito pot Ann Radcliff e publicado em 1974, é tão referenciado no livro que quase torna-se um personagem e, como qualquer coisa que se leve demasiado a sério aos olhos de Austen, é ridicularizado. Muitos críticos chegaram à conclusão que o romance de Austen, com sua fama, manteve Udolpho vivo, quando ele deveria ter desaparecido sem deixar traços. Uma coisa é certa: os dois livros são indivisíveis.



Com os comentários autodepreciativos do narrador, a autora encoraja o leitor a ver Northanger Abbey como um romance imperfeito com uma heroína insatisfatória. Sobretudo, é importante perceber que o objetivo da obra não é ser levada a sério, mas satirizar outros autores e membros da sociedade. Este é um livro que fala de livros, escrito por uma amante da ficção, por isso uma certa humildade por parte dela foi inevitável. O romance, porém, pode ser visto pelos mais capciosos como mais que uma bela brincadeira: é o conto juvenil que antecedeu grandes sucessos, é um dos precursores da literatura pós-moderna. Austen apresenta mais que simplesmente sua antipatia trivial por Udolpho. Ela cria uma heroína amável exatamente por sua personalidade anti-heróica. Catherine reflete o inevitável problema que todos os que são leitores desde a infância (e me incluo neste grupo), ou simplesmente todos os jovens imaginativos, tiveram que enfrentar: desapegar-se da ficção e adentrar o mundo real, sujo e genuinamente sinistro da avareza adulta. Talvez Northanger Abbey busque educar seus leitores para que eles abandonem o sensacionalismo para conseguir desfrutar do realismo de romances mais maduros. Independente de seu propósito, a obra é divertida, ainda que absurda.

Vídeo-curiosidades:

Por não ter alcançado a fama de seus sucessores e apesar das muitas peças teatrais, só há duas adaptações cinematográficas da obra: em 1986, na direção de Giles Foster e em 2007, um filme de televisão, um filme de Jon Jones.

