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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Persuasão", Jane Austen

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Último romance escrito por Jane Austen, "Persuasion" (em português, "Persuasão") foi finalizado em 1816 e publicado postmortem, em 1818. Posterior à "Emma", a obra tem um toque de sobriedade não encontrado em seus precessores, se contrapondo à vivacidade de "Pride and Prejudice" e a indulgência satírica de "Northanger Abbey". Enquanto títulos como "Sense and sensibility" indicam um conflito de valores discordantes, "Persuasion" é exclusivo em sua temática e, ainda assim, amplamente ambíguo. As obras citadas, associadas a "Mansfield Park", completam o conjunto de romances longos publicados pela autora, e, portanto, com esta resenha, o blog finalmente possui uma análise para cada uma das obras mais relevantes de Austen.
Anne Elliot, a segunda filha do barão Walter Elliot, é uma mulher de 28 anos tranquila e solitária. Ela carrega consigo uma seriedade melancólica. Seu único arrependimento na vida é de não haver se casado com Frederic Wentworth oito anos antes, quando ele havia proposto. Seu pai era contra a união e sua grande amiga, a sra. Russel, lhe havia persuadido de que esta era uma união desfavorável, pois Frederic não tinha relações sociais ou poder financeiro, mas apenas o futuro incerto de um oficial da Marinha em início de carreira. Após todos esses anos, no entanto, Frederic retorna rico e com o título de capitão, após adquirir grande prestígio por seu sucesso nas guerras napoleônicas. Ele guarda ainda uma grande amargura por Anne e, diante de uma mulher que foi tão facilmente manipulada, está convicto de que a ela falta caráter e firmeza de espírito. Muitas são suas pretendentes, incluindo as outras irmãs de Anne, a qual ele parece ignorar. Pelo menos, a princípio.
"Persuasion" é intrigantemente moderna na forma como nos apresenta a vida íntima de Anne. Nenhuma outra personagem parece familiarizada com seus sentimentos. Somente o leitor conhece suas verdadeiras emoções. Tímida e reservada, a modéstia de Anne chega a ser dolorosa. Ela toca piano muito bem, mas sente que, ao fazê-lo, está "satisfazendo somente a si mesma". Essa introversão da protagonista afeta a textura do romance, que, mais que qualquer outro de Austen, exige uma atenção especial aos detalhes. Da mesma forma que Anne está sempre atenta às mais leves nuances na fala de cada interlocutor, também o leitor precisa estar. Por exemplo, ao longo da obra, as palavras "persuadir", "persuasão" e "persuadível" aparecem por volta de 30 vezes, enfatizando a importância das escolhas pessoais e levantando um questionamento sobre qual é o melhor valor: a conviccção ou a flexibilidade. Afinal, se por um lado a flexibilidade é tantas vezes indispensável para promover a compreensão, incitar o diálogo e alimentar a empatia, por outro, a convicção nos ajuda a lidar com nossas próprias escolhas. Somente quando acreditamos nos caminhos que definimos para nós mesmos, conseguimos seguir sem remorso e arrependimento. A convicção nos dá clareza, ainda que tudo dê errado, por nos oferecer a certeza de trilharmos nossa própria estrada e sermos donos de nossa história. Mas, ao passo que a flexibilidade exacerbada pode nos tornar facilmente sugestionáveis, há uma linha muito tênue entre uma forte convicção e a arrogância. Determinação beira à teimosia e verdades absolutas constantemente nos conduzem a situações lamentáveis.

Ver imagem originalAo mesmo tempo, o livro apresenta interesse em problemas de maior âmbito social, como a mudança dos papéis do homem e da mulher na sociedade, refletida na alteração das expectativas, valores e conduta de cada um. Há uma contraposição direta entre dois grupos da sociedade na obra: os nobres de berço, representados por Sir Walter e os que, por mérito, conquistaram riqueza e patentes, onde se encontram Fréderic e seu irmão, o almirante Croft.
Logo no início, encontramos o Sr. Walter Elliot lendo seu livro preferido - um livro sobre aristocracia - cuja parte que mais lhe agrada é a que se trata dele mesmo. Seu notável narcisismo é o principal e único ponto que constitui seu caráter. Ele acredita que a aparência física é a melhor medida de valor de uma pessoa e esse seu superficial orgulho próprio é apoiado e compartilhado por outras personagens. Ele chega, em um momento, a afirmar que o sucesso naval nada mais é que uma forma de alavancar pessoas de berço inferior à uma distinção indevida. Por isso, quando descobre que o almirante Croft será seu inquilino, fica satisfeito não pelos méritos navais deste último, mas por achá-lo muito apresentável em termos de beleza, tão grande é sua futilidade.

No entanto, assim que o almirante chega à casa, logo se livra dos imensos espelhos do quarto do Sr. Walter, já que não não compartilha de seu pomposo egocentrismo. Além disso, é notável a diferença de relacionamento que o sr. Walter tem com sua mulher, quando comparado a de outros personagens. Ambos participam ativamente das atividades do outro: tanto a Sra. Croft conhece amplamente o ofício de seu marido, quanto o sr. Croft colabora bastante com as atividades domésticas. Eles também se dividem na hora de dirigir. Ou seja, levando em conta essas e outras características, pode-se afirmar que esse é o ideal de Austen de um casal moderno. A representação que Austen faz da Marinha carrega a ideia de uma sociedade aberta e meritocrática, na qual a autora acredita. Sua admiração por esta instituição pode ser também associada ao fato de dois de seus irmãos terem servido na guerras francesas, sendo que um deles tornou-se também almirante.

Ver imagem originalOutro ponto de contraste que podemos notar entre esses personagens é sua atitude com relação aos sentimentos. Enquanto o Sr. Walter é emocionalmente incapacitado, os Croft parecem possuir um autoconhecimento completo. Assim, "Persuasion" é também um romance sobre aprender a sentir. Apesar de iniciar-se no verão, a maior parte da história se passa no outono e no inverno e, assim, a atmosfera do livro é maculada pelo declínio. Nos é dito que Anne "foi uma bela menina, mas logo seu brilho devanesceu". Agora, aos 27 anos, ela está "velha demais" para ser ainda solteira.
A história do crescimento de Anne é também a história do desencadeamento de suas emoções. Logo no início, ela não é ninguém para o Sr. Walter e Elizabeth: sua palavra não tem peso, seu conforto sempre dá lugar ao dos outros. Ela chega a afirmar que "um forte senso de dever não é algo ruim para uma mulher" e, no entanto, seus sentimentos com relação a essa obrigação para com os outros precisam constantemente ser suplementados pela crença que ela possui em si mesma. Na verdade, ainda muito jovem, nossa protagonista havia sido forçada à prudência e somente aprendeu sobre romance quando já estava mais velha, uma sequela natural de sua infância incomum. Assim, com o passar do livro, suas emoções naturais vão sendo revitalizadas.
Ver imagem originalAo mesmo tempo, essas reais emoções precisam ser divulgadas discretamente. Por isso, o capitão Wentworth revela seus sentimentos por Anne numa carta. Este é um padrão no trabalho de Austen: as cartas permitem às personagens articular seus sentimentos de uma forma que, em público, seria inapropriada. No final, Frederic e Anne se reencontram no amor, agora de uma forma mais madura, consciente e, portanto, mais sólida. Mas, ainda assim, as incertezas sobre o futuro de Wentworth na Marinha, como a possibilidade de futuras guerras, ameaçam a felicidade de Anne. Nossa personagem parece, portanto, sempre fadada à melancolia.


