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terça-feira, 23 de outubro de 2012

"A Princesinha", Frances Hodgson Burnett

Publicado em 1905, "A Princesinha" ("The Little Princess"), da escritora inglesa Frances Hodgson Burnett, retoma a ideia do poder dos pensamentos positivos, já relatada e analisada no blog com a postagem de "O Jardim Secreto".
Criada na Índia(como é comum das histórias de Hodgson), Sara Crewe é uma menina muito doce, bondosa e educada, que, apesar de não ter mãe, tem um lindo relacionamento com o pai, que a ama muito e faz de tudo pela menina, tentando sempre imaginar o que a mãe dela gostaria que fosse feito.
O pai de Sara decide deixá-la num internato para meninas, que seria responsável por sua educação , enquanto ele viaja para fechar um negócio com um grande amigo, que é um investimento em  minas de diamantes. O lugar escolhido é propriedade da Sra. Michin, uma mulher amarga e gananciosa que, sabendo da grande riqueza que iria pertencer à família de Sara, fruto do negócio das minas, trata a menina de maneira diferencial, como se fosse uma princesa, dentro do internato. Sara tem um lugar especial na mesa de refeições e a Sra. Michin compra tudo que ela deseja. Mas, ao mesmo tempo que Sara causa inveja em algumas meninas, como é o caso de Lavínia, sua doçura, generosidade e paciência são responsáveis pelas grandes amizades que Sara ganha no internato, uma delas sendo Becky, uma menina que trabalha como serviçal e realiza praticamente todas as atividades de limpeza da casa, sendo tratada muito mais como um bicho que como um ser humano. Um certo dia, no entanto, o advogado do pai de Sara aparece no internato para informar sobre a morte do Sr. Crewe, consequência do grande impacto da notícia sobre a perda do investimento nas minas, o que significava toda a sua fortuna. Desolada e cheia de ira, a Sra. Michin não pode expulsar a menina de sua casa para não sujar a imagem de sua propriedade e então chama Sara a seu escritório. Explica, secamente, à menina sobre a morte de seu pai, a perda de sua fortuna e seu novo lugar no internato: o mesmo que o de Becky, mas com a responsabilidade também de dar aulas às pupilas mais novas. Seus "aposentos" seriam agora, como os de Becky, no sótão frio e sujo da casa.
Mas a amizade da menina com sua "vizinha de quarto" e com as outras crianças do internato que não se deixaram corromper pelo preconceito lhe dá forças para superar as dificuldades. Além disso, mesmo em tempos melhores, Sara tem o enorme poder de inventar histórias e imaginar que está em situações diferentes das que ela se encontra. Essa capacidade é, então, ainda mais desenvolvida e torna-se essencial em sua nova vida. Só fingindo estar em outras situações ela consegue suportar os dias de trabalho pesado e as noites no sótão gelado. Becky também se beneficia com essa companhia tão cheia de positividade, o que melhora um pouco sua vida triste e cansativa.
Mas a vida dá voltas e, após algum tempo nesse sofrimento, mágicas começam a acontecer na vida da menina. Um homem muito rico vindo da Índia compra a casa vizinha ao internato. Muito doente, o homem tem alguns criados, como Ram Dass, um indiano muito hábil que cuida do proprietário da casa. Vendo o sofrimento da menina através das janelas das duas casas, Ram Dass repassa para seu patrão, que se comove e começa a enviar presentes sceretos para a menina. Quando ela está fora do sótão, a lareira é acesa e lindos cobertores tapetes e cortinas são colocados, deixando o lugar mais cheio de vida e mais aquecido. Sem saber a quem agradecer, mas imaginando que alguém no mundo se importa com ela, que ela não está mais sozinha e que, de fato, tem um amigo, Sara fica muito alegre, enquanto esconde o seu segredo. E essa magia reflete-se também em Becky, que ganha alguns dos cobertores e pode aproveitar do aquecimento do lugar, enquanto escuta as histórias que Sara lhe conta.
O vizinho, cheio de posses, porém, tem uma amargura muito grande em seu coração. Ele fizera um grande amigo investir, junto com ele, em um negócio de minas de diamantes, mas o negócio não deu certo e os dois perderam a fortuna. Ele fugira para não encarar o amigo, o qual morreu de tristeza diante da desgraça financeira. No entanto, o que não se sabia é que, na realidade, a fortuna não estava perdida, pois as minas acabaram por dar lucros. Ele, então, ficou com as duas fortunas, sua e do amigo. Mas ele sabia que seu amigo deixara uma filhinha pequena em um internato antes da viagem que iria levar a seu falecimento e, desde que ele recebera o capital financeiro de volta, estava em busca dessa menina.
Por coincidência do destino (ou providência divina), a menina estava o tempo todo na casa ao lado e, em certo ponto, mais tarde que o necessário e cedo o suficiente para evitar maiores desgraças, o homem que viera da Índia encontra Sara, a filha de seu amigo, e ela retoma suas posses e volta a ter uma vida descente, levando consigo Becky, que, apesar de não ser tratada como igual, torna-se uma espécie de "ama" da menina, mas tendo, definitivamente, uma vida muito mais qualificada que a anterior.