terça-feira, 29 de julho de 2014

"As Aventuras de Sherlock Holmes", Arthur Conan Doyle

Entre julho de 1891 e junho de 1892, The Strand Magazine publicou doze contos que viriam a se tornar a coleção de histórias de detetive mais influente de todos os tempos. Reunidos em outubro de 1892, as narrativas de sir Arthur Conan Doyle passaram a compor "As Aventuras de Sherlock Holmes" (The Adventures of Sherlock Holmes). De forma geral, o romance policial clássico, ao qual a obra pertence, se estrutura com a presença de um crime, da investigação e, ao final, da revelação do malfeitor. Por fornecer todos os elementos básicos de composição deste tipo de romance, a obra foi tomada como "modelo padrão" por outros escritores, que adaptavam a seu próprio estilo os fundamentos previamente estabelecidos. De Agatha Christie a Colin Dexter, de Raymond Chandler a J. K. Rowling, podemos perceber as influências penetrantes da obra no gênero, muitas vezes oculto por estar aliado ou ser complementar a outros. 
O livro é uma coleção de variados e fascinantes mistérios, que vão do bizarro ao emocionante, sempre recheado de hipérboles. Porém, no centro de todos os cenários, há dois personagens que deliberadamente atraem o expectador. Essa característica é o divisor de águas entre a obra de Doyle e livros de mistério previamente publicados: não somente o leitor é a traído pela natureza do caso investigado, mas também pelas ações de Holmes e Watson que são, individualmente, personagens interessnates.
Watson é o observador, o indivíduo comum, mas com paciência e tenacidade notáveis. Como narrador, possui tal maneira de colocar uma frase ou cenário que, de forma singular, chama a atenção do leitor.
Sherlock Holmes é a voz da razão. Doyle cria Holmes com a intenção evidente de fornecer à literatura um detetive que não chega a seus resultados por acaso, por sorte ou mesmo por descuido do criminoso. Sua pretensão é de que Holmes demonstre claramente os métodos pelos quais ele chegou à sua conclusão. No intuito de enfatizar esse objetivo, ou seja, demonstrar a abordagem científica de seu detetive, ele apresenta seu protagonista como um indivíduo impassível e insensível, mas não no sentido de cruel. Isso é firmemente estabelecido logo no primeiro conto da coleção, "Escândalo em Boêmia".
 "Ele era, na minha opinião, a mais perfeita e observadora máquina de raciocinar que o mundo já viu; como amante, porém, teria metido os pés pelas mãos. Nunca falou das paixões mais ternas senão com certa zombaria e um sorriso de desdém. Esses sentimentos eram admiráveis para o observador - excelentes para revelar os motivos e as ações dos homens. Para o homem de raciocínio treinado, porém, admitir tais interferências em seu temperamento sensível, sutilmente equilibrado, era introduzir um fator de perturbação capaz de abalar todos os seus julgamentos. Areia num instrumento sensível, ou uma rachadura em suas potentes lupas, não causaria mais estorvo que uma emoção forte numa natureza como a sua."
No entanto, como personagem, Holmes é um misto de contradições. Apesar de zombar da ideia do amor romântico, ele não é um ser sem paixões. Em "Um caso de identidade", por exemplo, sua ira pela forma como Windinbank tratava sua enteada faz seu rosto enrubescer e ele quase dá umas boas chicotadas no homem. Essas inconsistências com a natureza de um homem racionalmente frio e imparcial elevam a fascinação do leitor.
Outro aspecto interessante desta coleção que ajuda a ilustrar algumas das qualidades únicas que o autor trouxe a suas histórias, é que, mesmo demonstrando suas brilhantes habilidades de detetive nas tramas, Holmes é despistado por uma mulher em "Escândalo em Boêmia", e falha ao tentar evitar a morte de seu cliente em "As Cinco Sementes de Laranja". Essa falibilidade humana e o elemento da imprevisibilidade do enredo ajudam essas histótias a saírem da rotina e as tornam mais excitantes. Outra característica que amplia a popularidade da obra é sua natureza incomum e, por vezes, excêntrica. Quase todos os mistérios, uma vez que nem todos eles são crimes, possuem um elemento surreal: o homem de negócios que, aparentemente, desaparece no ar ("O Homem da Boca Torta"); a mulher moribunda que, em seu último suspiro, faz uma estranha referência à faixa malhada ("A Aventura da Faixa Malhada"); a misteriosa ameaça de morte representada por algumas sementes de laranja ("As Cinco Sementes de Laranja"); e a governanta que foi obrigada a sentar em uma determinada cadeira, enquanto seu patrão lhe contava histórias engraçadas para fazê-la rir ("As faias cor-de-cobre").
No entanto, é necessário saber que muitos críticos dos contos sobre Holmes acreditam que a verdadeira genialidade vem da personalidade de Watson. É através de seus olhos que observamos os eventos e é através de suas palavras que construímos uma imagem detalhada do excêntrico e carismático Sherlock Holmes. Watson não somente faz seu amigo ficar interessante, mas também, de maneira hábil, apesar de seu comportamento antissocial e hábitos estranhos, o faz encantador.

"Enquanto isso, Holmes, que detestava toda forma de sociedade, com sua alma inteiramente boêmia, continuava lá, em nossos aposentos em Baker Street, enterrado entre seus livros antigos, e alternando, semana a semana, a cocaína com a ambição, o torpor da droga com a energia impetuosa de sua personalidade intensa. Continuava, como sempre, profundamente atraído pelo estudo do crime e dedicava suas portentosas faculdades e seus extraordinários poderes de observação a seguir pistas e desvendar mistérios abandonados como insolúveis pela polícia oficial. [...] Seus aposentos estavam iluminados, e, ao olhar para cima, cheguei a ver sua figura alta, esguia, passar duas vezes numa silhueta escura contra a cortina. Ele andava de um lado para outro da sala, rápida e ansiosamente, a cabeça caída sobre o peito, as mãos cerradas às costas. Para mim, que conhecia todos os seus hábitos e suas disposições de ânimo, aquela atitude e maneira falavam por si mesmas. Ele voltara a trabalhar. Despertara de seus sonhos induzidos pela droga e farejava algum problema novo."
Quem, ao ouvir tal descrição, não gostaria de conhecer esse curioso indivíduo? E Watson, com seu maravilhoso jeito com as palavras, nos permite fazer exatamente isso.
Se Doyle sabia exatamente o que ele estava fazendo nesses primeiros contos, se ele tinha conhecimento de como estava manipulando o formato de histórias de detetive para se adequar a seu conceito incomum e único ou se o processo surgiu naturalmente para ele, é difícil supor. Planejadamente ou por acidente, ele criou um personagem que era tão interessante quanto os mistérios que se dispunha a resolver. Na verdade, pode-se inclusive dizer que essas não eram histórias de detetive, mas sim histórias sobre um detetive. E, ainda se a trama for fraca, ainda temos a compensação de ler sobre Holmes.
Afirmar que "As Aventuras de Sherlock Holmes" é a maior coleção de pequenas histórias que realçam um detetive é uma reivindicação irrefutável. Arthur Conan Doyle é o escritor mágico que, fazendo de sua pena uma varinha de condão, evoca o meio real vitoriano como plano de fundo para paisagens e personagens fantásticos, em cujo centro está Sherlock Holmes, que ultrapassou a fama de seu criador para tornar-se um dos maiores ícones da cultura popular.