Videocuriosidades:

Em sua maioria, as adaptações cinematográficas mais conhecidas - e nem tão conhecidas assim - de Persuasion estrearam na TV.
A rede BBC fez duas minisséries, uma em 1960 - com Daphne Slater e Paul Daneman - e outra em 1971 - com Anne Firbank e Bryan Marshall.
Em 1995, uma adaptação com Amanda Root e Cláran Hinds estrou na televisão.
Finalmente, outro filme televisivo estrou em 2007 com Sally Hawkins e Rupert Penry-Jones. Este último, que eu assisti, não é dos melhores e fica longe de adaptações como as de Emma  e Pride and Prejudice, mas se mantem fiel ao livro, nos ajudando a captar sua atmosfera melancólica e, talvez, por isso mesmo, não seja um filme tão atraente. 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Northanger Abbey", Jane Austen



"Northanger Abbey" é uma das primeiras e mais variadas obras de Jane Austen, que contém percepções fascinantes, tanto de sua vida como escritora, quanto como autora. A obra começou a ser escrita  por volta de 1798, quando romances góticos eram abundantes e Austen possuía 23 anos. No entanto, quando a obra foi finalmente publicada, em 1818, ela já havia falecido e muita coisa havia mudado no contexto literário. Nesse mesmo ano, o livro pós-gótico de Mary Shelley, "Frankenstein", foi também publicado. Estava claro que os dias de glória de doces heroínas e castelos medievais haviam acabado. Dessa forma, o livro habita em um lugar estranho perante os trabalhos de Austen (como os já aqui analisados "Mansfield Park", "Emma", "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade"), uma vez que ocupa a posição de primeiro ou último trabalho, dependendo do ponto de vista. Mas o aspecto que, talvez, mais diferencia esse trabalho dos outros é seu toque de jovialidade.
Pode-se dizer que Austen fez algumas revisões na sua obra original, mas é impossível saber quantas. Se seu desempenho técnico em termos de escrita e seus "insights" no mundo de uma mente inocente e imaginativa são fruto da jovem Austen, ou se foram manipulados pelas revisões de uma autora madura é, assim, um mistério.
Muitos julgam que a obra não é tão satisfatória quanto os outros escritos da autora. Ela se estabelece como uma adolescente precoce e ligeiramente desalinhada ao lado da elegante "Emma"  ou da conceituada "Mansfield Park", mas, ainda assim, é mais desenvolvida que suas histórias anteriores. No entanto, o leitor que toma a decisão de dar uma chande a "Northanger Abbey" encontrará muito não somente a se admirar, como também a se apreciar nas descobertas de sua protagonista
"Northanger Abbey" ou "A Abadia de Northanger" é a história de Catherine Morland, uma garota entusiasta, porém inocente, que pretende tornar-se uma heroína como a dos romances que tanto lhe agradam. Em busca de aventuras dignas de seus livros de ficção preferidos, ela acaba por se colocar num emaranhado de manipulações, ganâncias e deslealdades, típicas da vida real. Catherine demonstra uma grande dificuldade em discernir em quem e em o que deve confiar em um mundo onde amigos desapontam, livros distorcem, a mente se corrompe e aqueles que deveriam mantê-la no caminho certo estão mais interessados nos vestidos da moda.
Catherine cresce numa família bem estruturada que possui bens suficientes para ter uma boa qualidade de vida. É uma garota comum e demasiadamente inocente que ama romances e detesta livros de história. Um belo dia, a Sra. Allen, vizinha da família, parte de férias para a animada e jovial cidade de Bath e pede à família de Catherine para levá-la. Assim, a menina parte para um mundo bem diferente de sua vida pacata e bucólica no campo. Por sua falta de experiência com outras sociedades, ela sente dificuldade de ser natural e perceber a inaturalidade das pessoas em sua volta. Em um dos bailes rotineiros ao qual ela vai, conhece Isabella Thorpe, uma bela garota da cidade que se torna sua melhor amiga em questão de segundos. A família Thorpe é um pouco menos abastada que os Morland, mas procura, com vestimentas e relações pessoais, manter os ares de "alta sociedade". Mas essa "amizade" tão rapidamente criada não é em vão. O irmão de Catherine e o de Isabella estudam juntos e são muito amigos, de maneira que Isabella havia conhecido o irmão de Catherine e, aparentemente, se apaixonado por ele. Ela então dá sinais constantes dessa paixão à nossa heroína, que, por falta de experiência em ler nas entrelinhas, não é capaz de perceber as insinuações. Até que um dia, Isabella anuncia a Catherine que está noiva do irmão dela e esta, por sua vez, fica imensamente feliz. Em meio a isso tudo, enquanto cortejada pelo irmão de Isabella, Catherine conhece Henry Tilney e se apaixona por ele. Algumas semanas depois, é também apresentada à irmã dele, Eleanor, e com ela constrói uma amizade verdadeira. General Tilney, o pai de Eleanor e Henry, é também apresentado a Catherine  pelo irmão de Isabella, que, buscando manter seu status social, induz o general a pensar que os Morlands são extremamente ricos e poderosos. Ele, então, decide juntar a menina a seu filho, Henry, e a convida para passar uns dias com Eleanor em sua casa. Lá, Catherine recebe uma carta de seu irmão, dizendo que seu casamento com Isabella estava acabado, pois ela o havia desprezado, pensando que tinha encontrado partido melhor. Catherine fica arrasada por não ter percebido antes as más intenções de sua falsa amiga, que havia dado sinais de seus interesses financeiros, quando achou o pai de Catherine pouco generoso com a quantia que escolheu oferecer em razão do casamento. Enquanto isso, o general descobre que os Morlands não são tão ricos quanto ele pensava e praticamente expulsa Catherine de sua casa de um dia para o outro. Envergonhado pela atitude de seu pai e após ter criado certa aproximação com nossa protagonista, Henry decide ir atrás dela e pede sua mão em casamento, com a permissão de seu pai de "ser um tolo se assim ele quisesse".
A primeira parte do livro não é diferente das outras famosas obras. Testemunhamos as famílias educadas, onde cada rapaz parece em busca de uma bela companhia e cada moça procura uma parceira de confidências. Há também a típica personagem de Austin, desta vez nomeada Sra. Allen: uma bem-intencionada tola da sociedade que não tem nada a acrescentar, a não ser seus recorrentes comentários simplórios e fúteis.
Apesar da grande vontade de Catherine de se tornar uma protagonista, somos relembrados a todo momento o quão banal é nossa heroína. Ela cresce uma criança que passa de feia para não tão feia assim, e se dá por satisfeita com isso. Não possui nenhum talento nato, como desenho ou canto, e se vê em inúmeras situações embaraçosas, nas quais uma heroína de verdade jamais se colocaria.
Se deixar enganar pela falsa amabilidade de Isabella é de uma ingenuidade sem tamanho. A Isabella egocêntrica e estúpida, cujos comentários exalam ostentação e interesse próprio, é percebida pelo leitor atento desde o primeiro momento em que é apresentada. Ela é um dos personagens do romance cujos discursos nunca conseguem encobrir seu verdadeiro significado, junto a seu irmão, John e à Sra. Allen. Mas resumir os instintos de Catherine pelo seu relacionamento com Isabella é injusto. Catherine é exposta a muito mais emoções que outras heroínas de Austen, ainda que sejam emoções criadas por sua própria imaginação. Ela vive em busca de significado para sua vida e esse impulso constante acaba desnorteando-a. Assim que ela se depara com Henry, por exemplo, o vê como um possível romance e ele passa a ser seu assunto constante. A princípio, podemos achar essa constatação ridícula, mas seus instintos se provam astutos, tanto nesse caso, como na primeira impressão que ela tem do general Tilney. Henry é exatamente o que aparenta ser e Catherine não é uma má juíza de caráter. Ela não consegue aguentar John Thorpe, com sua vaidade e ambição cansativas, desde o primeiro momento. É realmente no caso de Isabella que ela se equivoca, o que se mostra um sério descuido, pois Isabella explora a inocência de Catherine em benefício próprio. A lição de Austen é, talvez, que uma mente aguçada, porém acrítica, pode ser mais perigosa que mente nenhuma.
Mas o mais marcante traço de Catherine é sua inabilidade em ler as atitudes de outras pessoas: ela não percebe o relacionamento de Isabella com o irmão mais velho de Henry, James; permite, acidentalmente, que John Thorpe se apaixone por ela; e se deixa amedrontar pelas histórias escabrosas de Henry sobre a abadia. Ela é o tipo de pessoa que quer acreditar em tudo que lhe pareça fascinante e fora do comum. No entanto, o que importa realmente não é quem você é hoje, mas o que você pode se tornar através das experiências que tem. O problema é que é impossível acreditar que a família Thorpe pode se tornar alguma coisa que não seja pior.
Mas talvez um dos aspectos mais interessantes do livro é o marketing, negativo em sua sátira, que ele faz de outro livro. O romance gótico "Os mistérios de Udolpho", escrito pot Ann Radcliff e publicado em 1974, é tão referenciado no livro que quase torna-se um personagem e, como qualquer coisa que se leve demasiado a sério aos olhos de Austen, é ridicularizado. Muitos críticos chegaram à conclusão que o romance de Austen, com sua fama, manteve Udolpho vivo, quando ele deveria ter desaparecido sem deixar traços. Uma coisa é certa: os dois livros são indivisíveis.



