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domingo, 1 de janeiro de 2012

"Madame Bovary", Gustave Flaubert


Em 1857, nasce uma obra-prima singular do Realismo francês. Escrito por Gustave Flaubert, "Madame Bovary" expressa a revolução na maneira de pensar do período. Polêmico e escandaloso no tempo em que foi lançado, levou seu autor a julgamento, momento em que ele utilizou a famosa frase “Emma Bovary c’est moi” (“Emma Bovary sou eu).
O início do livro nos apresenta Charles, M. Bovary, um homem pacato e de personalidade estável e passiva. Médico e casado, conhece nossa protagonista, Emma, quando vai tratar de uma doença pela qual pai dela havia sido afetado. Aos poucos, ele vai se apaixonando pela moça e, quando sua esposa morre por infortúnio, ele casa-se com Emma, que passa, então, a ser a nova madame Bovary. No entanto, um sentimento, que torna-se cada dia mais forte com o decorrer do casamento, toma conta de nossa "anti-heroína": a insatisfação. Sua vida e seu marido lhes parecem monótonos e muito distantes dos romances "românticos" que ela costumava ler em sua juventude. Ela desejava algo novo, uma paixão dilacerada e arrebatadora. E, em meio a este desespero trazido pela falta de alegria e dinâmica em sua vida, ela conhece Léon e Rodolpho. Pelo primeiro, um rapaz mais novo, ela apaixona-se e é retribuída, mas ambas ética e moral não lhe permitem dar o passo da traição.

"Léon não sabia, quando saía da casa dela desesperado, que Emma se levantava logo a seguir para o ver na rua. Preocupava-se com o que ele fazia, espiava-lhe o aspecto do rosto, inventou uma história complicada como pretexto para lhe visitar o quarto. [...]

 Mas, quanto mais emma tomava consciência do amor, mais o recalcava, para que não aparecesse e o fazer diminuir. Sentia o desejo de que Léon lhe adivinhasse o sentimento, e imaginava circunstâncias de acaso, catástrofes que pudessem contribuir para isso. O que a detinha era, sem dúvida, a inércia ou o receio, e também o pudor.  Imaginava que o tinha repelido demasiado, que já não havia oportunidade e que tudo estava perdido.  Também o orgulho, a satisfação de poder dizer: "sou virtuosa", e de olhar para o espelho assumindo  poses de resignação, a consolava um pouco pelo sacrifício que acreditava estar fazendo.
Então, os apetites da carne, as cobiças do dinheiro e as melancolias da paixão, tudo se confundia num mesmo sofrimento, e, em vez de procurar afastar daí o pensamento, ainda mais se prendia ao mesmo, excitando-se à dor e procurando para isso todas as ocasiões.  Irritava-se com um prato mal servido ou com uma porta entreaberta, lastimava-se pelo veludo que lhe faltava, pela felicidade que não tinha, por as suas aspirações  serem demasiado elevadas e por a casa ser acanhada de mais.
O que a exasperava é que Charles não dava a impressão de suspeitar do seu suplício. A convicção que ele tinha de a fazer feliz parecia-lhe um insulto imbecil e a segurança que revelava a esse respeito, ingratidão. Por causa de quem se comportava ela tão escrupulosamente? Não era ele o obstáculo a toda a felicidade, o motivo de toda a desgraça, como que o bico da fivela a travar aquela complexa correia que por todos os lados a amarrava?
Então voltou contra ele todo o ódio acumulado pelos seus aborrecimentos e cada esforço que fazia para o reduzir servia apenas para o aumentar, pois esse esforço inútil ia acrescentar-se aos outros motivos de desespero e contribuía ainda para maior afastamento. A sua própria docilidade lhe causava revolta. a mediocridade doméstica incitava-a a fantasias luxuosas; a ternura matrimonial, a desejos adúlteros.
 
Preferiria que Charles lhe batesse, para poder com mais justiça detestá-lo, vingar-se dele. Por vezes assustava-se com as atrozes conjecturas que lhe vinham à ideia; e era necessário continuar a sorrir, escutar as suas próprias repetições de que ele era feliz, fazer de conta que o era, dar a entender isso aos outros!
Enojava-se, entretanto, daquela hipocrisia. Tinha tentações de fugir com Léon para qualquer parte, muito longe, tentar um  destino novo; mas logo se lhe abria na alma um abismo de confusão, cheio de negrume. "Ainda por cima, não me ama", pensava ela; "Qual vai ser o meu futuro? Que ajuda posso esperar, que consolação, que alívio?"