Videocuriosidades:

São muitas as adaptações, séries, peças, filmes, sem contar as histórias e personagens inspirados na obra.  O Guiness book listou Holmes como o personagem mais retratado de todos os tempos, com mais de 70 atores atuando como tal em quase 200 filmes. Além disso, o acervo virtual existente sobre Holmes e suas histórias é muito extenso e inclui até museus online. 
A primeira adaptação, realizada em cinema mudo em 1900, foi Sherlock Holmes Baffled, dirigido por Arthur Marvin.
O primeiro filme com som foi realizado em 1929, estrelando Clive Brook em "O retorno de Sherlock Holmes".
Entre 1939 e 1946, Basil Rathbourne, junto a Nigel Bruce como Watson, atuou em 14 filmes da Universal Pictures.
Em 2009, Robert Downey Jr. estrelou como Holmes no filme de Guy Ritchie.
Duas séries atuais, Sherlock de Steven Moffat e Elementary, com Jonny Lee Miller como Holmes, apresentam novamente o tão retratado Sherlock.

sábado, 3 de maio de 2014

A irmã de Ana Bolena


"The other Boleyn girl", escrito em 2001 por Philippa Gregory, retrata a história do casamento de Anne Boleyn e o rei Henrique VIII (responsável pela separação das igrejas anglicana e católica) pelos olhos de Mary Boleyn. A irmã de Anne Boleyn, para alguns, não passa de uma ilustre desconhecida de relevância ínfima para o decorrer da história de uma maneira geral. A inserção da personagem, porém, é essencial para tornar realísticos os acontecimentos, aos olhos de quem não os presenciou. Com a entrada da irmã de Anne Boleyn, os personagens saem dos livros de história e ganham vida. 