Com os comentários autodepreciativos do narrador, a autora encoraja o leitor a ver Northanger Abbey como um romance imperfeito com uma heroína insatisfatória. Sobretudo, é importante perceber que o objetivo da obra não é ser levada a sério, mas satirizar outros autores e membros da sociedade. Este é um livro que fala de livros, escrito por uma amante da ficção, por isso uma certa humildade por parte dela foi inevitável. O romance, porém, pode ser visto pelos mais capciosos como mais que uma bela brincadeira: é o conto juvenil que antecedeu grandes sucessos, é um dos precursores da literatura pós-moderna. Austen apresenta mais que simplesmente sua antipatia trivial por Udolpho. Ela cria uma heroína amável exatamente por sua personalidade anti-heróica. Catherine reflete o inevitável problema que todos os que são leitores desde a infância (e me incluo neste grupo), ou simplesmente todos os jovens imaginativos, tiveram que enfrentar: desapegar-se da ficção e adentrar o mundo real, sujo e genuinamente sinistro da avareza adulta. Talvez Northanger Abbey busque educar seus leitores para que eles abandonem o sensacionalismo para conseguir desfrutar do realismo de romances mais maduros. Independente de seu propósito, a obra é divertida, ainda que absurda.

Vídeo-curiosidades:

Por não ter alcançado a fama de seus sucessores e apesar das muitas peças teatrais, só há duas adaptações cinematográficas da obra: em 1986, na direção de Giles Foster e em 2007, um filme de televisão, um filme de Jon Jones.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Mansfield Park", Jane Austen