Da mesma forma que no caso da personagem mais "jovem", porém igualmente memorável, de Burnett, Mary Lennox, em "O Jardim Secreto" - também órfã - a vida de Sara Crewe é definida através de seu otimismo. E é irrefutável o fato de que as circunstâncias em que Sara passa a viver necessitam do uso incansável desse atributo, afinal, ela tem de superar vários obstáculos o tempo todo.
Seu sofrimento inicia-se quando ela é deixada no "Seleto seminário para meninas" de Miss Michin, separando-se de seu amado pai, e sendo deixada, ainda que não voluntariamente, em um ambiente hostil e carente de amor para as meninas ali instaladas, ainda que Sara ocupe um lugar de privilégio, a princípio, por causa de sua fortuna. 

"[...] Ao despedir-se dele em seus lindos aposentos, a menina olhou-o terna e longamente.
- Que foi filha? Está querendo me aprender de cor?
- Não, pai. Eu já conheço você de cor. Você mora no meu coração "
(E aqui é feito um trocadilho com a expressão, do inglês, learn by heart, aprender de cor, e a palavra heart, coração. Posso, então, fazer um ponto de certa importância para os leitores: apesar do não conhecimento da língua não prejudicar enormemente o entendimento dos leitores, muita da riqueza da escrita é perdida na tradução. Essa passagem, por exemplo, eu acho emocionante, mas não tem o mesmo impacto quando traduzida.) 

Ainda que seja um luxo particular o fato de que ela tenha um aposento individual, também isto pode ser visto como um fornecedor de solidão, já que nem mesmo a mais bela das decorações parisienses é garantia de felicidade.
Além disso, apesar de ser uma menina muito doce, que busca sempre ver o melhor nos outros e acaba ficando absolutamente impressionada pelos sinais visíveis da aceitação de todos os que estão em sua volta (o que não seria de se estranhar, já que ela é uma menina boa, bonita e rica), Sara não busca responder às rivalidades causadas pela inveja de algumas de suas colegas. Isso acaba por deixá-la muito sozinha e ela torna-se, então, a única responsável por sua própria felicidade. É aí que sua imaginação começa a vir à tona com mais vigor: na tentativa de fugir da solidão, saudade e, por consequência, tristeza. Suas amizades, que se mostram pouco a pouco no decorrer do livro, são as meninas marginalizadas e impopulares na escola, as quais ela oferece a companhia e a ajuda que elas precisam, aumentando ainda mais a admiração que essas garotas, que nunca pensaram que alguém como Sara, que tinha tudo, ia se tornar amiga delas, tem pela menina. Uma dessas meninas, e talvez o maior exemplo da aproximação de Sara dos que estão à margem da sociedade, é sua amizade com Becky, pois, indiferente aos decretos do sistema educacional da Sra. Michin (e da maior parte da sociedade do período), a menina torna-se amiga e companheira da serviçal, uma "burro-de-carga" miserável que é tratada muito mais como um cachorro que como um ser humano. A perspectiva de Sara da vida é estabelecida da seguinte forma: da mesma maneira que ela tem o direito de ser bem alimentada, assim também o tem Becky. Assim, o otimismo e o senso que a menina tem da importância da justiça coordena não somente a escolha de suas amizades, como também, seu propósito na vida.
É também verdade que somente quando as condições de Sara são completamente modificadas e ela tem sua vida virada de cabeça para baixo que todas as suas qualidades são verdadeira mente testadas. Mas ainda assim, na beira do abismo, em meio aos desastres, Sara se desvia do desespero e mantém seu extraordinário equilíbrio (que passa a ser visto como um insulto pelos olhos da Sra. Michin), dizendo sempre a si mesma que ela continua sendo uma princesa, ainda que não tenha as posses de uma. Ser uma princesa significa, para Sara o desejo de ser digna, comedida e generosa. A seguir, outra passagem que merece grande destaque:
"- Um dos 'fingimentos' de Sara é que ela é uma princesa - disse Jessie. - Ela brinca disso o tempo todo, até na escola. Ela quer que Ermengarde também seja uma,mas Ermengarde diz que é muito gorda.