Passada no século XVI, quando nossa história se inicia, o rei Henrique é casado com Catarina de Aragão, princesa da Espanha. As famílias nobres inglesas, como a Boleyn/Howard e a Seymour vislumbram nas moças da família uma possibilidade de atrair a atenção do rei e adquirir privilégios. Neste contexto, Mary Boleyn, nossa narradora, é designada pelo tio e pais para atrair a atenção do rei e virar sua amante. Com seu temperamento obediente, dócil e abnegado, ela o faz sem questionamentos. Enquanto isso, sua irmã Anne Boleyn, de temperamento explosivo e determinado, casa-se escondido com um nobre e consuma o casamento. Ambas as famílias, dele e dela, rejeitam o matrimônio e ela é afastada, voltando à França, onde havia sido criada. Quando seu "exílio" acaba e ela retorna à Inglaterra, sua irmã está grávida do rei e ela aproveita a situação para conquistar Henrique, mas sem ceder da maneira como Mary havia feito, deixando o rei cada vez mais interessado. A rivalidade entre as irmãs é uma constante no livro. Aos poucos, Anne Boleyn convence o rei de que ela é a esposa certa para ele, tendo em vista que Catarina não tinha lhe dado nenhum filho homem, e que ele tinha a possibilidade de anular seu casamento com a rainha. Mal sabia ela que mostrar ao rei a extensão de seus poderes seria sua maior ruína. Assim, o rei se divorcia de maneira dramática de Catarina de Aragão e casa-se com Anne Boleyn, uma rainha que é rejeitada pelo povo desde o primeiro momento. 
O que Anne não esperava era que não conseguiria dar ao rei um filho homem, coisa que sua irmã, Mary, havia conseguido, ainda como amante do rei. O casamento, então, é marcado pela constante agonia de Anne e diversas tentativas quase macabras e, no mínimo, anti-éticas, de engravidar. Diante de diversos atos indevidos, incluindo a suposição do envenenamento da antiga rainha Catarina, ela acaba sendo julgada em tribunal, acusada e tem sua cabeça decepada por ordem do rei, que perde o interesse e começa a visar Jane Seymour, sua próxima esposa, que consegue encantá-lo quase que com o mesmo jogo de sedução de Catarina.
No livro, o rei Henrique é retratado como um rei inicialmente carismático, jovem, e de certa beleza peculiar, mas também altamente influenciável. Um rei com ares de bobo da corte, uma vez que as famílias parecem jogá-lo de um lado a outro, cegando-o com o encanto de suas jovens. No entanto, ensinado por Anne Boleyn que seu poder estava acima até da igreja católica, ele é apresentado quase que como um rei louco ao, pela segunda vez, conseguir desvencilhar-se de um casamento.
A rivalidade constante entre as duas irmãs é um dos aspectos mais importantes do livro. Anne possui uma personalidade determinada, explosiva e extremamente egoísta. Ela deseja ser o centro do mundo e o é, enquanto vive. Enquanto Mary  possui uma personalidade dócil, passiva, abnegada, mas nem por isso para de sentir inveja da irmã, que sente prazer em esfregar seus triunfos em sua cara. No entanto, a meiguice e altruísmo de Mary acabam por ser sua salvação. Por causa da afeição que o rei sente por sua personalidade oposta à de Anne , ela não é condenada com a mesma, ainda que tenha participado de alguns dos eventos ardilosos da rainha.
"'Diga a Anne', eu parei. Era muito a dizer em uma só mensagem. Eram longos anos de rivalidade e união forçada, sempre e eternamente, sustentando nosso amor uma pela outra, nosso sentimento de que a outra tinha de ser derrotada. Como eu poderia enviá-la uma palavra que significaria tudo isso, e ainda dizer que eu a amo, que eu era feliz por ter sido sua irmã, mesmo sabendo que ela havia se levado a esse ponto e George também? Que, mesmo que eu nunca a perdoasse pelo que ela havia feito com todos nós, eu total e completamente compreendia?"
George é o primogênito da casa dos Howard e até agora não havia sido comentado nesse texto, apesar de ter uma participação crucial principalmente no que diz respeito à condenação da irmã. Sua presença nos momentos de Anne e Mary é constante. Ele tem por elas uma grande afeição e a demonstra de maneira a beirar o incesto. Ao mesmo tempo, é apaixonado pelo nobre Francis, enquanto rejeita sua esposa Jane, que posteriormente auxilia na condenação dos Howard. Com suas tendências homossexuais e incestuosas, é um personagem um pouco enigmático. Seu relacionamento, principalmente com Anne , é tão forte que ele é acusado de ter um caso com ela. O livro não afirma nem rejeita essa suposição, embora impute vários acontecimentos que afirmam a hipótese. Mas, em todo caso, de todas as personagens, George parece ser o único que Anne realmente ama.
Finalmente, a família Howard ou Boleyn, agora referindo-se aos cabeças de todas as equações, é composta de personalidades extremamente reprováveis. Em primeiro lugar, o tio, que usa as sobrinhas enquanto lhe são úteis e as abandona completamente quando acusadas para se beneficiar. Depois os pais, ambos covardes. Embora ressentida com a situação, a mãe não faz absolutamente nada para ajudar os filhos, enquanto que o pai ri pelo fato de ter de escolher entre se prejudicar ao estender a mão para auxiliá-los ou permanecer quieto para não ser também colocado em xeque. A decisão é óbvia.
Por fim, no entanto, Anne Boleyn, como pintada pela autora, parecia mesmo merecer um fim trágico, embora a morte tenha sido exagero. Sempre egoísta, capaz de qualquer coisa em benefício próprio, por diversas vezes prejudicando a irmã, com quem criamos um vínculo especial, só para sentir o gosto do poder, Anne tem um comportamento vil e quase psicopático. Anne rouba Henrique de Mary e a provoca por isso; toma o filho da irmã sem sua permissão; trata ambos os irmãos como escravos; possivelmente envenena o bispo Fisher e seus hóspedes, bem como o cardeal Wolsey, a princesa Mary e Catarina de Aragão; ela é vingativa quando Mary anuncia seu casamento com o desconhecido Will Stafford e sua gravidez, dizendo que contará a seu filho que a mãe dele está morta; e ela amaldiçoa Jane Seymour, dizendo: "Se ela colocar a mão em minha coroa e sentar no meu trono, eu espero que seja sua morte. Espero que ela morra jovem. Espero que ela morra no parto, no exato momento de dar a ele um menino. E espero que o menino morra também.".
Os livros de Philippa Gregory são, em geral, baseados em intensa pesquisa histórica, mas apresentam também uma boa pitada de criatividade, por isso são muitas vezes condenados por historiadores de renome. Particularmente e analisando somente o aspecto literário, não condeno. Ela traz, em uma linguagem simples e interessante, diversos eventos e personagens, com a dose certa de veracidade, para que o leitor não ignore fatos relevantes da história inglesa. A autora parece ter um interesse especial na dinastia Tudor, que dominou a Inglaterra entre os séculos XV e XVI, embora apresente as histórias de uma perspectiva diferente das dos livros anteriormente escritos sobre o assunto. De qualquer forma, é importante não considerar seus livros para pesquisas de fatos verídicos, pois a discussão sobre em que ponto acaba a história e inicia a imaginação da autora é extensa e, no fim das contas, a maioria das coisas não pode ser afirmada ou rejeitada, tendo em vista que adentram detalhes da vida em corte que não estão em nenhum livro de história, mas que são interessantíssimos de se imaginar.

