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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"Frankenstein", Mary Shelley


Na realidade, a intenção deste post, diferente dos demais, não é, a princípio, a de sugerir ou recomendar uma leitura. Acima de tudo, viso desmistificar a concepção criada sobre uma obra da qual a maioria de nós, direta ou indiretamente, ouviu falar.
Poucos trabalhos da literatura são tão destorcidos pela sua popularidade, a ponto de se tornarem irreconhecíveis, por causa dos mitos criados ao redor deles. A obra da escritora britânica Mary Shelley, "Frankenstein", de 1818, porém, está na lista dos desventurados: um livro cuja essência foi esmagada pela excessiva exploração de seus intérpretes. O título do livro passou a ser, então, sinônimo do 'monstro' que foi construído a partir de corpos de defuntos. Só posteriormente o nome é corretamente associado ao criador deste "ser" grotesco, Victor Frankenstein. Este equívoco, no entanto, pode parecer plausível, tendo em vista que a criatura é anônima durante todo o romance. O que é ainda mais alarmante que esta confusão lógica, porém infundada, é o fato de que a maior parte das sutilezas deste conto foram perdidas em anos de adaptações nos palcos e nas telas.
No entanto, a própria autora, Mary Shelley, pode ser considerada parcialmente responsável pelo início desse processo, pois ela alterou significantemente sua obra inicial para uma edição de 1831, extraindo os elementos mais controversos, que concerniam ciência e sociedade, e tornando Victor Frankenstein um personagem mais simpático ao público.

 Assim, esta edição forneceu à obra um aspecto sobrenatural, retirando todas as poderosas representações dos perigos provenientes do conhecimento e da ambição, as flutuações de humor inspiradas pela solidão e pela perda, e a infindável e problemática relação entre o homem e Deus. Nesta reformulação, perdeu-se também a critica à moral e aos valores da sociedade, bem como às imposições e aflições da relação entre pais e filhos. Só o que restou foi a noção de uma ciência pervertida por um louco e a imagem de uma ser abominante, gigantesco e violento, com parafusos cravados em sua cabeça.

É impossível, após ler "Frankestein", não lamentar a quantidade de riqueza literária perdida  quando uma boa escrita é retirada da página. Na narrativa, a "criatura" explica o desespero e sofrimento de sua isolação do mundo tão eloquentemente que, ainda que involuntariamente, simpatizamos com ele. Quando sua voz é retirada pelos diretores dos filmes e peças, a criatura torna-se mais aterrorizante e a história, mais tolerável. No entanto, desconhecemos as experiências que levaram aquele ser a fazer coisas tão rancorosas e abomináveis. Essencialmente, eles nos fazem ignorar os motivos de sua maldade e, simplemente, sentir repulsão.
No romance, é o anonimato que fornece o efeito de alienação. Como Frankenstein não dá um nome para sua criatura, faz com que ele mesmo, o pai efetivo, não possa ver além do exterior demoníaco de monstro.
Ainda que, em alguns aspectos, "Frankenstein" fuja do modelo de horror exacerbado e dos cenários medievais das narrações góticas, ao contrário do que os filmes inspiram, a obra atinge os leitores por buscar o realismo, mesmo lidando com eventos absurdos.
Buscando fugir do extraordinário, a autora não tenta duelar com os detalhes dos experimentos de Frankenstein, mesmo porque, isso não poderia ser descrito com o menor grau de verossimilhança. Em vez disso, ela nos mostra a inspiração do estudioso: as minúcias de sua educação, embasada nos físicos renascentistas. Vemos as influências de Darwin e Galvani. Podemos inferir, então, uma analogia: a caixa de Pandora das novas tecnologias, ou seja, até onde um cientista pode se deixar levar com os conhecimentos que tem em mãos.
Após o abandono do criador e as ações execráveis da criatura, ambos são levados ao exílio até que, finalmente, são conduzidos um ao outro, como uma condenação fatal. Ironicamente, o único ser capaz de compreender a situação de um deles, é o outro. A genialidade de Frankenstein o leva à solidão. O sofrimento, a traição e as falhas do homem são inevitáveis.
É difícil determinar com quem simpatizamos mais no livro. Temos três narradores de importância, porém nenhum deles é amável ou confiável. De fato, não é que não acreditamos nos fatos que Walton - o viajante que encontra Frankenstein e escuta sua história - e o próprio Frankenstein nos relatam, não acreditamos nos seus sentimentos. Suas interpretações sobre os acontecimentos são carentes de autoconhecimento. Cada um enxerga somente seu próprio sucesso e ignora o contexto sangrento de cada uma de suas ações: no caso de Frankenstein, a morte das vítimas da criatura; no caso de Walton, a morte de sua tripulação em sua busca por glória. Frankenstein consegue ir tão longe que chega a dizer que não possui culpa alguma. Tudo o que lemos é filtrado pelas forças da ambição e da ilusão. Encontramos, até mesmo na maneira com que foi escrita a história, mentes que buscam equiparar-se a Deus.

