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domingo, 6 de maio de 2012

"Hamlet", William Shakespeare

Uma vez mais, trago para este blog um humilde comentário sobre uma obra-prima do maior dramaturgo da literatura universal. William Shakespeare, que escrevia suas peças para um pequeno teatro de repertório, no final do século XVI e início do XVII, tem, mais de 400 anos depois, suas histórias como base para excelentes adaptações. A sua produção engrandeceu o teatro, trazendo ao palco as personagens mais intrigantes, dentre as quais figura o sujeito de nossos comentários. 
Segundo estudiosos, é em 1600 que nosso autor atinge a maturidade literária, com a peça "Hamlet", diferentemente da obra anteriormente aqui postada "A Megera Domada", que pertence a primeira fase de seus escritos. Esta última, inserida no grupo de comédia de costumes, difere da primeira, que, rodeada por uma natureza histórica, apresenta, em sua essência, a natureza humana e suas contradições.

Na realidade, o mito de Hamlet é antiquíssimo na lenda escandinava. No século XII, surge o primeiro registro escrito dessa história, proveniente do dinamarquês Saxo Grammaticus, no livro "História Danica". Entretanto, Shakespeare, pode-se presumir, inspirou sua obra na publicada por François de Belletorest, inserida em seu livro "Histoires Tragiques", de 1576.
Hamlet é a tragédia da dúvida, do desespero solitário de um homem diante da violência do mundo. Por seu caráter profundo e enigmático, estabelecendo contato intenso com o que há de mais obscuro no ser humano, esta peça é, até hoje, a mais estudada e apresentada do poeta inglês.
O rei da Dinamarca falece. Em seu lugar, sobe ao trono seu irmão que, com pouco tempo do trágico acontecimento, casa-se com a rainha. O príncipe, Hamlet, não consegue aceitar que sua mãe tenha-se retirado do luto, desposando um outro marido, mal o cadáver de seu pai esfriara. Não há nada, porém, que deva-se fazer, apesar da grande amargura do príncipe e da falta de honra e dignidade do casal, que apressadamente desrespeitou a memória do rei, dentro de uma relação considerada incestuosa no período.
Em uma certa noite de vigília, os guardas noturnos do reino começam a ver o espectro do pai de Hamlet e, apesar de quase não acreditarem em seus olhos, alertam o príncipe. Este tenta comunicar-se com o espectro que, de fato, aparenta ser seu pai e acaba por descobrir uma informação importantíssima: Cláudio havia envenenado o rei da Dinamarca e seduzido sua esposa, adquirindo, assim, tudo que pertencia ao seu irmão - o trono e a rainha.
A indignação de Hamlet não poderia ser colocada em palavras. A dúvida paira sobre a cabeça do personagem. O que, afinal, deveria ser feito? O desejo de vingança é grande, mas não lhe parece correto. Ele passa, então, a agir de uma maneira que os cortesões, o rei e a rainha consideram insanidade. Aproveitando-se disso, o príncipe ganha tempo para tramar a melhor forma de desmascarar o rei.
Enquanto isso, um projeto de romance é colocado para o leitor: Hamlet é apaixonado por Ofélia, filha de Polônio, um lorde camarista que é o principal conselheiro do rei.
Pois bem, após muitas reviravoltas, onde o rei, desconfiado de seu sobrinho, tenta descobrir o que se passa na cabeça dele, Hamlet tem uma conversa com sua mãe e consegue abrir os olhos dela para a falta de caráter do rei, bem como a péssima atitude que ela havia tomado. Esta conversa, porém, tinha sido escutada por Polônio atrás das cortinas (coisa muito típica e quase um clichê de dramas envolvendo traições). O princípe, contudo, detecta algo errado no ambiente e acaba por dar um golpe de espada na cortina, assassinando o pai de sua amada.
Ofélia enlouquece e é "vítima" de uma morte misteriosa, que nos dá um diálogo muito interessante entre os coveiros que cavavam sua sepultura:


"PRIMEIRO COVEIRO - E é correto que em terra santa seja sepultada a moça que voluntariamente conspira contra a própria salvação?
SEGUNDO COVEIRO - Posso te dizer que sim. Portanto cave logo a sepultura que irá recebê-la. O comissário já examinou o caso e decidiu que o enterro deve ser cristão.
PRIMEIRO COVEIRO - Como pode ser isso? A menos que ela tenha se afogado em defesa própria!
SEGUNDO COVEIRO - Foi mais ou menos isso que acharam.
PRIMEIRO COVEIRO - Deve ter sido se defendendo. Não pode ter sido de outra maneira! Porque aqui está o ponto: se eu me afogar intencionalmente, isto denota um ato, e um ato tem três partes que são: agir, fazer e executar. Então, ela se afogou intencionalmente.
SEGUNDO COVEIRO - Mas escuta, camarada...
PRIMEIRO COVEIRO - Com licença! Aqui está a água; bom, e aqui está o homem; bem. Se o homem vai em direção desta água e se afoga, queira ou não, é caso que vai. Preste bem atenção. Mas se a água vai até ele e o afoga, ele não se afoga a si mesmo. Portanto, aquele que não é culpado da própria morte, não abrevia a própria vida.
SEGUNDO COVEIRO - Mas a lei é assim?
PRIMEIRO COVEIRO - Exatamente! Lei baseada na informação do comissário.
SEGUNDO COVEIRO - Só sei de uma coisa, se essa não fosse uma dama da nobreza, não seria sepultada como cristã.
PRIMEIRO COVEIRO - Isso mesmo! E o mais triste disso é que os grandes têm mais facilidades neste mundo para se afogar ou se enforcar.[...] Enquanto eles se julgam eternos nós é que construímos as cidades mais duradouras. Sabe por quê?
SEGUNDO COVEIRO - Realmente, juro que não sei!
PRIMEIRO COVEIRO - Não atormente mais sua cabeça oca com isso. A idéia é que o coveiro constrói casas que duram até o dia do Juízo Final. (Pausa) Agora vá buscar um tanto d'água que tenho de terminar isso ainda hoje!"