Videocuriosidades:

Em 2008, dirigido por Justin Chadwick, a obra ganhou vida com Natalie Portman como Anne, Scarlett Johansson como Mary e Eric Bana como o rei Henrique no filme "A Outra". Embora muito bom, se o livro diverge da realidade, o filme diverge da história em diversos aspectos. Mas a própria Philippa Gregory ajudou no roteiro do filme, então vale a pena aproveitar ambos livro e filme, considerando a liberdade artística de adaptação.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Mansfield Park", Jane Austen

Escrita entre 1811 e 1813, "Mansfield Park" foi a primeira novela nascida da maturidade de Jane Austen. O tempo deixou suas marcas: comparada a seus antecedentes, apresenta um contexto mais amplo e um propósito mais sério, buscando aprofundar-se na maneira como o mundo a sua volta funcionava e no fluxo de energia que impulsiona a atitude das pessoas. São vários os aspectos que classificam a obra como uma das mais sutis e perspicazes do século 19. Alguns críticos, inclusive, consideram-a como o primeiro romance moderno.
Fanny é filha da mais humilde das três irmãs, ou seja, daquela que conseguiu o "pior" casamento. Sua mãe, já cheia de filhos, resolve permitir que a menina more com sua tia "rica", com o apoio da terceira irmã, que, como vemos no decorrer do livro, pretende única e exclusivamente usar a menina como criada da família. Fanny cresce, então, rodeada de primos que a excluem de seus círculos por considerá-la inferior. Seu status financeiro não permite que ela se coloque em uma situação equivalente e ela acaba crescendo nos cantos da casa, obedecendo a ordens e aprendendo a abaixar a cabeça. Seu primo Edward é o único que se preocupa com ela e lhe dá atenção. Como era de se esperar, aos poucos e sem perceber, ela vai se apaixonando por ele. Isso fica bem claro quando um casal de irmãos vai viver na vizinhança de Mansfield Park. Henry e Mary Crawford são dois filhinhos de papai que moraram muito tempo na cidade grande e detestam a vida no campo. Edward se apaixona por Mary e Henry resolve roubar o coração de Fanny por brincadeira. A convivência deles dois traz um pouco de jovialidade à casa. Talvez até demais. Eles resolvem realizar uma peça dentro de Mansfield Park, o que é altamente desaprovado pelo proprietário, pai de Edward. A única que fica contra todo o ensejo é Fanny, que ganha total suporte do tio que passou a vida toda a negligenciá-la.
O conto é cheio de gracejos. Jane Austen se delicia em pegar seus próprios personagens de surpresa, colocando-os em situações embaraçantes, como fazer Mary Crawford, uma menina completamente sem papas na língua, contar a Edmund o que todas as jovens pensam sobre vigários com seus rostos sem expressão, só para descobrir, na página seguinte, que ele mesmo se tornaria um. "Mansfield Park" é uma comédia tradidional, ou seja, um clássico humor do século 19. "Deixe que outras penas se ocupem com culpa e miséria", disse uma vez a autora.
Como em muitas comédias, no entanto, no decorrer a história, descobrimos quão defeituoso é o mundo e durante um bom tempo, todas as coisas parecem caminhar para o pior. Para compreender "Mansfield Park", é necessário ver o romance como um constante debate entre os méritos da cidade e do campo - ou, colocando de outra maneira, um debate entre a constância e a mudança, a agitação e a tranquilidade. No aparentemente estável mundo de Mansfield Park, os irmãos Mary e Henry Crawford irrompem com sua sofisticação. Mary é pura ação e vivacidade e Henry é igualmente irreverente, divertido e sedutor. É de se esperar que, de uma maneira geral, os leitores se identifiquem mais ainda com eles que com Edmund e Fanny, tendo em vista que eles são mais vivos e divertidos.
A intenção da autora é justamente a de mostrar os contrastes: a cidade, com suas fofocas, modas, suas danças sociais frenéticas, é um lugar atrante, de uma maneira diferente da campestre. Quando a ideia de realizar uma peça de teatro surge dentre os jovens presentes na casa que nomeia nossa obra, Mary e Henry são os primeiros a aprovar e incentivar os outros, enquanto Fanny se opõe de todas as maneiras possíveis a ideia e Edmund a aceita de mal grado com o intuito de agradar sua amada Mary.
