No ano de 1947, a primeira versão de "O diário de Anne Frank", intitulada "O anexo: notas do diário", foi publicada em sua língua original, o holandês. No entanto, somente quando traduzido para o inglês, em 1952, o livro conquista a crítica mundial e a atenção de leitores de diversos países. Existem três versões do diário: a versão A é a original, mantida desde o momento em que Anne recebe o diário até a última carta escrita; a versão B é a edição iniciada por ela mesma, quando, ao ouvir o pedido do ministro Bolkenstein na Radio Oranje para que refugiados lhe entregassem diários e anotações pessoais, ela decide publicá-lo após a guerra; e a versão C, uma reedição feita pelo pai de Anne Frank.
A coletânea de trechos do diário foi muito bem elaborada no sentido de escolher as partes que fazem do livro uma obra literária, por vezes séria, mas por vezes adolescente. Há, inclusive, momentos de suspense, onde as famílias estão para serem descobertas, mas não o são, algo que poderia-se esperar de uma história fictícia, tornando o livro ainda mais interessante.
O livro não carrega a atmosfera pesada da Segunda Guerra Mundial. Muitos acontecimentos se dão rapidamente e de maneira prática, o que faz sentindo por não ser uma história romantizada, como "A Menina que Roubava Livros", mas verídica, permitindo, inclusive, que o leitor se veja capaz de lidar com essa situação, que, de tão aterrorizante, parece irreal, e, no entanto, é totalmente possível.
Annelies Marie Frank, ou simplesmente Anne
Frank, nasceu no dia 12 de junho de 1929 em Frankfort, na Alemanha. Seus pais,
Otto Frank e Edith Holländer, alemães de origem judia, possuíam também uma
outra filha mais velha, chamada Margot. Até o ano de 1933, a família Frank
vive em Frankfort, onde o pai, Otto, era diretor de um banco. Porém, como
consequência da crise econômica e do crescente antissemitismo, eles decidem se
mudar para Amsterdã, nos Países Baixos. Hitler acabara de chegar ao poder,
glorificando a raça ariana. Ele instaura um regime de terror, banindo os judeus
da sociedade.
Ao chegar aos países baixos, Otto cria sua
própria empresa, enquanto suas filhas aprendem holandês, língua na qual Anne
viria a escrever seu diário. No entanto, em 1940, os Países Baixos são
invadidos pela Alemanha e severas medidas contra os judeus são impostas,
proibindo Otto de exercer seu trabalho. Ele, então, pede a seus associados,
Kleiman e Kugler, que emprestem seus nomes à empresa para que ele não fique
registrado como proprietário. Assim que Margot recebe uma convocação da SS
(Schutzstaffel, uma organização paramilitar ligada ao partido nazista), a
família decide se refugiar no "anexo", que é o antigo posto de
trabalho da usina de Otto, escondido por uma porta giratória em formato de
biblioteca. Anne tem 13 anos quando começa a viver em esconderijo e é a partir
de então que ela escreve a maior parte de seu diário. Com ela, vivem mais sete
pessoas durante dois anos, supridas em alimentos, vestimentas e livros pela
secretária e amiga de Otto, Miep Gies, seu marido Jan, outra secretária, Bep
Voskuyl e os associados de Otto. Os habitantes do anexo são Otto, Edith, Anne e
Margot Frank; Augusta, Hermann e Peter Van Pels (de codinome Van Daan no
diário) e o dentista Fritz Pfeffer (de codinome Albert Dussel). Finalmente, em
1944, os habitantes do anexo são descobertos pelo serviço de espionagem da SS,
bem como Kleiman e Kugler. Não nos é dito quem os havia denunciado. Não há
suspeitas sob Bep e Miep, que consegue guardar o diário de Anne. Ela tenta, em
vão, evitar a deportação da menina. Segundo dados recolhidos pela cruz vermelha
holandesa, Anne foi deportada para o campo de Westerbork, perto da fronteira
alemã, e, em seguida, foi transferida, junto a sua família, em direção à
Auschwitz. Finalmente, é deslocada, com sua irmã, à Bergen-Belsen, onde
provavelmente morreu de tifo em março de 1945.