- Ela é muito gorda - disse Lavinia.

- E Sara é muito magra.

- Sara diz que não, isso não tem nada a ver com sua aparência ou suas posses. Só tem a ver com o que você pensa, e o que você faz - explicou Jessie "
Antes ela afirmava a Becky que era apenas um acaso, um acidente, que uma tenha nascido rica e a outra pobre (coisa que a infeliz garota não conseguia compreender, por causa de sua ignorância involuntária): "Tive sorte, pois muitas coisas boas me aconteceram. Não é mérito meu ter boa memória, gostar de ler e ter um pai que me dá tudo que eu quero. Nunca sofri provações. Isso é pura sorte!". Vale notar que eu simplesmente amo essa passagem do livro. Essa é uma lições que merecem destaque, pois, ainda mais nos dias de hoje, parece ter sido esquecida por pessoas que desmerecem o esforço e a luta, porque desconhecem a satisfação de conseguir as coisas pelos próprios pulsos. No momento de desgraça, então, Sara diz a Becky: "Oh Becky... Eu te disse que nós éramos iguais - apenas duas meninas - só duas crianças. Você pode ver o quanto isso é verdade. Não há mais diferença agora." 
E assim, utilizando-se de sua bravura, otimismo e até mesmo de um pouco de orgulho no que diz respeito a abaixar a cabeça para a Sra. Michin, ela mantém um impecável nível de respeito próprio e dignidade. Mesmo seu luto pela morte de seu amado pai é, temporariamente, deixado de lado.
Ainda que humilhada na frente de suas antigas colegas, tratada como burro-de-carga, fazendo entregas na chuva, faminta, suja e maltrapilha, ela supera tudo de tal maneira que só uma princesa de verdade seria capaz. Mais uma vez, são os pensamentos positivos, combinados com uma imaginação muito fértil, que sustentam Sara, até porque suas histórias e invenções são as únicas coisas que a dona do internato não pode tirar dela.
"Eu não posso parar de inventar histórias. Se eu parasse, eu não sobreviveria"
Sara é muitas vezes definida no livro como estranha, mas a palavra que realmente poderia descrevê-la é: única. Talvez por nunca ter conhecido a figura da mãe e crescido só com o amor do pai em um país distante, Sara mostra-se um adulto em um corpo de criança. Acontecimentos como o fato de ela "saber reagir" ou "reagir da melhor maneira possível" à morte de seu pai e às novas condições impostas é, senão fantástico, no mínimo, interessante. Além disso, apesar de todo luxo no qual ela cresceu, ela não é mimada. Rica ou pobre, ela é sempre generosa. Mas Sara não é só virtudes. Teimosa, ultrajante e orgulhosa, ela tem defeitos como todas as outras crianças.
Seguindo a filosofia de seu pai, ela afirma: "Como um soldado, vou fingir que isso é parte da guerra". E um soldado não sai de uma batalha antes que esta acabe. Embasada em suas poucas, porém leais - o que é muito mais importante - amizades, ela consegue ter total controle sobre suas emoções, deixando sua opressora furiosa. E seu poder baseia-se  também em sua habilidade de conter sua raiva. Quanto mais comedida e calma Sara encontra-se, mais enfurecida a Sra. Michin se torna.

