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terça-feira, 29 de julho de 2014

"As Aventuras de Sherlock Holmes", Arthur Conan Doyle

Entre julho de 1891 e junho de 1892, The Strand Magazine publicou doze contos que viriam a se tornar a coleção de histórias de detetive mais influente de todos os tempos. Reunidos em outubro de 1892, as narrativas de sir Arthur Conan Doyle passaram a compor "As Aventuras de Sherlock Holmes" (The Adventures of Sherlock Holmes). De forma geral, o romance policial clássico, ao qual a obra pertence, se estrutura com a presença de um crime, da investigação e, ao final, da revelação do malfeitor. Por fornecer todos os elementos básicos de composição deste tipo de romance, a obra foi tomada como "modelo padrão" por outros escritores, que adaptavam a seu próprio estilo os fundamentos previamente estabelecidos. De Agatha Christie a Colin Dexter, de Raymond Chandler a J. K. Rowling, podemos perceber as influências penetrantes da obra no gênero, muitas vezes oculto por estar aliado ou ser complementar a outros. 
O livro é uma coleção de variados e fascinantes mistérios, que vão do bizarro ao emocionante, sempre recheado de hipérboles. Porém, no centro de todos os cenários, há dois personagens que deliberadamente atraem o expectador. Essa característica é o divisor de águas entre a obra de Doyle e livros de mistério previamente publicados: não somente o leitor é a traído pela natureza do caso investigado, mas também pelas ações de Holmes e Watson que são, individualmente, personagens interessnates.
Watson é o observador, o indivíduo comum, mas com paciência e tenacidade notáveis. Como narrador, possui tal maneira de colocar uma frase ou cenário que, de forma singular, chama a atenção do leitor.
Sherlock Holmes é a voz da razão. Doyle cria Holmes com a intenção evidente de fornecer à literatura um detetive que não chega a seus resultados por acaso, por sorte ou mesmo por descuido do criminoso. Sua pretensão é de que Holmes demonstre claramente os métodos pelos quais ele chegou à sua conclusão. No intuito de enfatizar esse objetivo, ou seja, demonstrar a abordagem científica de seu detetive, ele apresenta seu protagonista como um indivíduo impassível e insensível, mas não no sentido de cruel. Isso é firmemente estabelecido logo no primeiro conto da coleção, "Escândalo em Boêmia".
 "Ele era, na minha opinião, a mais perfeita e observadora máquina de raciocinar que o mundo já viu; como amante, porém, teria metido os pés pelas mãos. Nunca falou das paixões mais ternas senão com certa zombaria e um sorriso de desdém. Esses sentimentos eram admiráveis para o observador - excelentes para revelar os motivos e as ações dos homens. Para o homem de raciocínio treinado, porém, admitir tais interferências em seu temperamento sensível, sutilmente equilibrado, era introduzir um fator de perturbação capaz de abalar todos os seus julgamentos. Areia num instrumento sensível, ou uma rachadura em suas potentes lupas, não causaria mais estorvo que uma emoção forte numa natureza como a sua."
No entanto, como personagem, Holmes é um misto de contradições. Apesar de zombar da ideia do amor romântico, ele não é um ser sem paixões. Em "Um caso de identidade", por exemplo, sua ira pela forma como Windinbank tratava sua enteada faz seu rosto enrubescer e ele quase dá umas boas chicotadas no homem. Essas inconsistências com a natureza de um homem racionalmente frio e imparcial elevam a fascinação do leitor.
Outro aspecto interessante desta coleção que ajuda a ilustrar algumas das qualidades únicas que o autor trouxe a suas histórias, é que, mesmo demonstrando suas brilhantes habilidades de detetive nas tramas, Holmes é despistado por uma mulher em "Escândalo em Boêmia", e falha ao tentar evitar a morte de seu cliente em "As Cinco Sementes de Laranja". Essa falibilidade humana e o elemento da imprevisibilidade do enredo ajudam essas histótias a saírem da rotina e as tornam mais excitantes. Outra característica que amplia a popularidade da obra é sua natureza incomum e, por vezes, excêntrica. Quase todos os mistérios, uma vez que nem todos eles são crimes, possuem um elemento surreal: o homem de negócios que, aparentemente, desaparece no ar ("O Homem da Boca Torta"); a mulher moribunda que, em seu último suspiro, faz uma estranha referência à faixa malhada ("A Aventura da Faixa Malhada"); a misteriosa ameaça de morte representada por algumas sementes de laranja ("As Cinco Sementes de Laranja"); e a governanta que foi obrigada a sentar em uma determinada cadeira, enquanto seu patrão lhe contava histórias engraçadas para fazê-la rir ("As faias cor-de-cobre").
No entanto, é necessário saber que muitos críticos dos contos sobre Holmes acreditam que a verdadeira genialidade vem da personalidade de Watson. É através de seus olhos que observamos os eventos e é através de suas palavras que construímos uma imagem detalhada do excêntrico e carismático Sherlock Holmes. Watson não somente faz seu amigo ficar interessante, mas também, de maneira hábil, apesar de seu comportamento antissocial e hábitos estranhos, o faz encantador.