No diário, Anne encontra um amigo e
confidente, que ela instintivamente personifica para diminuir a solidão do
abrigo. Dessa forma, seus escritos tomam o formato de carta e não são
simplesmente monólogos, uma vez que ela dá também a palavra à Kitty, nome pelo
qual ela apelidou o diário. Diversas vezes, ela refere-se a si mesma na
terceira pessoa, como se quisesse analisar as situações de fora, diferenciando
as duas "Annes" que ela diz representar: em sociedade, uma Anne
insolente e impulsiva, que, indiferente, dá de ombros quando o assunto não lhe
agrada, mas, em seu interior, uma menina doce, sonhadora, inteligente e
preocupada. Nosso primeiro impulso, ao vê-la apresentando-se assim, é, talvez, o
de desqualificar esse aparente autoconhecimento como a ingenuidade de uma
adolescente que, mesmo revoltada e impaciente com o mundo à sua volta, se
conhece sempre superior ao que os outros imaginam. No entanto, os mais sensatos
e eloquentes adultos se vêem tantas vezes incompreendidos e mal interpretados,
pois, ao passo que somos falhos ao colocar em palavras nossos verdadeiros
pensamentos e sentimentos, são também os outros falhos em os decifrar, seja por
ignorância ou dissimulação. Além disso, a vivência faz com que, voluntária ou
involuntariamente, resguardemos nossos sentimentos por segurança, na tentativa
de mascararmos nossas fraquezas e evitarmos o julgamento alheio. Esse
comportamento pode ser equivocado, pois, para os que, como Rousseau, acreditam
que o homem é genuinamente bom e é a sociedade o transforma, há muita
bondade a ser encontrada no íntimo de cada pessoa. Sem mais divagações, assim
também, acredito que Anne era, de fato, emocionalmente superior àqueles à sua
volta, ainda que com sua falta de moderação.
Nos escritos, encontramos uma
menina em plena descoberta da vida: seus amigos, sua escola, seus primeiros
amores. Sua alegria de viver é genuína e, apesar das drásticas mudanças que ela
vivencia, dificilmente demonstra ódio ou tristeza. Ela não tece muitos
comentários sobre o momento político e econômico - também não poderia se
esperar isso de uma pré-adolescente -, mas somente explica um pouco sobre as
novas leis e restrições aos judeus e como isso afetaria a vida de sua família. Durante
muito tempo, as novas limitações não parecem lhe incomodar, mas, somente quando
sua irmã é convocada pela SS e ela compreende a necessidade de entrar na
clandestinidade, ela toma consciência da gravidade da situação. Assim, lhe é
requerido um amadurecimento mais rápido que o previsto, ao que ela corresponde
revelando seu espírito forte e sólido. Ela evita se lamentar, apesar da
angústia trazida pela clandestinidade e busca sempre um olhar positivo, algo
possível talvez pelo fato de ela não se interessar tanto pela guerra e mesmo
pelo destino dos judeus. Por mais cruel que essa suposição possa parecer com a
própria Anne – a de um desinteresse pelo próprio fado - há de se considerar
primeiro a pouca idade de nossa escritora e, depois, o fato de que muitas vezes
a ignorância, e não o conhecimento, leva à felicidade, ainda que esta não seja
autêntica. Anne tem muitas resoluções e discernimentos de um adulto e, por isso, considera Peter, apenas um pouco mais velho que ela, um fraco por suas dúvidas e carências. A realidade é dura para uma adolescente que tem que conviver com a perseguição, mas Anne encontra meios de sobreviver a isso, seja fantasiando ou escrevendo. A segurança emocional da menina fica ainda mais evidente quando
comparada às reações dos outros, como, por exemplo, o fato da sra. Van Daan, em
desespero, falar em bala na cabeça, prisão, enforcamento e suicídio. Além
disso, tanto Margot quanto Peter dizem constantemente à Anne: "Ah se eu
tivesse sua força e coragem, se eu perseguisse meus objetivos com tanta vontade
quanto você, se eu tivesse tanta energia e perseverança...". A história de Anne é, portanto, também uma história de esperança e felicidade,
pois, apesar de tantos fatores externos, políticos e sociais, se contraporem à
alegria e paz da menina, ela não se deixa atingir e permanece firme em seus ideais, sem sinais de depressão e desistência. Talvez, inclusive, gere mais comoção e reflexão nas pessoas que diversos livros de auto-ajuda por seu caráter verossímil e exemplificativo.