Apesar de seu conservadorismo, Jane Austen sabia que os sistemas sociais não são imutáveis, mas permanecem ou decaem com as pessoas encarregadas de mantê-lo. No fim do romance, a nova geração de Mansfield Park - crescida sem um senso firme sobre deveres e princípios - está praticamente em queda livre. Sendo a natureza humana o que é, o mundo de modas, novidades e caprichos não precisa forçar sua entrada nos vulneráveis Tom, Maria e Júlia. Até mesmo Edmund é tentado. Somente Fanny julga "corretamente" (de acordo com os preceitos do romance) do início ao fim. Isso é bom enquanto simboliza os valores tradicionais que Austen admirava e, possivelmente, acreditava estarem ameaçados. No entanto, o que é Fanny enquanto personagem? Podem os leitores amá-la? Conseguem eles, ao menos, simpatizar com ela?
Na verdade, se durante toda a obra não nos encantamos com a personalidade da protagonista, é no final que nossos sentimentos começam a mudar. Nós, leitores, a vemos crescer em Mansfield Park com todos os seus privilégios, que para ela, são, na realidade, frias privações. Isso é sentido, por exemplo, na passagem onde seus primos lhe oferecem, "generosamente", seus menos amados brinquedos velhos como presente e a deixam sozinha com eles. Queremos estrangular a sra. Norris, que, aparentemente, a enviou à casa para ter alguém de status inferior que ela pudesse oprimir e desprezar o tempo todo. "As pessoas nunca são respeitadas quando saem de sua própria esfera.", diz ela, "Lembre-se, onde você estiver, você deve sempre ser a mais rebaixada e a última".
É possível notar traços da gata borralheira na história de Fanny, a menina modesta e humilde que fora sempre colocada abaixo dos primos, da própria família. No lugar do príncipe encantado, porém, Fanny encontra Henry, um mauricinho mal acostumado que resolve fazê-la se apaixonar por ele por puro divertimento. Mas Fanny não é tão facilmente enganada pelo pedido de casamento que Henry faz à própria família dela. Para se livrar dessa obrigação, entretanto, ela acaba tendo que se colocar contra seus primos, entregando-os ao tio. É nesse momento, quando Fanny toma uma posição difícil para não se permitir subjugar, que vemos que a heroína é mais forte do que aparenta. A protagonista é então mandada de volta ao seio de sua família em Portsmouth, mas sente-se ainda mais fora de contexto quando percebe a falta de modos e de educação de seus irmãos e de seus próprios pais. Ela começa a olhar para Mansfield park como um lugar de elegância e harmonia, embora tenha sido tão mal tratada. E aqui surge uma reflexão. A mãe a tia de Fanny são ambas extremamente fúteis e vazias de conhecimento, mas o comportamento da mãe reflete uma ignorância e brutalidade jamais vistas na tia. Seria isso efeito da natureza ou fruto da vivência? Da mesma maneira, o fato de Fanny não se sentir confortável junto aos irmãos mal educados não é consequência de uma genética superior, mas da criação diferenciada. O bom estímulo vence a própria natureza.
Irônica diversas vezes durante a peça, em seu melhor estilo, Jane Austen induz o leitor a tirar as conclusões erradas, estimula-o, por vezes, a pensar que o casamento entre Fanny e Henry é devido ou instiga ideias fúteis e preconceituosas como conceitos verdadeiros e irrefutáveis, quando sabemos que esse não é, de verdade, o pensamento da autora.
Dentre suas muitas mensagens, Mansfield Park busca sugerir que a dificuldade ao longo da vida, ainda mais se ela é imposta na juventude, pode trazer frutos positivos e fazer do jovem uma pessoa melhor. Apresentando a hipocrisia, o orgulho e a vaidade dos privilegiados, ela nos conduz à conclusão de que a humildade imposta torna-se a humildade inerente (o que nem sempre é verdade).
Finalmente, o romance pretende mostrar que os princípios e valores da sociedade são essenciais, mas nem sempre são encontrados em quem se espera, e sim onde ninguém imaginaria estar.