Mas é somente com o assassinato dos inocentes William,  Clerval e Elizabeth, que provoca o falecimento de Justine e do pai de Frankenstein, que a criatura torna-se verdadeiramente detestável e monstruosa. Isso tudo  produz um livro friamente emocional, onde as pessoas amam à distância e odeiam de perto.
O atordoamento do leitor é reforçado pelas arbitrárias flutuações de humor. Frankenstein vai da "beleza do sonho" do sucesso científico para o desgosto com a sua criação, da alegria ao horror que o retorno do "demônio" lhe provoca, ele passa da felicidade aos sentimentos de vingança e luto. Da mesma maneira, o "monstro" começa com atos de bondade e gentileza com a família a qual ele "adota" como sua e que o despreza, levando-o aos crimes cometidos contra o seu criador.
Shelley não nos permite ignorar o fato de que a consequência de toda criação é  perda. A criatura descreve sua situação fazendo referência a dois seres imperfeitos: 
"Deveria ser seu Adão, mas sou apenas um anjo caído, expulso do paraíso. Em toda parte vejo felicidade, mas parece que somente eu não tenho direito a ela!"
 A mídia visual eliminou a eloquente fala da criatura e o fez uma caricatura do medo humano da morte. No livro, porém, ele possui os mesmos sentimentos e qualidades dos homens, e consegue manter sua dignidade até o ponto em que é completamente abandonado, como ele mesmo explica:
"Eu era benevolente e bondoso; a miséria fez de mim um demônio. Faça-me feliz, e eu serei virtuoso."
 Na verdade, ele fala por todos aqueles que estão à margem da sociedade, os necessitados, os miseráveis, os abandonados.
Os dois séculos de tentativas de torná-lo um ser absurdo, porém vulgar, demonstra um desejo de silenciar os fisicamente repugnantes e a esperança de que eles desapareçam. A diferença existente entre o mito de Frankenstein e o romance que o originou baseia-se na falta de confiança da autora na capacidade de compreensão e análise dos leitores.
"Frankenstein" pode e deve ser analisado diversas vezes de várias maneiras diferentes. A sua lição sobre a futilidade tamanha que é a vingança olho-por-olho é atemporal. Esse é, na verdade, um dos melhores mitos não-religiosos existentes e, no entanto, é extremamente rico em aprendizados éticos. Somos lembrados de que todos sofremos de alguma maneira, justa ou injustamente, mas, para sofrer com dignidade, devemos fazê-lo sem criar ainda mais sofrimento para os outros e para nós mesmos.

Sugestão:

Um outro livro que deixa bem mais clara essa ideia de que o desprezo e o preconceito, ou seja, a falta de amor, podem transformar um ser, ou um homem, de atitudes boas e gentis em uma criatura grosseira e violenta, é "O Corcunda de Notre Dame". Esse último é rico em tantos outros aspectos, que, ainda que a leitura de "Frankenstein" não apeteça, recomendo-o, para aprofundamento no tópico das "consequências do desamor", um de meus prediletos, que já foi postado no blog.

Videocuriosidades:

Um dos filmes que mais marcaram minha infância, graças à sua triste beleza, foi inspirado na verdadeira história de Mary Shelley, apesar de não fazer nenhuma menção à mesma: "Edward mãos de tesoura", dirigido em 1990 por Tim Burton, estrelando Johnny Depp, retoma a ideia de um ser bondoso e ingênuo que, por causa da incompreensão e do preconceito, é levado à reclusão e a comportamentos anti-sociais, que acabam por reforçar a impressão inicial que sua aparência causa.

Tendo em vista que filmes de terror não me agradam, não posso dar nenhuma opinião com relação aos listados abaixo, a não ser o fato de que não seguem o perfil do romance:

Produzido por Thomas Edison e estrelado por Charles Ogle, o primeiro filme "Frankenstein" estreou em 1910.
Em 1931, surge uma nova adaptação dirigida por James Whale, estrelando Boris Karloff.
Em 1943, surgiu o filme "Frankestein encontra o lobisomem", com Béla Gulosi como o monstro.
Em 1969, surge "Frankenstein tem que ser destruído", do diretor Terence Fisher.
Em 1980, mais uma adaptação do filme aparece, dessa vez dirigida por Peter Cushing. Também nesse ano, o filme "Gothic", de Ken Russel, apresenta a figura do monstro.
Em 1994, uma adaptação cinematográfica de Kenneth Branagh, chamada "Mary's Shelley Frankenstein", apresentava Robert de Niro como Frankenstein e Helena Bonham  Carter como Elizabeth. Ainda que o título sugira uma grande verossimilhança com a história do livro, o filme toma uma série de liberdades com relação à história original, no entanto, é ainda a adaptação que segue a história original com mais fidelidade.