Escrita entre 1811 e 1813, "Mansfield Park" foi a primeira novela nascida da maturidade de Jane Austen. O tempo deixou suas marcas: comparada a seus antecedentes, apresenta um contexto mais amplo e um propósito mais sério, buscando aprofundar-se na maneira como o mundo a sua volta funcionava e no fluxo de energia que impulsiona a atitude das pessoas. São vários os aspectos que classificam a obra como uma das mais sutis e perspicazes do século 19. Alguns críticos, inclusive, consideram-a como o primeiro romance moderno.
Fanny é filha da mais humilde das três irmãs, ou seja, daquela que conseguiu o "pior" casamento. Sua mãe, já cheia de filhos, resolve permitir que a menina more com sua tia "rica", com o apoio da terceira irmã, que, como vemos no decorrer do livro, pretende única e exclusivamente usar a menina como criada da família. Fanny cresce, então, rodeada de primos que a excluem de seus círculos por considerá-la inferior. Seu status financeiro não permite que ela se coloque em uma situação equivalente e ela acaba crescendo nos cantos da casa, obedecendo a ordens e aprendendo a abaixar a cabeça. Seu primo Edward é o único que se preocupa com ela e lhe dá atenção. Como era de se esperar, aos poucos e sem perceber, ela vai se apaixonando por ele. Isso fica bem claro quando um casal de irmãos vai viver na vizinhança de Mansfield Park. Henry e Mary Crawford são dois filhinhos de papai que moraram muito tempo na cidade grande e detestam a vida no campo. Edward se apaixona por Mary e Henry resolve roubar o coração de Fanny por brincadeira. A convivência deles dois traz um pouco de jovialidade à casa. Talvez até demais. Eles resolvem realizar uma peça dentro de Mansfield Park, o que é altamente desaprovado pelo proprietário, pai de Edward. A única que fica contra todo o ensejo é Fanny, que ganha total suporte do tio que passou a vida toda a negligenciá-la.
O conto é cheio de gracejos. Jane Austen se delicia em pegar seus próprios personagens de surpresa, colocando-os em situações embaraçantes, como fazer Mary Crawford, uma menina completamente sem papas na língua, contar a Edmund o que todas as jovens pensam sobre vigários com seus rostos sem expressão, só para descobrir, na página seguinte, que ele mesmo se tornaria um. "Mansfield Park" é uma comédia tradidional, ou seja, um clássico humor do século 19. "Deixe que outras penas se ocupem com culpa e miséria", disse uma vez a autora.
Como em muitas comédias, no entanto, no decorrer a história, descobrimos quão defeituoso é o mundo e durante um bom tempo, todas as coisas parecem caminhar para o pior. Para compreender "Mansfield Park", é necessário ver o romance como um constante debate entre os méritos da cidade e do campo - ou, colocando de outra maneira, um debate entre a constância e a mudança, a agitação e a tranquilidade. No aparentemente estável mundo de Mansfield Park, os irmãos Mary e Henry Crawford irrompem com sua sofisticação. Mary é pura ação e vivacidade e Henry é igualmente irreverente, divertido e sedutor. É de se esperar que, de uma maneira geral, os leitores se identifiquem mais ainda com eles que com Edmund e Fanny, tendo em vista que eles são mais vivos e divertidos.
A intenção da autora é justamente a de mostrar os contrastes: a cidade, com suas fofocas, modas, suas danças sociais frenéticas, é um lugar atrante, de uma maneira diferente da campestre. Quando a ideia de realizar uma peça de teatro surge dentre os jovens presentes na casa que nomeia nossa obra, Mary e Henry são os primeiros a aprovar e incentivar os outros, enquanto Fanny se opõe de todas as maneiras possíveis a ideia e Edmund a aceita de mal grado com o intuito de agradar sua amada Mary.
Apesar de seu conservadorismo, Jane Austen sabia que os sistemas sociais não são imutáveis, mas permanecem ou decaem com as pessoas encarregadas de mantê-lo. No fim do romance, a nova geração de Mansfield Park - crescida sem um senso firme sobre deveres e princípios - está praticamente em queda livre. Sendo a natureza humana o que é, o mundo de modas, novidades e caprichos não precisa forçar sua entrada nos vulneráveis Tom, Maria e Júlia. Até mesmo Edmund é tentado. Somente Fanny julga "corretamente" (de acordo com os preceitos do romance) do início ao fim. Isso é bom enquanto simboliza os valores tradicionais que Austen admirava e, possivelmente, acreditava estarem ameaçados. No entanto, o que é Fanny enquanto personagem? Podem os leitores amá-la? Conseguem eles, ao menos, simpatizar com ela?
Na verdade, se durante toda a obra não nos encantamos com a personalidade da protagonista, é no final que nossos sentimentos começam a mudar. Nós, leitores, a vemos crescer em Mansfield Park com todos os seus privilégios, que para ela, são, na realidade, frias privações. Isso é sentido, por exemplo, na passagem onde seus primos lhe oferecem, "generosamente", seus menos amados brinquedos velhos como presente e a deixam sozinha com eles. Queremos estrangular a sra. Norris, que, aparentemente, a enviou à casa para ter alguém de status inferior que ela pudesse oprimir e desprezar o tempo todo. "As pessoas nunca são respeitadas quando saem de sua própria esfera.", diz ela, "Lembre-se, onde você estiver, você deve sempre ser a mais rebaixada e a última".
É possível notar traços da gata borralheira na história de Fanny, a menina modesta e humilde que fora sempre colocada abaixo dos primos, da própria família. No lugar do príncipe encantado, porém, Fanny encontra Henry, um mauricinho mal acostumado que resolve fazê-la se apaixonar por ele por puro divertimento. Mas Fanny não é tão facilmente enganada pelo pedido de casamento que Henry faz à própria família dela. Para se livrar dessa obrigação, entretanto, ela acaba tendo que se colocar contra seus primos, entregando-os ao tio. É nesse momento, quando Fanny toma uma posição difícil para não se permitir subjugar, que vemos que a heroína é mais forte do que aparenta. A protagonista é então mandada de volta ao seio de sua família em Portsmouth, mas sente-se ainda mais fora de contexto quando percebe a falta de modos e de educação de seus irmãos e de seus próprios pais. Ela começa a olhar para Mansfield park como um lugar de elegância e harmonia, embora tenha sido tão mal tratada. E aqui surge uma reflexão. A mãe a tia de Fanny são ambas extremamente fúteis e vazias de conhecimento, mas o comportamento da mãe reflete uma ignorância e brutalidade jamais vistas na tia. Seria isso efeito da natureza ou fruto da vivência? Da mesma maneira, o fato de Fanny não se sentir confortável junto aos irmãos mal educados não é consequência de uma genética superior, mas da criação diferenciada. O bom estímulo vence a própria natureza.
Irônica diversas vezes durante a peça, em seu melhor estilo, Jane Austen induz o leitor a tirar as conclusões erradas, estimula-o, por vezes, a pensar que o casamento entre Fanny e Henry é devido ou instiga ideias fúteis e preconceituosas como conceitos verdadeiros e irrefutáveis, quando sabemos que esse não é, de verdade, o pensamento da autora.
Dentre suas muitas mensagens, Mansfield Park busca sugerir que a dificuldade ao longo da vida, ainda mais se ela é imposta na juventude, pode trazer frutos positivos e fazer do jovem uma pessoa melhor. Apresentando a hipocrisia, o orgulho e a vaidade dos privilegiados, ela nos conduz à conclusão de que a humildade imposta torna-se a humildade inerente (o que nem sempre é verdade).
Finalmente, o romance pretende mostrar que os princípios e valores da sociedade são essenciais, mas nem sempre são encontrados em quem se espera, e sim onde ninguém imaginaria estar.


Videocuriosidades:

O único filme produzido até então com o enredo do romance é uma adaptação inglesa lançada em 1999 na direção de Patrícia Rozema, estrelando Franes O'Connor.
Em 1983 e 1990, a BBC lançou séries que seguiam o contexto de Mansfield Park.
Em 2007, a Company Pictures lançou uma adaptação televisiva do mesmo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"Emma", Jane Austen

Uma das mais famosas obras de minha amada escritora, Jane Austen, foi publicada em 1815 e é entitulada "Emma". As críticas à sociedade da época, já encontradas em obras anteriores da autora, são, neste romance, enfatizadas, em decorrência de um amadurecimento de Austen como mulher e como escritora.
Os contrastes na personalidade de nossa protagonista fizeram com que Austen, antes do lançamento do seu livro, fizesse a seguinte afirmação: "Eu vou criar uma heroína, a qual ninguém além de mim vai gostar". Os contrastes de sua personalidade surgem desde sua grande compaixão pelos mais necessitados até sua constante defesa pela divisão de classes.
Algo que pode ser facilmente observado nesta, que é a obra-prima de Austen, em contraste com seus romances anteriores, é o fato de ela ser bastante rotineira. Particularmente, não me apaixonei pelo livro até conhecer a verdadeira intenção da autora, pois, por ser essencialmente embasado em rituais do cotidiano, por vezes, beira o tédio. Mais que em qualquer outro livro, em "Emma", a autora demonstra a habilidade de delinear um retrato realístico da sociedade, expondo os desejos e as debilidades dos habitantes da pequena cidade de Highbury, na Inglaterra, os quais possuem a irritante tendência de apontar defeitos uns nos outros. Apresenta também as rivalidades, pretensões, hierarquias e acontecimentos destes personagens  de uma maneira tão convincente que dificilmente encontramos um trecho da história que não pudesse se passar na vida real do período em que foi escrito.É difícil para o leitor enxergar quando a realidade acaba e começa a ficção.
É interessante notar que as paixões que surgem no final da trama são praticamente imperceptíveis durante o decorrer dela. O leitor atento pode até tentar apostar em um outro casal e acertar, mas a escolha dos casais que nos são apresentados ao fim da trama pode ser considerada quase aleatória, o que é feito quase que propositalmente pela autora.
O livro não gira em torno do romance entre casais, pois a intenção de Austen era nos apresentar personagens, cujas vidas são vazias de paixão e preenchidas, em seu lugar, por fofocas e picuinhas. Desta maneira, não suspiramos de encanto quando lemos "Emma", como leitores de livros como "Orgulho e Preconceito" e "Razão e Sensibilidade" podiam esperar (e eu me incluo nesta lista). Para penetrar na história, portanto, temos de aprender a nos divertir com a confusão de sussurros e boatos, inerentes à fictícia cidade de Highbury.
Logo no princípio da leitura, podemos sentir tudo que vai se passar no decorrer do livro. A Srta. Woodhouse logo demonstra sua mania de opinar sobre todas as coisas, que, no decorrer do livro, torna-se algo muito familiar ao leitor. O casamento de Miss Taylor, antiga tutora de Emma Woodhouse, dá início à trama. Nossa heroína, por imaginar-se a responsável pela prosperidade da união, demonstra seu desejo por continuar em seu papel de casamenteira. O Sr. Knightley nos mostra que está sempre atento a cortar os excessos de nossa linda e inteligente, porém, por vezes, iludida (ou sonhadora) e incômoda, protagonista. Uma vez que os personagens principais, com suas devidas características, são introduzidos, eles não saem muito do seu curso de personalidade, ou seja, não são personagens cíclicos. Outros indivíduos são acrescentados à trama somente para ajudá-los a afirmar seus caráteres imutáveis. Assim, muitos personagens passam pela história sem afetá-la e sem levar o leitor a grandes emoções, e, ao final, a maior parte deles acaba feliz em um bom casamento, como é típico de nossa querida Jane.
Harriet Smith, uma moça ingênua que surge na cidade, é "adotada" por Emma, que pretende introduzi-la no que ela considera "uma boa sociedade". Através das instruções da Srta. Woodhouse, Harriet alterna-se entre paixões impróprias e mal advertidas e um vazio emocional absurdo, de maneira autômata, ou seja, sem pensar agir por si mesma. Ela é, na realidade, o tipo de amiga que Emma sempre quis ter para sentir que possui o controle de todos os acontecimentos: alguém que nunca reclama e nunca discute, sempre acreditando que o que nossa protagonista diz é a verdade absoluta. Apesar de convencer a si mesma da propriedade e sabedoria de suas ações, Emma não consegue ver que está frequentemente enganada, apesar das tentativas de Knightley de dissuadí-la disso.
Ainda, porém, que esqueçamos o foco principal da história, que são as intermináveis tentativas vãs de nossa protagonista de fazer os outros caírem em suas "armadilhas de amor", ainda podemos nos divertir com a maneira com que os habitantes de Highbury conspiram em passar o resto de suas vidas se desentendendo uns com os outros.
O primeiro caso de incompatibilidade na formulação de casais de nossa Emma surge quanto ela força Harriet a se apaixonar pelo Sr. Elton, ao passo que este ama a própria Srta. Woodhouse. O conceito de alguém ser encorajado a amar é uma coisa, mas a maneira ridícula com que Emma tenta convencer Harriet de que ela está tomando suas próprias decisões é absurda. O pior de toda essa embaralhamento emocional é que Harriet acredita que suas opiniões e ações são autônomas.
O romance possui um conhecimento profundo do caráter feminino e apresenta, com severidade, todas as falhas e debilidades que este possui. Ao mesmo tempo que nossa heroína mostra-se bela, sagaz e charmosa, vemos que ela possui um lado insensato ou, simplesmente, tolo, vaidoso, fútil e ilusório. Austen, no entanto, é capaz de nos mostrar sua criação com todos seus defeitos e, ainda assim, fazer-nos amá-la, enquanto que por outros personagens, como a Sra. Elton, que possui muitos dos defeitos da própria Emma, sentimos desprezo. A autora foi muito ousada em não fazer nenhum personagem completamente amável e, ao mesmo tempo, é por essa razão que a vida real está tão perfeitamente exposta neste livro.
Emma deve, com certeza, ser, em toda a literatura, o único exemplo de alguém que não faz nada, ainda que não intencionalmente. No entanto, nós, leitores, a perdoamos, porque, mesmo que suas fantasias acabem por machucar os sentimentos de outros, ela está tentando, com todas as suas forças, viver os delírios fictícios de sua mente. Uma pessoa que não ama o mundo das fantasias não deve ler essa obra-prima de Austen.
A autora opõe-se a fórmula pré-estabelecida dos romances de uma maneira geral, no momento em que permite o triunfo de uma heroína egoísta e mimada, sem insistir que uma lição de moral lhe seja dada. A única coisa que ela parece "aprender" é que, apesar de seu desejo inicial de permanecer solteira para sempre, por fim, ela percebe que precisa de um marido.
No decorrer da trama, nosso subconsciente tende a se perguntar "quem será a próxima paixão de harriet" ou "por quem Frank Churchill estará realmente apaixonado". Apesar destes relacionamentos possuírem um caráter quase infantil diante de romances românticos, eles demonstram a real interação entre homens e mulheres quando estes não sabem nada sobre as verdadeiras intenções do outro.
No século XIX, o matrimônio era tão importante que sua busca é pauta de preocupação e urgência. Por esse motivo, mesmo diante do grande do número de casais formados ao final do romance, muitos por força da comodidade ou interesse, apenas um deles possui perceptível amor romântico: o de Jane Fairfaix e Frank Churchill. O amor que Knithley sente por Emma possui um tom paternalista, ainda que seja bastante afetuoso. Podemos facilmente prever que seu papel de anjo guardião permanecerá imutável após o casamento.
Enquanto em outros romances, o amor é destruidor e capaz de mudar vidas, neste livro, ele é apenas uma maneira trivial de se passar os dias. Percebemos como as pessoas são tolas no que diz respeito às possibilidades do amor: facilmente enganadas, inconstantes e vaidosas, muitas vezes buscando não o amor, mas o status, o bom posicionamento diante da sociedade. A autora foi bem honesta neste sentido ao escrever a obra e é surpreendente que, apesar de todas essas verdades tão inconstantemente reveladas e até um pouco dolorosas, o livro tenha tornado-se duradouramente popular.
Ao fim, por tanto, como o título sugere, este é apenas um livro sobre Emma Woodhouse: um estudo da imperfeição, uma história sobre um doce nada. Se há um comparativo que pode encaixar-se perfeitamente no significado deste livro, ei-lo: enquanto que outros romances buscam dar-nos ideais no lugar de pessoas, este nos dá pessoas, com todos os seus trejeitos e imperfeições. Contemporâneas de Austen, como Mary Shelley (escritora de Frankestein) tentavam desafiar os homens utilizando-se de seus próprios jogos sobre ciência e religião, ao passo que nossa autora buscou ainda mais expor a essência da mulher de sua época, ou seja, como são as pessoas, de fato. Ela escreveu um livro que somente uma mulher poderia escrever, mas que todos, inclusive os homens, deveriam ler.


Video-curiosidades:

São muitas as adaptações desta obra tão magnífica em sua simplicidade rotineira.
Séries de televisão mais aintigas sobre a obra foram apresentadas em 1948 e em 1972.
Em 1995, o filme Clueless, ou, em português, As patricinhas de Beverly Hills, trouxe uma modernização da trama, ou seja, uma adaptação teen. Diferente de outras modernizações, nesta podemos facilmente perceber cada um dos personagens com suas respectivas características bem enfatizadas. Apesar de ser, a príncipio, um filme bobo de adolescentes, ele remete com ênfase à verdadeira essência do livro de Austen. Afinal, onde há mais fofocas, boatos e sussurros que no mundo da high school americana? Eu, particularmente, posso afirmar que adorei o filme na época que assisti (o que já faz um tempo). Outras séries americanas posteriores e mesmo atuais, mesmo sem a intenção, acabam, em sua futilidade, remetendo a uma das maiores escritoras de todos os tempos.
Em 1996, um filme, estrelando Gwineth Paltrow como Emma, trouxe ao cinema uma das melhores adaptações da trama, que tornou-se, por ser menor e, consequentemente menos cansativa, um pouco mais interessante que o próprio livro. Muitos díálogos são mantidos e as características dos personagens, bem como os acontecimentos mais importantes são muito bem estabelecidos no filme, sem mais delongas e excessos.
Ainda no ano de 1996, uma série de TV foi produzida, em que Kate Beckinsale fazia o papel de nossa adorada protagonista. Em 2009, foi a vez de Romola Garai introduzir-se no papel principal.
Recentemente, em 2010, uma comédia romântica indiana trouxe o tema à tona mais uma vez, com o filme Aisha, mais uma vez nos dando uma versão moderna do livro.

Estas são apenas algumas das adaptações existentes, que são muitas e variadas.


quarta-feira, 13 de abril de 2011

"Razão e sensibilidade", Jane Austen

Como primeiro livro de Austen a ser publicado, em 1811, "Sense and Sensibility" não atinge a maturidade literária, em termos de entretenimento do leitor, alcançada por outros livros de nossa querida autora, como "Pride and Prejudice". Ainda assim, é uma obra bastante interessante e divertida e reflete, bem como o anteriormente citado e postado livro de Austen, costumes e tradições do periodo.
Por aproximar-se, por vezes, do melodrama, apresentando-se como um agitado romance da vida privada, a obra pode ser subestimada. No entanto, os diversos aspectos por ela abordados com relação ao amor e à maneira de reagir aos infortúnios da vida devem ser considerados como um prazeroso estímulo na leitura da obra. Austen nos apresenta uma poderosa crítica aos valores do período.
O romance conta a história de duas irmãs, Elinor e Marianne. Marianne é a antropomorfização da sensibilidade e Elinor, da razão (razão aqui também definida como responsabilidade social, dentre outros termos). Em nosso primeiro contato com Marianne ela é descrita como sensível e esperta; enquanto que os sentimentos de Elinor são caracterizados como fortes. Isso nos mostra que cada uma tem um toque da qualidade que define a outra. Assim, é simplista ver as duas irmãs como o oposto uma da outra. O livro argumenta repetidamente que, assim como os sentimentos devem ser moderados pelo senso comum, a razão sozinha e intocada pelos sentimentos bons, não é suficiente.  Austen, com o comportamento, por vezes, hipersensível de Marianne, satiriza o culto à sensibilidade; por outro lado, também mostra que pouco sentimento pode ser tão perigoso quanto muito.
Após a morte de seu pai, as irmãs Dashwood perdem toda sua herança para um meio irmão, John Dashwood. Ele e sua mulher vão, então, viver na casa que, antes, era da sra. Dashwood. A família se vê obrigada, a partir disto, a buscar um novo lar e deixar aquele onde vivera toda uma vida até aquele momento. Durante o período em que elas passam à procura de uma nova casa, o irmão da sra. John Dashwood, Edward Ferrars, vai visitar sua irmã. Elinor, a filha mais velha da sra. Dashwood, adquire uma forte conexão com ele. No entanto, sua prudência faz com que ela evite comentários com relação aos seus sentimentos pelo rapaz.
Com a ajuda de familiares, elas conseguem se mudar para uma pequena casa no campo, onde Marianne, a filha do meio, conhese o sr. Willoughby e se apaixona perdidamente por ele, entregando seu coração com inocência e imprudência.

O grande enfoque do livro está nas divergências de personalidade de Marianne e Elinor. Ambas se apaixonam por rapazes que, em certo ponto do livro, mostram-se comprometidos com outras moças. A reação da sentimentalista Marianne é se entregar ao desespero, sem esconder dos demais seu sofrimento e sem refletir sobre o quanto sua reação pode estar abalando as pessoas que a amam. Já Elinor, que descobrira o noivado de seu amado antes que qualquer uma, pela boca da própria noiva, uma esperta e, por vezes, até cruel moça chamada Lucy Steele, reage com aceitação e guarda para si toda dor e todas as lágrimas. A passagem seguinte reflete esta diferença de visão de mundo das duas irmãs.

"- Quatro meses! Você sabe de tudo há quatro meses? Elinor confirmou.

- Quer dizer que enquanto me deu forças na minha miséria, guardava isso em seu coração? E eu que cheguei a criticá-la por ser feliz!
[...]
- Quatro meses! E você ainda o amava!
- Sim. Mas não amava apenas a ele, e como a paz dos outros é importante para mim, fiquei contente por que os poupava de saberem como me sentia. Agora, posso pensar e falar nisso com menos emoção. Fazendo-o agora, não a levo a sofrer por mim porque posso afirmar-lhe que não sofro mais materialmente. Houve várias coisas que me apoiaram. Tenho consciência de que não provoquei decepção alguma por imprudência cometida por mim e suportei a situação como pude, sem deixar que transpirasse para os outros. Desculpo Edward por ter agido errado. Desejo que ele seja muito feliz e tenho certeza de que fará o seu dever. [...]
- Se é assim que você vê as coisas... - disse Marianne - Se a perda de algo tão valioso pode ser substituída por outra coisa, sua resolução e seu autocontrole são, talvez, dignos de serem melhor considerados. Quanto a mim, acham-se além da minha compreensão.
- Eu a compreendo. Você acha que não senti muito. Durante quatro meses, Marianne, tudo isso ficou martelando em minha cabeça sem que eu tivesse a liberdade de conversar a respeito com nem sequer uma pessoa. O pior é que nem mesmo podia prepará-las para o desfecho, sabendo que iria tornar você e mamãe muito infelizes se lhes dissesse o que acontecia. Foi-me contado que um compromisso anterior destruía todas as minhas perspectivas... Aliás, foi uma maneira da própria pessoa interessada forçar-me a me retirar. Pelo que pude perceber, tudo me foi dito com uma sensação de triunfo. Tive de me opor às suspeitas dessa pessoa aparentando indiferença por algo em que estava profundamente interessada. E não foi apenas uma vez; tive de ouvir várias vezes as esperanças e as alegrias dela. Fiquei sabendo que me achava separada de Edward para sempre, sem tomar conhecimento de pelo menos um detalhe que me fizesse chegar à conclusão de que deveria cortar relações com ele. Nada demonstrava que Edward não era digno, nada indicava que ele era indiferente a mim. Eu teria de lutar contra a indelicadeza da irmã e contra a insolência da mãe dele; teria de sofrer um castigo pela afeição que dedico a ele sem, no entanto, poder aproveitar as vantagens. E tudo isso aconteceu num momento em que, como você sabe muito bem, eu não era a única a ser infeliz. Se você me considera capaz de sentir, com certeza pode imaginar o que sofri. A atitude de elegante compostura que mantenho enquanto falo nesses acontecimentos e o consolo que não procurei, porque não podia fazê-lo, são resultados de esforços contínuos e dolorosos... Essas coisas não surgiram por si mesmas, não apareceram logo no começo para me dar forças e apoio. Não, Marianne... Naquele momento, se eu não me visse obrigada a um silêncio absoluto, talvez nada teria conseguido me impedir... nem mesmo o carinho que tenho por meus melhores amigos... de mostrar a todos quanto eu estava sendo infeliz. Marianne achava-se quase persuadida.
- Oh, Elinor!  - exclamou.  - Você fez com que eu me odeie para sempre. Como fui malvada com você! Logo com você, que foi meu único consolo, que me deu forças para suportar tanta miséria, que pareceu estar sofrendo apenas por mim! E este foi o meu agradecimento! Este é o único modo que tenho para recompensá-la? Você tem o direito de chorar no meu ombro, pois foi o que tentei fazer para sempre!"

Austen preocupa-se em analisar uma sociedade obcecada por status social e financeiro. Casamentos arranjados, de acordo com dotes e não com amor; amizades feitas visando somente status.
Além disso, o comportamento diante da sociedade é vastamente discutido. Elinor sempre se coloca com educação, mesmo em situações que a deixam inconfortável. Enquanto isso, Marianne, deixando-se levar pelo coração, sequer tenta tolerar pessoas ou situações que afetam de maneira ruim seu espírito. Quando, na obra, encontramos o julgamento do comportamento de Marianne, não devemos nos deixar pensar que aquele é o julgamento da autora, mas sim da sociedade. A naturalidade de Marianne diante do modo artificial com que aqueles que estão a sua volta vivem suas vidas é um tema significativo do romance. Uma das falas de Marianne – bastante valiosa de se notar - demonstra seu pensamento com relação a outros personagens e à vida de uma maneira geral.
“Dinheiro só pode trazer felicidade onde não há mais nada que a traga.”
Ao final, o livro possui um pequeno furo na escolha do marido de Marianne. A apaixonada garota acaba por casar-se com alguém por quem sentia gratidão, mas não exatamente afeição ou amor. Já Elinor acaba o livro com seu grande amor, quase que por ironia.
Atentar para as inúmeras cartas mencionadas ou apresentadas no livro é também importante, pois, em uma sociedade onde os sentimentos são repreendidos, cartas eram valorosos veículos de pensamentos que não podiam ser livremente publicados.
Além do entretenimento, a obra nos leva a fazer importantes reflexões, como anteriormente abordado, sobre a vida, o amor, a demasiada prudência e o sentimentalismo exacerbado. Ela nos ajuda, a partir de seus personagens, a encontrar um ponto de equilíbrio entre razão e sensibilidade. É, portanto, um livro de leitura indispensável para quem quer aprender um pouco mais sobre as pessoas e analisar de maneira diferente suas próprias atitudes.


Video-curiosidades:

Em 1995, dirigido por Ang Lee, a adaptação "Sense and sensibility" se mostra de grande verossimilhança com a obra original, transmitindo a mensagem do livro em um filme de alta qualidade.  Apresenta também um grande elenco que merece citação: Kate Winslet, Emma Thompson, Hugh Grant, Alan Rickman e Hugh Laurie.

Diversas outras séries e adaptações foram apresentadas na TV. Com certeza, o filme citado é a de maior qualidade.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

"Orgulho e Preconceito", Jane Austen

Escrito por Jane Austen e publicado, pela primeira vez em 1813, "Pride and Prejudice" (Orgulho e Preconceito) é uma bela comédia de costumes, de enredo rico e pretensioso, que é um retrato fiel, divertido e inteligente da sociedade inglesa do século XIX.
Elizabeth Bennet é a mais centrada das cinco filhas de Mr. Bennet. Sua doce e meiga irmã Jane é sua grande amiga e confidente, que tem, inerente a sua personalidade, a capacidade de só ver o melhor em cada um. O livro se inicia com a chegada na cidade de Mr. Bingley, um rapaz bonito, rico e solteiro que deixa todas as moças e sua mães, incluindo a própria Mrs. Bennet, em euforia e excitação para conseguir um bom casamento para suas filhas. No desenrolar inicial do romance, temos a impressão de que nossos protagonistas são, na verdade, os apaixonados Mr. Bingley e Jane Bennet e podemos pensar, inclusive, que o vilão da história é o sarcástico e preconceituoso Mr. Darcy.
Elizabeth, bem como toda a cidade, logo no primeiro baile em que Mr. Darcy surge, tem uma péssima impressão de seu temperamento e personalidade e começa acusá-lo internamente de prepotente. Ela acredita que ele tem uma propensão a odiar todo mundo. Da mesma maneira, o preconceito de Mr. Darcy faz com que ele veja as pessoas daquele interior como interesseiras e mesquinhas, o que não é de fato uma falsa afirmação, em se tratando das irmãs mais novas e da própria mãe de Elizabeth. Muitos personagens surgem, no decorrer da história, para reafirmar uma possível falta de caráter e um péssimo temperamento em Mr. Darcy. Em determinado ponto da trama, no entanto, não apenas nós, leitores, mas a própria Elizabeth se dá conta de que todo o orgulho e o preconceito que ela vira em Mr. Darcy de repente podia ser percebido nela mesma com relação a ele. Sua inocência de garota de 20 anos, no entanto, a cega para o fato de que as pessoas não podem ser julgadas pelo que demonstram com suas aparências. Ela percebe que ele não é apenas um homem, educado, honesto e de caráter, como também é um homem bondoso e até solidário. Ele, por outro lado, começa a perceber as verdadeiras qualidades dela. O que eles não conseguem perceber é que dividem uma mesma linha lógica e racional de pensamento e tem tendência a encontrar defeitos na personalidade das outras pessoas, ou seja, eles são, na verdade, muito parecidos nesse aspecto. Aos poucos, Mr. Darcy e Elizabeth aprendem a superar o sentimento de ódio mútuo e, ao final, eles percebem que estão completamente apaixonados e resolvem enfrentar os preconceitos de ambas as famílias para ficarem juntos. O romance, portanto, ridiculariza a noção de "amor à primeira vista" e tenta nos mostrar que relacionamentos satisfatórios só podem se desenvolver gradualmente.

Não é à toa que Austen planejou, originalmente, entitular seu livro de "First Impressions" ("Primeiras Impressões"). O livro trata do impacto inicial que a imagem de um indivíduo pode provocar no outro. Há uma passagem em que Jane afirma o quanto Mr. Darcy tem dificuldade de demonstrar ter um bom temperamento, o que é diferente de realmente não ter um bom temperamento, como poderíamos complementar. O título original não foi adotado, pois uma escritora contemporânea, Mrs. Holford, publicou um romance com esse antes.
A obra explora os costumes da época e satiriza o comportamento fútil e interesseiro das pessoas, com uma aguda percepção, capaz de dar ao romance inglês um primeiro impulso à modernidade. A autora se utiliza de bailes, jogos de baralho, visitas, passeios diurnos e cartas para levar à interação de seus personagens e, dessa maneira, nos apresenta aos meios de socialização do período.
Austen nos coloca frente a um duelo entre as verdades universamente conhecidas da sociedade e os autênticos sentimentos humanos, ou seja, entre o conformismo e a capacidade de cada um de formular suas próprias opiniões. O choque de idéias se desdobra em uma ironia na primeira linha do livro: "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna necessita de uma esposa." E os costumes, bem como o excesso de interesse das famílias da época, vem logo a seguir: "Por muito pouco que se conheçam os sentimentos ou modo de pensar de tal homem ao entrar pela primeira vez numa vizinhança, esta verdade encontra-se de tal modo enraizada nos espíritos das famílias circundantes que ele é logo considerado como propriedade legítima desta ou daquela de suas filhas." A única maneira que as moças do período tinham de garantir um bom futuro era através do casamento, e não podemos culpá-las, pois o espaço das mulheres na sociedade era ínfimo e havia uma enorme quantidade de requisições para que uma moça de família fosse tida como um bom partido, como saber cozinhar, desenhar, cantar, tocar piano e, é claro, ter um belo dote. Podemos perceber, dentro da ironia da autora, discretas noções feministas imputadas nas entrelinhas da obra.
A mais amada obra de Austen é uma história memorável sobre a falta de veracidade das primeiras impressões, sobre o poder da razão e sobre a estranha dinâmica que envolve os relacionamentos humanos e as emoções. A leitura de "Pride and Prejudice" não deve ser feita da mesma maneira que se lê um romance contemporâneo insípido, mas prestando atenção na riqueza dos conceitos comportamentais e emocionais que existem até hoje, apesar de se apresentarem de uma outra maneira. Através de qualquer âmbito, no entanto, pode-se afirmar que o livro é espetacular.

Video-curiosidades:
Em 1940, surge a primeira adaptação cinematográfica do filme, estrelando Greer Garson e Laurence Olivier.
O filme "O Diário de Bridget Jones" é uma adaptação moderna, estrelando Renne Zellweger como Elizabeth e Colin Firth como Mr. Darcy.
Finalmente, em 2005, sobre a direção de Joe Wright e com a indicada ao Oscar Keyra Knightley, como Elizabeth e Matthew Macfaydyen, como Mr. Darcy, uma adaptação pela qual eu tenho um carinho especial.