Videocuriosidades:

O único filme produzido até então com o enredo do romance é uma adaptação inglesa lançada em 1999 na direção de Patrícia Rozema, estrelando Franes O'Connor.
Em 1983 e 1990, a BBC lançou séries que seguiam o contexto de Mansfield Park.
Em 2007, a Company Pictures lançou uma adaptação televisiva do mesmo.

sábado, 27 de abril de 2013

"O velho e o mar", Ernest Hemingway

Foi em Cuba, no ano de 1951 que o renomado autor americano Ernest Hemingway escreveu um conto de otimismo que emociona em sua simplicidade. "The old man and the sea" é a uma das grandes responsáveis pelo prêmio Nobel da Literatura recebido por seu escritor no ano de 1954.
"O velho e o mar" é a história da luta entre um velho e experiente pescador contra a maior captura de sua vida. Durante 84 dias, Santiago, um idoso pescador cubano, aventura-se no mar, sempre retornando de mãos vazias. Tão notável é sua falta de sorte que os pais de seu jovem e devotado aprendiz e amigo, Manolin, o obrigam a deixar Santiago a fim de pescar em um barco mais sortudo. No entanto, o garoto continua se preocupando com o ancião e, a cada dia que este volta do mar, à noite, ajuda o velho pescador a empacotar seus equipamentos em sua cabana, já em ruínas; garante sua alimentação noturna; e conversa com ele sobre as novidades do baseball americano, assunto que muito interessava Santiago, em especial no que concernia seu herói no campo, Joe DiMaggio. Apesar do constate azar, o ancião não perde a confiança de que o período improdutivo logo vai passar e, no dia seguinte, decide-se por ir pescar ainda mais longe que o normal.
No 85º dia de sua jornada de azar, Santiago realiza o que havia prometido, navegando com seu bote pelos mares mais distantes da rasa costa da ilha e se aventurando no córrego do Golfo. Ele prepara suas linhas e joga-as. Ao meio dia, um grande peixe, um espadarte, toma a isca que Santiago havia preparado e, com ela, penetra profundamente as águas do mar. O velho pescador habilmente fisga o peixe, mas não possui forças para colocá-lo para dentro do bote. Em vez disso, é o peixe quem começa a puxar o bote.
Por não conseguir amarrar a linha ao bote, temendo que, esticada, o peixe conseguisse partir a linha, o velho segura a tensão da linha com seus ombros, costas e mãos, pronto para folgá-la caso o peixe começasse a nadar mais rápido. O espadarte puxa o barco o dia inteiro, a noite inteira, outro dia inteiro e outra noite inteira. Ele nada no sentido contrário da corrente até que, cansando, em um determinado ponto ele resolve seguir a corrente. Durante todo esse tempo, Santiago suporta uma dor constante da linha de pesca. Cada vez que o peixe mergulha, salta ou esquiva-se na tentativa de escapar, a corda corta gravemente as mãos de Santiago. Muito embora ferido e cansado, o velho pescador sente uma grande empatia e admiração pelo peixe, seu companheiro em sofrimento, força e determinação.
"É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não posso deixar que ele compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se aumentasse a velocidade. Seu eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa partisse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes quanto nós, nós que os matamos, embora sejam mais nobres e valiosos."
É apenas no terceiro dia que o peixe se cansa e Santiago, privado de sono e quase delirante, consegue puxar o peixe para perto e, assim, matá-lo com o golpe de um arpão. Morto ao lado do bote, o espadarte é o maior que Santiago já havia visto. O pescador levanta o mastro e começa sua jornada de volta para casa. Nosso personagem anima-se com o valor financeiro do espadarte no mercado, mas a sua real preocupação é o fato de que as pessoas que comerão o peixe não serão merecedoras de sua grandeza. A firmeza, determinação e o coração forte demonstrado pelo peixe durante toda a luta são raras virtudes na sociedade.
"[...] por que ele teria saltado? Quase que diria que veio à tona d'água só para mostrar-me como é grande. Agora já sei, seja lá como for. Gostaria de lhe poder mostrar que espécie de homem sou eu. Mas nesse caso, ele veria a cãibra que tenho. É melhor que ele pense que sou mais do que sou e assim o serei. Gostaria de ser aquele peixe, e trocaria de bom grado minha vontade e minha inteligência para ter tudo o que ele tem"
