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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Northanger Abbey", Jane Austen



"Northanger Abbey" é uma das primeiras e mais variadas obras de Jane Austen, que contém percepções fascinantes, tanto de sua vida como escritora, quanto como autora. A obra começou a ser escrita  por volta de 1798, quando romances góticos eram abundantes e Austen possuía 23 anos. No entanto, quando a obra foi finalmente publicada, em 1818, ela já havia falecido e muita coisa havia mudado no contexto literário. Nesse mesmo ano, o livro pós-gótico de Mary Shelley, "Frankenstein", foi também publicado. Estava claro que os dias de glória de doces heroínas e castelos medievais haviam acabado. Dessa forma, o livro habita em um lugar estranho perante os trabalhos de Austen (como os já aqui analisados "Mansfield Park", "Emma", "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade"), uma vez que ocupa a posição de primeiro ou último trabalho, dependendo do ponto de vista. Mas o aspecto que, talvez, mais diferencia esse trabalho dos outros é seu toque de jovialidade.
Pode-se dizer que Austen fez algumas revisões na sua obra original, mas é impossível saber quantas. Se seu desempenho técnico em termos de escrita e seus "insights" no mundo de uma mente inocente e imaginativa são fruto da jovem Austen, ou se foram manipulados pelas revisões de uma autora madura é, assim, um mistério.
Muitos julgam que a obra não é tão satisfatória quanto os outros escritos da autora. Ela se estabelece como uma adolescente precoce e ligeiramente desalinhada ao lado da elegante "Emma"  ou da conceituada "Mansfield Park", mas, ainda assim, é mais desenvolvida que suas histórias anteriores. No entanto, o leitor que toma a decisão de dar uma chande a "Northanger Abbey" encontrará muito não somente a se admirar, como também a se apreciar nas descobertas de sua protagonista
"Northanger Abbey" ou "A Abadia de Northanger" é a história de Catherine Morland, uma garota entusiasta, porém inocente, que pretende tornar-se uma heroína como a dos romances que tanto lhe agradam. Em busca de aventuras dignas de seus livros de ficção preferidos, ela acaba por se colocar num emaranhado de manipulações, ganâncias e deslealdades, típicas da vida real. Catherine demonstra uma grande dificuldade em discernir em quem e em o que deve confiar em um mundo onde amigos desapontam, livros distorcem, a mente se corrompe e aqueles que deveriam mantê-la no caminho certo estão mais interessados nos vestidos da moda.
Catherine cresce numa família bem estruturada que possui bens suficientes para ter uma boa qualidade de vida. É uma garota comum e demasiadamente inocente que ama romances e detesta livros de história. Um belo dia, a Sra. Allen, vizinha da família, parte de férias para a animada e jovial cidade de Bath e pede à família de Catherine para levá-la. Assim, a menina parte para um mundo bem diferente de sua vida pacata e bucólica no campo. Por sua falta de experiência com outras sociedades, ela sente dificuldade de ser natural e perceber a inaturalidade das pessoas em sua volta. Em um dos bailes rotineiros ao qual ela vai, conhece Isabella Thorpe, uma bela garota da cidade que se torna sua melhor amiga em questão de segundos. A família Thorpe é um pouco menos abastada que os Morland, mas procura, com vestimentas e relações pessoais, manter os ares de "alta sociedade". Mas essa "amizade" tão rapidamente criada não é em vão. O irmão de Catherine e o de Isabella estudam juntos e são muito amigos, de maneira que Isabella havia conhecido o irmão de Catherine e, aparentemente, se apaixonado por ele. Ela então dá sinais constantes dessa paixão à nossa heroína, que, por falta de experiência em ler nas entrelinhas, não é capaz de perceber as insinuações. Até que um dia, Isabella anuncia a Catherine que está noiva do irmão dela e esta, por sua vez, fica imensamente feliz. Em meio a isso tudo, enquanto cortejada pelo irmão de Isabella, Catherine conhece Henry Tilney e se apaixona por ele. Algumas semanas depois, é também apresentada à irmã dele, Eleanor, e com ela constrói uma amizade verdadeira. General Tilney, o pai de Eleanor e Henry, é também apresentado a Catherine  pelo irmão de Isabella, que, buscando manter seu status social, induz o general a pensar que os Morlands são extremamente ricos e poderosos. Ele, então, decide juntar a menina a seu filho, Henry, e a convida para passar uns dias com Eleanor em sua casa. Lá, Catherine recebe uma carta de seu irmão, dizendo que seu casamento com Isabella estava acabado, pois ela o havia desprezado, pensando que tinha encontrado partido melhor. Catherine fica arrasada por não ter percebido antes as más intenções de sua falsa amiga, que havia dado sinais de seus interesses financeiros, quando achou o pai de Catherine pouco generoso com a quantia que escolheu oferecer em razão do casamento. Enquanto isso, o general descobre que os Morlands não são tão ricos quanto ele pensava e praticamente expulsa Catherine de sua casa de um dia para o outro. Envergonhado pela atitude de seu pai e após ter criado certa aproximação com nossa protagonista, Henry decide ir atrás dela e pede sua mão em casamento, com a permissão de seu pai de "ser um tolo se assim ele quisesse".
A primeira parte do livro não é diferente das outras famosas obras. Testemunhamos as famílias educadas, onde cada rapaz parece em busca de uma bela companhia e cada moça procura uma parceira de confidências. Há também a típica personagem de Austin, desta vez nomeada Sra. Allen: uma bem-intencionada tola da sociedade que não tem nada a acrescentar, a não ser seus recorrentes comentários simplórios e fúteis.
Apesar da grande vontade de Catherine de se tornar uma protagonista, somos relembrados a todo momento o quão banal é nossa heroína. Ela cresce uma criança que passa de feia para não tão feia assim, e se dá por satisfeita com isso. Não possui nenhum talento nato, como desenho ou canto, e se vê em inúmeras situações embaraçosas, nas quais uma heroína de verdade jamais se colocaria.
Se deixar enganar pela falsa amabilidade de Isabella é de uma ingenuidade sem tamanho. A Isabella egocêntrica e estúpida, cujos comentários exalam ostentação e interesse próprio, é percebida pelo leitor atento desde o primeiro momento em que é apresentada. Ela é um dos personagens do romance cujos discursos nunca conseguem encobrir seu verdadeiro significado, junto a seu irmão, John e à Sra. Allen. Mas resumir os instintos de Catherine pelo seu relacionamento com Isabella é injusto. Catherine é exposta a muito mais emoções que outras heroínas de Austen, ainda que sejam emoções criadas por sua própria imaginação. Ela vive em busca de significado para sua vida e esse impulso constante acaba desnorteando-a. Assim que ela se depara com Henry, por exemplo, o vê como um possível romance e ele passa a ser seu assunto constante. A princípio, podemos achar essa constatação ridícula, mas seus instintos se provam astutos, tanto nesse caso, como na primeira impressão que ela tem do general Tilney. Henry é exatamente o que aparenta ser e Catherine não é uma má juíza de caráter. Ela não consegue aguentar John Thorpe, com sua vaidade e ambição cansativas, desde o primeiro momento. É realmente no caso de Isabella que ela se equivoca, o que se mostra um sério descuido, pois Isabella explora a inocência de Catherine em benefício próprio. A lição de Austen é, talvez, que uma mente aguçada, porém acrítica, pode ser mais perigosa que mente nenhuma.
Mas o mais marcante traço de Catherine é sua inabilidade em ler as atitudes de outras pessoas: ela não percebe o relacionamento de Isabella com o irmão mais velho de Henry, James; permite, acidentalmente, que John Thorpe se apaixone por ela; e se deixa amedrontar pelas histórias escabrosas de Henry sobre a abadia. Ela é o tipo de pessoa que quer acreditar em tudo que lhe pareça fascinante e fora do comum. No entanto, o que importa realmente não é quem você é hoje, mas o que você pode se tornar através das experiências que tem. O problema é que é impossível acreditar que a família Thorpe pode se tornar alguma coisa que não seja pior.
Mas talvez um dos aspectos mais interessantes do livro é o marketing, negativo em sua sátira, que ele faz de outro livro. O romance gótico "Os mistérios de Udolpho", escrito pot Ann Radcliff e publicado em 1974, é tão referenciado no livro que quase torna-se um personagem e, como qualquer coisa que se leve demasiado a sério aos olhos de Austen, é ridicularizado. Muitos críticos chegaram à conclusão que o romance de Austen, com sua fama, manteve Udolpho vivo, quando ele deveria ter desaparecido sem deixar traços. Uma coisa é certa: os dois livros são indivisíveis.