"Enquanto isso, Holmes, que detestava toda forma de sociedade, com sua alma inteiramente boêmia, continuava lá, em nossos aposentos em Baker Street, enterrado entre seus livros antigos, e alternando, semana a semana, a cocaína com a ambição, o torpor da droga com a energia impetuosa de sua personalidade intensa. Continuava, como sempre, profundamente atraído pelo estudo do crime e dedicava suas portentosas faculdades e seus extraordinários poderes de observação a seguir pistas e desvendar mistérios abandonados como insolúveis pela polícia oficial. [...] Seus aposentos estavam iluminados, e, ao olhar para cima, cheguei a ver sua figura alta, esguia, passar duas vezes numa silhueta escura contra a cortina. Ele andava de um lado para outro da sala, rápida e ansiosamente, a cabeça caída sobre o peito, as mãos cerradas às costas. Para mim, que conhecia todos os seus hábitos e suas disposições de ânimo, aquela atitude e maneira falavam por si mesmas. Ele voltara a trabalhar. Despertara de seus sonhos induzidos pela droga e farejava algum problema novo."
Quem, ao ouvir tal descrição, não gostaria de conhecer esse curioso indivíduo? E Watson, com seu maravilhoso jeito com as palavras, nos permite fazer exatamente isso.
Se Doyle sabia exatamente o que ele estava fazendo nesses primeiros contos, se ele tinha conhecimento de como estava manipulando o formato de histórias de detetive para se adequar a seu conceito incomum e único ou se o processo surgiu naturalmente para ele, é difícil supor. Planejadamente ou por acidente, ele criou um personagem que era tão interessante quanto os mistérios que se dispunha a resolver. Na verdade, pode-se inclusive dizer que essas não eram histórias de detetive, mas sim histórias sobre um detetive. E, ainda se a trama for fraca, ainda temos a compensação de ler sobre Holmes.
Afirmar que "As Aventuras de Sherlock Holmes" é a maior coleção de pequenas histórias que realçam um detetive é uma reivindicação irrefutável. Arthur Conan Doyle é o escritor mágico que, fazendo de sua pena uma varinha de condão, evoca o meio real vitoriano como plano de fundo para paisagens e personagens fantásticos, em cujo centro está Sherlock Holmes, que ultrapassou a fama de seu criador para tornar-se um dos maiores ícones da cultura popular.

Videocuriosidades:

São muitas as adaptações, séries, peças, filmes, sem contar as histórias e personagens inspirados na obra.  O Guiness book listou Holmes como o personagem mais retratado de todos os tempos, com mais de 70 atores atuando como tal em quase 200 filmes. Além disso, o acervo virtual existente sobre Holmes e suas histórias é muito extenso e inclui até museus online. 
A primeira adaptação, realizada em cinema mudo em 1900, foi Sherlock Holmes Baffled, dirigido por Arthur Marvin.
O primeiro filme com som foi realizado em 1929, estrelando Clive Brook em "O retorno de Sherlock Holmes".
Entre 1939 e 1946, Basil Rathbourne, junto a Nigel Bruce como Watson, atuou em 14 filmes da Universal Pictures.
Em 2009, Robert Downey Jr. estrelou como Holmes no filme de Guy Ritchie.
Duas séries atuais, Sherlock de Steven Moffat e Elementary, com Jonny Lee Miller como Holmes, apresentam novamente o tão retratado Sherlock.