Enquanto Santiago veleja com o peixe, o sangue do espadarte deixe um rastro na água e atrai tubarões. O primeiro a atacar é um grande anequim, o qual Santiago consegue assassinar com o arpão. Na luta, o ancião perde não somente seu arpão, como também metros de uma corda valiosa, o que o deixa vulnerável ao ataque de outros tubarões. O pescador repele os sucessivos perversos predadores o máximo que pode, esfaqueando-os com uma lança que ele cria ao acoplar uma faca a um remo e até surrando-os com o leme de seu barco. Apesar de matar muitos, cada vez mais tubarões surgem e, quando a noite chega, a luta de Santiago contra os carniceiros torna-se inútil. Eles devoram a melhor carne do espadarte, deixando somente o esqueleto, a cabeça e o rabo. Santiago, então, começa a se castigar por ter indo tão longe da costa e por ter sacrificado inutilmente seu grande e digno oponente. Ele chega em casa antes do cair da noite, cambaleia até sua cabana e dorme profundamente.
Na manhã seguinte, uma multidão de pescadores maravilhados se reúne ao redor da carcaça do peixe, a qual está ainda acoplada ao barco. Nada conhecendo sobre a luta do velho pescador, turistas em um café próximo observam os restos do espadarte gigante e o confundem com um tubarão. Manolin, extremamente preocupado com a ausência de Santiago, não contém as lágrimas de seus olhos quando encontra o velhinho salvo em sua cama. Ele busca um café para ele e os jornais do dia com a pontuação do baseball e depois assiste Santiago enquanto ele dorme. Quando o ancião acorda, ambos concordam de retornar com a parceria de pesca. O pescador volta a dormir e sonha seu frequente sonho sobre leões brincando nas praias da África.
""É bom saber que não tenho de tentar matar as estrelas. Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias", pensou o velho. "A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte."
Não apenas uma história de solidão, nem tampouco mais um conto sobre a constante luta entre o homem e a natureza. A obra vai além. Ela nos traz a sabedoria e experiência de alguém que passou por muito na vida e aprendeu a não desistir. Também nos traz lições intermediárias sobre aparências,  superioridade e humildade em palavras que de tão simples nem sequer precisam ser interpretadas.
O ancião não tem família e seu único amigo no mundo é Manolin. Mas não é porque ele está sozinho que desiste de percorrer seus objetivos. Nem a idade, nem o cansaço, a falta de força física, ou o desgasto são capazes de fazer o velho pescador desistir. Ele reconhece que seu oponente é mais forte e mais hábil que ele e tudo que ele tem a seu favor é a inteligência, a paciência, a perseverança e a sabedoria de seus anos de pesador e de homem. Ainda assim, ele persevera e acaba por vencer a batalha. Mas quem saiu vitorioso?
" 'Mas o homem não foi feito para a derrota,' disse.'Um homem pode ser destruído, mas não derrotado'"
Ao passo que uma história de determinação, o livro nos apresenta o outro lado da ambição: muitas vezes conseguimos atingir nossos objetivos, mas depois percebemos que eles, simplesmente, não valiam à pena. Antes mesmo dos tubarões destroçarem o peixe, fazendo nosso protagonista arrepender-se profundamente de seu sacrifício de ir mais além e de tirar a vida de seu digno e grandioso amigo, Santiago sente remorso por saber que as pessoas que desfrutarão de sua pesca não são dignas do espadarte. Finalmente, após grande desgasto e arrependimento, Santiago retorna ao ponto em que estava no início: talvez não mais triste, mas tampouco mais feliz. E voltamos à velha controvérsia: será que os fins realmente justificam os meios? Muitas vezes, machucamos pessoas, deixamos os entes queridos de lado, focando em um objetivo com perseverança e determinação, mas percebemos que de nada valeu todo o esforço e sacrifício quando percebemos que, não importa onde estejamos, as coisas de valor serão sempre as mesmas e estarão sempre no mesmo lugar.


Videocuriosidades:

Dirigido por John Sturges e estrelando Spenser Tracy, em 1958, apenas alguns anos após a publicação do livro, surgiu a primeira adaptação da obra.
Em 1990, outro longa foi produzido, dirigido por Jud Taylor e estrelado por Anthonny Quinn.
Em 1999, com a direção de Aleksandr Petrov, um curta de animação foi produzido baseado na obra de Hemingway.