Com os comentários autodepreciativos do narrador, a autora encoraja o leitor a ver Northanger Abbey como um romance imperfeito com uma heroína insatisfatória. Sobretudo, é importante perceber que o objetivo da obra não é ser levada a sério, mas satirizar outros autores e membros da sociedade. Este é um livro que fala de livros, escrito por uma amante da ficção, por isso uma certa humildade por parte dela foi inevitável. O romance, porém, pode ser visto pelos mais capciosos como mais que uma bela brincadeira: é o conto juvenil que antecedeu grandes sucessos, é um dos precursores da literatura pós-moderna. Austen apresenta mais que simplesmente sua antipatia trivial por Udolpho. Ela cria uma heroína amável exatamente por sua personalidade anti-heróica. Catherine reflete o inevitável problema que todos os que são leitores desde a infância (e me incluo neste grupo), ou simplesmente todos os jovens imaginativos, tiveram que enfrentar: desapegar-se da ficção e adentrar o mundo real, sujo e genuinamente sinistro da avareza adulta. Talvez Northanger Abbey busque educar seus leitores para que eles abandonem o sensacionalismo para conseguir desfrutar do realismo de romances mais maduros. Independente de seu propósito, a obra é divertida, ainda que absurda.

Vídeo-curiosidades:

Por não ter alcançado a fama de seus sucessores e apesar das muitas peças teatrais, só há duas adaptações cinematográficas da obra: em 1986, na direção de Giles Foster e em 2007, um filme de televisão, um filme de Jon Jones.

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