Páginas

domingo, 2 de outubro de 2011

"Cem Anos de Solidão", Gabriel Garcia Márquez

Publicado em 1967, "Cien Años de Soledad" ("Cem anos de solidão") é o segundo e uma das mais aclamadas obras do ganhador do prêmio Nobel da literatura, Gabriel Garcia Márquez.
Com a mesma sintonia realística do seu último romance, já aqui postado, "El amor en los tiempos del cólera", e, no entanto, possuindo um caráter hiperbólico a ponto de aprofundá-lo na fantasia, o livro pode ser interpretado como uma síntese da história da humanidade.
Conta a história de uma família, de geração em geração, desde sua chegada e fundação da remota e fictícia cidade chamada Macondo até sua completa extinção, com a morte dos últimos membros da família.
O romance é muito rico em detalhes e buscar interpretá-lo iria reduzir o gigantesco leque de perspectivas, descobertas e mensagens que este transmite. Há um grande número de personagens, cujas histórias se entrelaçam, surgem e desvanecem a cada geração. Nossos muitos protagonistas (e, ao mesmo tempo, coadjuvantes) possuem os caráteres mais diversos. Uns são caricaturas dos seres humanos que nós conhecemos, outros são tão diferentes de qualquer pessoa já vista que é difícil acreditar que exista alguém assim. Mas, como é comum das famílias, percebemos um estereótipo nos seus integrantes, traços hereditários que, de uma maneira ou outra acabam por convergir em um ponto forte na personalidade da grande maioria: a solidão. É aí que encontramos a justificativa para o título de um livro que retrata a história de uma família tão grande que, em todas as gerações, possui muitos componentes (com exceção das gerações finais) convivendo juntos, inúmeras festas e grandes banquetes.
É um livro que apresenta os devaneios do homem, desde a lúcida loucura do primeiro José Arcadio Buendía até a história de Rebeca, a órfã que comia areia e cal de paredes.
As marcas de sofrimento das pessoas tornam-se físicas, palpáveis, fazem com que elas se tranquem em um mundo só delas. São muitos os exemplos dessa afirmação, mas a primeira Amaranta, que carrega eternamente uma atadura preta representativa de sua tristeza pela morte de Pietro Crespi é uma boa amostra.
Uma coisa torna-se vulgar ao leitor na narrativa, não por seu significado real, mas por sua naturalmente constante repetição no decorrer de cem anos: a morte.
A existência da família toma um caráter de parábole invertida (permita-me, matematicamente, afirmar), visto que inicia-se de um nada, aos poucos enchendo-se de glórias, atinge seu auge em determinado ponto, onde todos tomam conhecimento de sua existência, e volta a decair, entrando no esquecimento.
Um ponto muito forte que o livro aborda e muito me interessou é o fato de que certos acontecimentos que provocaram um extermínio de três mil homens na cidade são, através de artimanhas políticas, completamente apagados da memória da população e os poucos que conhecem e afirmam a ocorrência real dos fatos são tidos como loucos. Os livros de geografia e histórica desconhecem os fatos, o que acarreta na ignorância também de gerações futuras. Essa passagem é extremamente verossímil a qualquer realidade da humanidade, em qualquer tempo.
A passagem a seguir não é destacada por mim, mas por minha paixão pela literatura, comum à do personagem que a compõe.
"Em compensação, não houve poder humano capaz de persuadi-lo a não levar os três
caixotes quando regressou à sua aldeia natal, e soltou impropérios cartagineses contra os inspetores da estrada de ferro que tentavam mandá-los como carga, até que conseguiu ficar com eles no vagão de passageiros. “O mundo terá acabado de se foder”, disse então, “no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.” Isso foi a última coisa que o ouviram dizer."
Abaixo, apresento uma árvore genealógica da família (que não está com uma visualização muito boa, mas é só clicar na figura), que seria de grande ajuda para melhor localização dos fatos e dos personagens durante a leitura do livro:
Ficheiro:Buendia.gif
Dentre tantas outras artimanhas, o livro apresenta as evoluções tecnológicas de um centenário, bem como suas involuções, como já afirmei com o comparativo da parábola. A história inicia-se quando as coisas não possuíam sequer um nome e passa pela chegada do telefone.