Com tantas tragédias em sua família, ocasionadas, ainda que não de todo intencionalmente, por Hamlet, o irmão de Ofélia, Laertes, resolve vingar-se. Alia-se, portanto, ao rei. 
O clímax do livro ocorre com a utilização de um artifício interessante e original: o teatro dentro do teatro. Aproveitando-se da capacidade que a dramaturgia tem de penetrar no íntimo do ser humano, fazendo-o refletir e demonstrar as mais diversas reações, Hamlet propõe a um grupo de atores (que seria a representação do grupo de teatro de Shakespeare) que apresente uma peça que contaria a mesma história de traição, corrupção, incesto e imoralidade de sua vida real. De fato, a representação afeta o rei, que retira-se do recinto, desmascarando-se, com esta atitude, aos olhos de Hamlet.
Finalmente, o rei trama uma luta entre Laertes e Hamlet. Para garantir a morte deste último, o florete de Laertes é envenenado, bem como um copo de vinho, servido a Hamlet entre os jogos. Mas o tiro sai pela culatra quando a rainha, Gertrudes, bebe o vinho que seria de seu filho. A seguir Laertes fere Hamlet e, após troca de floretes, Hamlet fere Laertes. No ímpeto deste momento, a rainha morre e o príncipe, percebendo a traição, usa suas últimas gotas de ânimo para ferir o rei antes de morrer.
O forte caráter de Cláudio, o rei da Dinamarca e vilão de nossa história, torna-se um traço de valor e cede à trama uma complexidade que não poderia ser alcançada com a simples representação da luta contra o bem e o mal. Aspectos extremamente frequentes nas obras de Shakespeare, como as aparências que enganam e o predomínio das paixões sobre a razão, embalam com fervor a história de Hamlet.
Devido à vívida dramatização da melancolia e da insanidade na peça, suas personagens foram encaradas, durante muito tempo, como obscuras, misteriosas e, até mesmo, místicas. A confusão de um homem em meio a um ambiente de loucura real e loucura fingida, com emoções que partem do sofrimento opressivo até a raiva fervorosa, torna a obra ainda mais intrigante estudiosos e psicanalistas, fazendo-a interpretada e debatida através de diversas perspectivas. 
Críticos psicanalíticos, mais recentemente, tentam examinar a mente inconsciente de Hamlet, enquanto críticos feministas reavaliam e reabilitam o caráter de personagens como Ofélia e Gertrudes.
A hesitação de Hamlet ao matar seu tio, por exemplo, é um aspecto ainda misterioso para muitos. Alguns encaram o ato como uma técnica de prolongação do enredo, mas outros o vêem como resultado da pressão exercida pelas complexas questões éticas e filosóficas que cercam o assassinato a sangue-frio, resultado de uma vingança calculada e um desejo frustrado. Freud interpretou esta situação como uma espécie de complexo de Édipo.
Nosso protagonista possui também um caráter filosófico, expondo idéias agora conhecidas como relativistas, existencialistas e céticas. Uma forte exemplificação deste relativismo é expresso em seu diálogo com Rosencrantz, na seguinte frase: "[...] nada é bom ou mau, a não ser por força do pensamento." A reflexão de que nada é mau, exceto na mente do indivíduo, encontra raízes nos gregos sofistas, crentes de que, uma vez que nada pode ser percebido, exceto através dos sentidos - e uma vez que todas as pessoas percebem as coisas diferentemente entre si - não há verdade absoluta, apenas a verdade relativa sobre as coisas (e eu não poderia ser mais de acordo com essa idéia).
O exemplo mais claro do existencialismo, contudo, está no célebre e famoso monólogo da tragédia:
"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nossos espírito sofrer pedras e setas com que a fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e, em ula, pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais. Dizer que rematamos com um sono a angústia e as mil pelejas  naturais - herança do homem: morrer para dormir... é uma consumação que bem merece e desejamos com fervor [...]" 
Os críticos acreditam que Hamlet usa "ser" para aludir à vida e à ação, e "não ser" aludindo à morte e a inércia.
Não me permito adentrar em divagações e reflexões, utilizando-me de minha pobre (diante de tanta riqueza literária) capacidade de interpretação. Ficarei, portanto, com o resto de minhas análises, dando aos leitores deste blog que se interessarem (e, se me permitem afirmar, não tem como não criar curiosidade pelos mistérios psicanalíticos de tal trama) a possibilidade de criarem suas próprias interpretações, que podem ser as mais diversas e apreciar a obra, desde seu conteúdo mais simples à sua mais extremada concepção.


Video-curiosidades:

Criada com o intuito de ser apresentado em palcos, a obra, obviamente, foi apresentada milhares de vezes, através das mais diversas perspectivas e atuações.

Em 1948, uma adaptação cinematográfica dirigida e protagonizada por Laurence Olivier estreou nos cinemas.
Em 1990, o filme dirigido por Franco Zefirelli é lançado, estrelando Mel Gibson e Glenn Close.
Em 1996, com Keneth Branagh como Hamlet, outra adaptação surge nos cinemas.

Vários atores brasileiros renomados, como Edson Celulari, Diogo Vilela e Wagner Moura encenaram Hamlet no teatro, merecendo ovações por suas brilhantes atuações. De fato, trazer uma trama tão rica e misteriosa para o teatro brasileiro, e, como ator, ter a audácia de interpretar um personagem tão perturbado e intrigante é, de fato, digno de não somente aplausos, mas principalmente agradecimento.


Indico este link de uma reflexão de Leandro Karnal em cima da peça: https://www.google.fr/search?q=%09Hamlet+e+o+Mundo+como+Palco&ie=utf-8&oe=utf-8&gws_rd=cr&ei=WdQyV-6lDMa4ad_dqtAC