Apesar de todos os esforços para sempre ver as coisas pelo lado
bom, ela nos relata alguns fatos inquietantes sobre essa vida em
clandestinidade. Por exemplo, sempre que um apito estridente é ouvido, todos
ficam apavorados. Há ainda toda uma organização a ser levada em conta e uma grande
engenhosidade da família Frank e seus protetores ao inventar histórias para
evitar que os alemães os procurem. Para que tudo corra bem no anexo, é
necessário seguir um rigoroso regulamento que inclui silêncio e discrição. Os
habitantes no anexo também não podem sair, o que acaba levando a uma grande
dificuldade de convivência. Anne tem vários problemas de relacionamento,
principalmente com a mãe, mas também com diversos outros moradores. A única
pessoa que ela realmente ela ama e admira é seu pai. Assim, contrariando a
hipótese mais direta de que o fato de estar escondida, vivendo em uma guerra e
procurada pelos alemães fortaleceria os laços familiares de Anne, a convivência diária e exaustiva, sem a liberdade de ir e vir, faz com que as
angústias se amontoem, aumentando as tensões. É quando ela acha em Peter uma distração através do romance, mais uma ferramenta que a cabeça dela usa, inconscientemente, para não adoecer ou esmorecer. Mas isso é uma percepção que apenas o leitor, vendo tudo de fora, pode ter. Para Anne esse amor é bem real. E, nesse ponto, o livro tangencia, por vezes, um romance pré-adolescente, ate mesmo no sentido do amor fantasioso, ou seja, imaginar no amado um ser encantador e, geralmente, bem superior ao que ele de fato é. A isso se deve também a decepção de Anne ao perceber as fraquezas de caráter de Peter.
Com a guerra e, principalmente, com suas
leituras no anexo, Anne levanta diversos questionamentos sobre a vida e as
pessoas. "Você saberia me dizer por
que as pessoas escondem, com tanto cuidado, suas personalidades?", "por que confiam tão pouco uns nos
outros". Sua evolução intelectual é perceptível até pela própria Anne.
"Estou muito contente de ter
aprofundado meus conhecimentos na espécie humana". De fato, ela sente
que amadureceu. Essa maturidade a leva a constantes alterações de humor e de opinião,
chegando a parecer contraditória. Por exemplo, após duras críticas à sua irmã
Margot, um belo dia ela muda completamente sua visão, apontando Margot como
"tão gentil, muito mudada, tornando-se uma verdadeira amiga". E, no
entanto, não temos como saber se quem mudou foi Margot ou os olhos de Anne. O ser
humano que não é capaz de ceder e mudar de visão, é incapaz de evoluir.
A última carta de Anne, que finaliza o
diário, se termina com seu desejo de que a família conseguisse enxergar o lado
dela que, aparentemente, não é notado. Anne é uma jovem adolescente em busca de
autoconhecimento que não compreende por que a guerra existe e por que as pessoas
se machucam com tanta frequência, tanto em termos bélicos, quanto em termos
pessoais. Tudo o que ela gostaria era de aproveitar a natureza, conquistar seus
sonhos e mostrar o papel da mulher moderna - sendo assim diferente da sua mãe.
O sonho de Anne é ser jornalista e, no futuro,
uma célebre escrivã. Ela tinha a pretensão de publicar um livro ao final da
guerra, baseando-se no diário. Mas, apesar de sua triste história, não realizou
Anne seus maiores desejos? Afinal, "O diário de Anne Frank" é um dos
mais famosos e divulgados relatos verídicos sobre a segunda guerra mundial em
formato de livro autobiográfico.
O anexo da casa onde Anne Frank ficou escondida com sua família, em Amsterdã, na Holanda, pode ser visitado até os dias de hoje. Tive a oportunidade de conhecê-la em maio de 2018*.
Para mais informações sobre a história de Anne, clique aqui.
Para mais informações sobre a história de Anne, clique aqui.
Videocuriosidades:
Em 1959, após grande repercussão da versão em inglês, uma adaptação cinematográfica do filme foi dirigida por George Stevens. O filme ganhou três Oscars em 1960.
Desde então, diversas outras adaptações de diversas nacionalidades, inclusive televisivas, foram criadas, incluindo a francesa de 1999, dirigida por Julian Wolff, um documentário americano de 1995, dirigido por Jon Blair ("Anne Frank Remembered") e, mais recentemente, um filme alemão, lançado em janeiro de 2016, dirigido por Hans Steinbichler.
*Post atualizado.
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