"Quando estão insultando a gente, a melhor resposta é não dar uma palavra, só olhar e pensar. [...] Quando a gente não perde a calma, as pessoas sabem que a gente é mais forte que elas, porque consegue se controlar, e elas ficam dizendo coisas estúpidas, das quais depois se arrependem. Não existe nada mais forte do que a raiva - a não ser o que você controlar a raiva, que é mais forte. É muito bom não responder nunca aos inimigos."
Aspectos como o interesse financeiro e em status das pessoas, que são atemporais, também são mostrados claramente no livro, o que vai da inveja de Lavínia à ganância da Sra. Michin. Os estilos de roupa e os hábitos das pessoas da época também são disfarçadamente apresentado, ou seja, tem seu grau de importância, apesar de não ser o foco ou a intenção do livro.
Muitas vezes fugindo um pouco do lugar-comum, a autora atem-se à realidade do período quando escreve o final da menina Becky, que continuou como serviçal, mas de patrões mais sensíveis às suas necessidades. Não acredito que isso seja consequência de um possível preconceito ou racismo (tendo em vista que a menina era negra) da autora, mas, talvez, muito mais buscando a aceitação do público, que na época não conseguia enxergar pessoas como Becky em situações "privilegiadas" (e que as aspas que aqui escrevo sejam bem lidas, visto que refiro-me ao privilégio como casa, comida, higiene e atividades de criança, como brincar e estudar). De qualquer maneira, essa parte do fim não me agradou muito.
Mas, afinal, nos resta a dúvida: será que Sara, tendo retomado sua fortuna e encontrado amigos que verdadeiramente se importam com ela, conseguirá ser feliz? Perguntas como essas podem ser respondidas apenas em nossa imaginação, pois a autora não nos deixa nem sequer um palpite. Eu acredito que a perda do pai será uma tristeza eterna no coração da menina, mas, por outro lado, na vida real as coisas nunca acontecem da maneira mais fácil. A fortaleza de Sara demonstra, apesar dessa dor que agora é inerente a ela, vai fazê-la continuar vivendo e até conseguir ser feliz. É fazendo boas ações e sendo generosa com os mais necessitados que ela consegue alcançar uma grande satisfação no final do livro e é por esse caminho que eu acho que ela, bem como todos nós, conseguirá superar as dores de sua vida e reencontrar a felicidade.
O drama mágico, emocionalmente poderoso e moralmente instrutivo com o qual Hodgson nos presenteou é algo peculiar. Ler sobre o livro ou suas análises não é o suficiente: a leitura se faz aqui necessária para sentir, de sua própria maneira, o impacto único que a obra tem em cada um.



Videocuriosidades:

A primeira adaptação cinematográfica é um filme de 1939, estrelando Shirley Temple.

O filme que verdadeiramente marcou minha infância por sua doce e triste beleza, com grande fidelidade ao livro, é de 1995, com Liesel Mathews como Sara. O papel de Becky nesse filme torna-se ainda maior e o final é extraordinário. No lugar do amigo do pai de Sara retornar, é o próprio Sr. Crewe quem retorna, com a memória perdida. O desenrolar é muito mais bonito e, no final, também Becky torna-se filha, mas adotiva, dele. Por mais irrealístico que seja, o fato de eu ter conhecido esse final antes do outro me causou certa antipatia pelo original. Afinal, quem não gosta do final mais feliz possível para os personagens queridos? Eu trocaria, pelo menos, a retomada do dinheiro pela volta do pai, mas talvez mesmo isso seja querer demais.

Tenho uma opinião que não posso ter como confirmada, tendo em vista que mesmo minha busca na internet não me deu respostas. Para os que conheceram a telenovela "Chiquititas" na infância, eu fiz uma comparação entre a personalidade da personagem Mili e Sara Crewe e, imagino, que a primeira foi inspirada na protagonista deste livro. Talvez isso possa parecer apelação para alguns, mas uma boa história ou um bom personagem pode sempre ser retomado de várias formas diferentes, obtendo sempre sucesso para o seu público, como foi o caso da telenovela e, mais especificamente, da personagem para as crianças de 1996 e alguns anos posteriores. Mas claro apenas aqueles que vivenciaram profundamente as duas personagens são capazes de perceber as minúcias dessa semelhança