Ainda apaixonada por Léon, Emma conhece Rodolpho que lhe impõe um amor predatório, completamente oposto ao sentimento fascinado que Charles possui por sua esposa. Assim, Rodolpho acaba levando-a ao adultério. Ou, a princípio, é a isso que somos levados a crer, tendo em vista que Emma, por já estar fragilizada e sendo deliberadamente seduzida pelo rapaz, não seria a grande culpada. Madame Bovary, então, tem sua primeira decepção quando decide fugir de seu marido com Rodolpho, levando sua pequena filha Berthe. Ele, porém, recua e lhe escreve uma carta acabando com tudo que havia entre eles. Essa é uma das artimanhas do autor para colocar abaixo os mitos românticos, onde o mocinho e a mocinha estão sempre dispostos a fazerem tudo para ficarem juntos. O romance na vida real não é nem um pouco lírico ou altruísta. Um amor assim, que não beire a monotonia do casamento de Charles e Emma é, acima de tudo, utópico. as nossa protagonista, uma mulher banal, adepta do idealismo romântico, prefere viver em confronto com a realidade, morando dentro de seus próprios sonhos ordinários.
Tempos depois, ela reencontra León e, desta vez, eles consumam sua paixão fulminante. Com o passar do tempo, Emma começa a perceber algo que antes não esperava: todo o fulgor que ela sentia por seu amante vai se desvanecendo e, mais uma vez, temos a confirmação da irrealidade do Romantismo.
No decorrer de tudo isso, madame Bovary vai se afundando em grandes dívidas e, sem ter como pagar, ela comete um suicídio, que é, na realidade, uma ironia: a morte por um motivo tão banal e ridículo.
Ao longo da obra, a denúncia de todas as extensões românticas vai se repetindo. Por exemplo, na cena demasiado conhecida dos leilões agrícolas, o diálogo amoroso entre Emma e Léon é constantemente atrapalhado pelos gritos do júri, que remetem às recompensas. Essa inclusão da trivialidade no drama romântico suscita em um efeito de ironia irresistível.
Madame Bovary pode ser vista como uma esposa entediada que torna-se adúltera ou como uma mulher que teve coragem de ultrapassar os obstáculos que seu tempo impunha à sua liberdade para buscar o direito de ser feliz. Na época em que veio ao conhecimento público, ao passo que foi motivo de grande polêmica, foi uma espécie de heroína para as mulheres que não tinham a coragem, nem o direito de lutar pelo que queriam.
Escrito em um período onde a burguesia estava no poder, o livro tem um aspecto irônico e busca retratar a realidade em razão de opor-se ao período romântico constava na literatura um pouco antes. Um dos personagens ilustra esse fato é o farmacêutico Homais. Ele é o típico burguês em busca de capital e prestígio, que renega qualquer tipo de enlace religioso e coloca-se como defensor da ciência. Por causa dessas ironias, a obra, por vezes, beira o cômico. Pode ser visto, de fato, como uma tragicomédia. Acontecimentos realmente trágicos são colocados de maneira tão ridícula e caricata que tornam-se cômicos. Da mesma maneira, certos momentos que poderiam vir a ser extremamente tristes e dolorosos, são visualizados de modo científico e medicinal: cenas de amputação e morte são retratadas de um âmbito criticamente biológico, apresentado todas as moléstias do momento, como o sangue que escorre, o vômito e as dores de maneira nada eufêmica. Assim, o que poderia vir a ter para nós um caráter de tristeza ou depressão, busca mostrar ao leitor o nojo humano, o aspecto decrépito do homem, o que,, de certa maneira, manifesta a pequenez e fragilidade de um ser que acredita-se mais importante que os outros, através da exposição da realidade crua.



O verdadeiro sentido do Realismo é expor a realidade passivamente, de maneira que o leitor seja capaz de tirar suas próprias conclusões dos acontecimentos, sem terceiras influências, como a do narrador. Por isso, sua narração possui um estilo de precisão documentário, que, até certo ponto, é seguido por Flaubert. Diversas vezes, porém, como já foi dito, ele se utiliza da sátira e da ironia, ambos métodos nada indiferentes, além do discurso indireto livre, que, por si só, induz o pensamento do leitor à concordância com o personagem.
Um fato interessante com relação a “Madame Bovary” que apenas o introduz ainda mais no movimento literário realista é que sua história foi inspirada numa notícia de jornal. Nossa “verdadeira” Emma chamava-se Delphine Delamare e era a esposa de um médico que, após entediar-se de seu casamento, deixa seu marido, antes de suicidar-se, para que também ele não faça o mesmo, tendo em vista que eles tem uma filha pequena para criar (que seria nossa ‘Berthe’).
A obra é recomendável não apenas por sua grande importância neste impressionante movimento literário, como também, em termos de estudo histórico e sociológico. O estilo de escrita do autor é impressionante e as ironias aparentemente despretensiosas, assim como as caricaturas exageradas em momentos inesperados  constroem uma leitura interessante e mesmo divertida, dependendo do gosto do leitor, pois, antes de captarmos o constante sarcasmo de Flaubert, podemos ficar horrorizados com algumas cenas. É, de qualquer modo, uma leitura imperdível.


Video-curiosidades:

Foram diversas as adaptações deste livro para o cinema e a televisão. Dentre as mais conhecidas estão:
Em 1933, Jean Renoir dirige o que seria o primeiro grande filme "Madame Bovary", com Max Dearly e Valentine Tessier.
Em 1949, chega a vez de Jennifer Jones, James Manson e Van Heflin estrelarem o filme de Vicente Minnelli.
Em 1975, uma minissérie é gravada com o mesmo tema, apresentando Francesca Annis, Tom Conti e Gabrielle Lloyd.
O diretor Claude Chabrou retoma a história em 1991, com Isabelle Huppert Jean-François Balmer e Christophe Malavoy encarnando os conhecidos personagens.
Finalmente, em 2000 Tim Fywell dirige um filme, cujos personagens são representados por Frances O'Connor, High Bonneville e Eile Atkins.

A figura de Emma Bovary, no entanto, é indissociável de todas as histórias de esposas adúlteras que surgiram posteriormente, como é o caso de Mrs. Robinson ("A primeira noite de um homem", 1967) e tantas outras que fizeram ou não tanto sucesso.