"O público, que pagava dois centavos para partilhar das vicissitudes dos
personagens, não pôde suportar aquele logro inaudito e quebrou as poltronas. O alcaide, por insistência do Sr. Bruno Crespi, explicou num decreto que o cinema era uma máquina de ilusão que não merecia os arroubos passionais do público. Diante da desalentadora explicação, muitos acharam que tinham sido vítimas de um novo e aparatoso negócio de cigano, de modo que optaram por não voltar ao cinema,considerando que já tinham o suficiente com os seus próprios sofrimentos para chorar por infelicidades fingidas de seres imaginários. Alguma coisa de semelhante aconteceu com os gramofones de manivela que as alegres matronas da França trouxeram, em substituição aos antiquados realejos, e que tão profundamente afetaram por algum tempo os interesses da banda de música. No princípio, a curiosidade multiplicou a clientela da rua proibida, e soube-se até de senhoras respeitáveis que se disfarçaram de malandro para observar de perto a novidade do gramofone, mas o observaram tanto e de tão perto que muito rapidamente chegaram à conclusão de que não era um moinho de brinquedo, como todos pensavam e como as matronas diziam, mas um truque mecânico que não podia se comparar com uma coisa tão comovedora, tão humana e tão cheia de verdade cotidiana como uma banda de música. 
 [...] Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a capacidade de assombro e mantivesse oshabitantes de Macondo num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam oslimites da realidade"

O último personagem a desaparecer do mapa é Aureliano Babilônia. Seu sobrenome, acredito eu, como tudo nos livros do aclamadíssimo Gabriel, não é um mero acaso. Ele remete aos Jardins da Babilônia, dos quais tanto escutamos falar e, no entanto, não há evidências de sua existência.
O capítulo final do livro é, com absoluta certeza o mais interessante, talvez por ser mais explicativo. Ele é constitui a parte feliz da história de Aureliano da Babilônia, fazendo uma retrospectiva de todos os contextos marcantes da família (que não são parcos) e decifrando o enigma dos pergaminhos deixados por Melquíados (cigano que surge logo no início da obra e toma grande importante em toda sua duração por causa de seus ensinamentos).
"Naquele Macondo esquecido até pelos pássaros, onde a poeira e o calor se fizeram tão tenazes que dava trabalho respirar, enclausurados pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor numa casa onde era quase impossível dormir por causa do barulho das formigas ruivas, Aureliano e Amaranta Úrsula eram os únicos seres felizes, e os mais felizes sobre a terra.
 [...]
Entretanto, as notícias se foram fazendo pouco a pouco tão incertas, e tão esporádicas e melancólicas as cartas do sábio, que Aureliano se acostumou a pensar neles como Amaranta Úrsula pensava no marido, e ambos ficaram boiando num universo vazio, onde a única realidade cotidiana e eterna era o amor 

 [...]
Muitas vezes foram acordados pelo tráfego dos mortos. Ouviram Úrsula lutando contra as leis da criação para preservar a estirpe, e José Arcadio Buendía procurando a verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o Coronel Aureliano Buendía seembrutecendo com os enganos da guerra e os peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo 
agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam a se amar com as suas naturezas de fantasmas, muito depois de que as outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso da miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens."
A obra entrelaça revoluções e fantasma; incesto, corrupção e loucura, tratando tudo com uma naturalidade inerente somente ao realismo fantástico, ao qual pertence. 

Nas notas da tradutora, podemos encontrar: "A importância contrapontística existencial dos  insetos no  romance é facilmente verificável. Basta lembrar as borboletas amarelas de  Mauricio Babilonia, os escorpiões que rondavam o banho de Meme e de Rebeca, a  entomologia  de Gastón, as formigas ruivas decisivas neste capítulo final, as sanguessugas que quase matam Úrsula , a mordida de  escorpião  que deixa Arnaldo de Vilanova impotente etc... "

Coincidência ou não, minha edição de "Cem Anos de Solidão" é o único livro que possuo que está sendo carcomido pelas traças.
De estilo único e excêntrico, esta obra, que edifica-se entre as mais importantes da literatura latino-americana, é uma leitura mais que prazerosa, surreal.


Acredito que um filme não conseguiria contemplar com louvor as inúmeras tramas e enlaces desta obra magnífica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário