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domingo, 4 de dezembro de 2011

"Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcelos

"Meu Pé de Laranja Lima", publicado em 1968 foi escrito por um carioca de família nordestina e pobre, que cresceu na minha amada cidade Natal, no Rio Grande do Norte. O histórico do autor foi imprescindível para o sucesso do livro como exposição realista da vida de uma família simples, na visão de um menino, que perdeu seu direito de ser criança cedo demais.
O livro conta a história de Zezé, um garotinho de apenas cinco anos que morava com sua família em uma casa muito simples próximo à avenida Rio-São Paulo. Seu pai estava desempregado e sua mãe que trabalha desde muito cedo da manhã, chegando em casa bastante tarde, para sustentar Zezé e seus irmãos.
Nosso protagonista era um menino muito esperto e inteligente e, no decorrer da leitura, vamos notando um grande amadurecimento nele, em razão de todos os acontecimentos dolorosos que se passam na sua vida. O grande xodó da vida de Zezé era seu irmãozinho caçula, mas ele também possuía outro irmão e algumas irmãs, todos mais velhos.
Por causa das dificuldades financeiras da família, devidas principalmente ao desemprego do pai do nosso pequeno herói, eles tiveram que se mudar de casa, coisa que não agradou muito Zezé. Ao chegar na nova casa, no entanto, havia muitas árvores grandes e bonitas e ele logo animou-se para ficar com uma para si. Entretanto, cada um de seus irmãos tomou uma árvore como posse e só o que restou para Zezé foi um pequenino pé de laranja-lima. No início, ele ficou muito contrariado com o que lhe foi designado, mas depois ele descobriu que conseguia "falar" com seu pé de laranja-lima, que era a única árvore do mundo capaz de conversar com ele, e assim, ficou extremamente satisfeito. Minguinho era o nome carinhoso pelo qual ele chamava seu pé de laranja lima e era a ele que eram dadas todas as suas confissões, e era ele o procurado nos momentos que Zezé sentia-se sozinho ou injustiçado, ou quando ele havia sofrido algum tipo de violência, física ou psicológica.
Por ser extremamente travesso, a família e os vizinhos de Zezé costumavam dizer que no Natal, em vez de nascer para ele o Menino Deus, nascia o menino diabo. Desta feita e em decorrência não apenas da sua má fama, mas das próprias peças que ele pregava constantemente em todos, ele apanhava muito tanto de familiares, quanto de pessoas de fora. E numa dessas vezes, ele apanhou muito mesmo de um português. Neste dia, ele sentiu um ódio tremendo pelo homem e jurou que, quando crescesse, ia matá-lo. Mas o destino é capaz de fazer-nos ter que engolir coisas que falamos e prometemos na euforia da raiva, pois o camarada destino consegue ser ainda mais danado que o próprio Zezé. Por isso mesmo, em um dia que Zezé ia para a escola com o pé quebrado, o mesmo português lhe ofereceu carona e ele, sem opção, acabou por aceitar. A partir daí, nasceu uma amizade tão linda, tão profunda, que Zezé começou a ficar mais comportado e bonzinho. O tal do português tão antes odiado era o único capaz de ceder ao menino o carinho e amor familiar que ele não encontrava dentro de casa. Assim, em certo ponto, ele pede ao português que o adote e seja seu pai, porque "sua família nem vai se importar, mas sim vai achar muito bom".

Em parte, esta passagem denota o pensamento infantil de Zezé, ainda incapaz de compreender o porquê de tanto desamor em sua família. Sua mãe, que vivia para trabalhar, sem descanso e sem alternativa, para sustentar os filhos, quando chegava em casa, estava sempre exausta e incapaz de um gesto de carinho. Seu pai, sentindo a depressão inerente ao desemprego, era incapaz de dar suporte à sua própria família e, sequer, conseguir que os filhos ganhassem um presente, por mais simples que fosse, no Natal. Nesta situação, para que houvesse alegria e amor na família, tinha também de haver muita força para aguentar tanto sofrimento. Abaixo, uma passagem do livro que realmente nos faz refletir:

"— Totóca. 

— Fale. 

— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel? 

— Acho que não.

— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo 
diz? 
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você  tem o diabo no 
sangue. 
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes 
de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra 

mim. 
— Quem sabe se ano que vem... Por que você não aprende e não faz como 
eu? 
— E como é que você faz? 
— Não espero nada. Assim a gente não fica desapontado. Mesmo o Menino 
Jesus não é essa coisa tão boa que todo mundo fala. Que o padre conta nem que o 

Catecismo diz...  

Fez uma pausa e ficou indeciso se contava o resto do que pensava ou não. 
— E como é então? 
— Bem, vamos dizer que você foi muito levado, não mereceu. Mas Luís? 
— É um anjo. 
— E Glória? 
— Também. 
— E eu? 
— Bem, você às vezes é... é... meio pegador das minhas coisas, mas é muito 
bonzinho. 
— E Lalá? 
— Bate com muita força, mas é boa. Um dia vai costurar minha gravata de 
laço. 
— E Jandira? 
— Jandira é daquele jeito, mas não é ruim. 
— E Mamãe? 
— Mamãe é muito boa; só me bate com pena e devagar.
— E Papai? 
— Ah! Esse eu não sei. Ele nunca tem sorte. Eu acho que ele deve ter sido 
como eu, o ruim da família. 

— Pois então. Todo mundo é bom na família. E por que o Menino Jesus não 
é bom pra gente? Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de 

coisas. Na casa dos Villas-Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se 

fala... 

Pela primeira vez eu vi que Totóca estava quase chorando. 
— Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis nascer pobre para se 
mostrar. Depois Ele viu que só os ricos é que prestavam... Mas não vamos mais 

falar disso. Pode ser até que o que eu falei seja um pecado muito grande.

Ele ficou tão abatido que nem quis mais conversar.  Nem mesmo queria 

levantar os olhos do corpo do cavalo que alisava agora. 
*   *   * 
Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu 
em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba 

nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com 

ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento.  
[...] 
Mamãe foi para o quarto. Garanto que ela estava chorando escondido. E todos estavam com vontade de fazer o mesmo. 

[...] 
O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros. Quando voltamos para dentro, Glória e Jandira lavavam a louça usada e 
Glória tinha os olhos vermelhos como se tivesse chorado doído. 

Disfarçou e disse para Totóca e eu: 

— Está na hora de criança ir para a cama. 

Ela falava isso e olhava para a gente. Ela sabia que naquele momento não 
havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma 

tristeza aos pedaços. 
[...] 
Quando toda a casa estava às escuras eu perguntei baixinho: 

— Tava boa à rabanada, não estava Totóca? 

— Nem sei. Não provei. 

— Por quê?
— Fiquei com uma coisa entalada no gogó que não passava nada... Vamos 
dormir. O sono faz a gente esquecer tudo. 
Eu me levantara e fazia barulho na cama. 
— Aonde você vai, Zezé? 
— Vou botar meus tênis do lado de fora da porta. 
— Não ponha, não. É melhor. 
— Vou pôr, sim. Quem sabe, se não vai acontecer um milagre. Sabe, Totóca, 
eu queria um presente. Um só. Mas que fosse uma coisa novinha. Só pra mim... 
Ele virou para o outro lado e enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. 

*   *   *  
Mal acabei de acordar e chamei Totóca. 

— Vamos ver? Eu digo que tem. 

— Eu não iria ver. 

— Pois eu vou. Abri a porta do quarto e os sapatinhos tênis estavam vazios 
para a minha decepção. Totóca aproximou-se limpando os olhos. 

— Não falei?  
Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza. 
Sem poder me conter exclamei: 
— Como é ruim a gente ter pai pobre!...  
Desviei meus olhos do tênis para uns tamancos que estavam parados à minha 
frente. Papai estava em pé nos olhando. Seus olhos  estavam enormes de tristeza. 

Parecia que seus olhos tinham crescido tanto, mas crescido tanto que tomavam toda 

a tela do cinema Bangu. Havia uma mágoa dolorida tão forte nos seus olhos que se 
ele quisesse chorar não ia poder. Ficou um minuto que não acabava mais nos 
fitando, depois em silêncio, passou por nós. Estávamos estatelados sem poder dizer 
nada. Ele apanhou o chapéu sobre a cômoda e foi de  novo para rua."

Um certo dia, Zezé recebe a notícia de houve um grande acidente com o trem Mangaratiba, que passa próximo da estrada Rio-São Paulo, e o carro do português, o que significava que seu grande refúgio, seu melhor amigo, nunca mais estaria perto dele. Ao mesmo tempo, dá-se a notícia de que será cortado o pé de laranja-lima. Zezé havia ficado doente de tristeza pela morte de seu amigo, mas sua família pensa que ele está triste por perder seu Minguinho. E assim, apresenta-se uma incompreensão dos adultos do que está na mente das crianças. Muitas vezes, os mais velhos pensam que os pequenos não compreendem nada e, no entanto, a compreensão deles está muito além do imaginável. No caso de Zezé, essa compreensão já ultrapassava os limites de uma criança comum, pois a força das circunstâncias havia, muito cedo, lhe tirado o direito de ser o que, de fato, ele era. Na passagem seguinte, compreendemos, afinal, que, se no início o livro parecia de fato se tratar da história de amizade entre o menino e a árvore, ao fim, a árvore torna-se algo ainda mais profundo.
"— Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá.
Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.
— Não adianta, Papai. Não adianta...
E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto:
— Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima."
 
 Ao mesmo tempo que ficamos indignados com a família de Zezé pela maneira como tratam o menino e pela sua incompreensão de que uma criança como ele não faz certas coisas por maldade, mas por falta de entendimento, entendemos que em uma situação de desespero como a deles, a capacidade de parar para refletir diminui e sentimos pena. Até porque, no fundo, sabemos que existe muito amor dos pais para os filhos e vice-versa, mas, por mais triste que possa parecer essa realidade, amor não põe mesa.

Com certeza, devemos ter a consciência de que dinheiro não está nem perto de ser uma das coisas mais importantes da vida, mas é muito fácil dizer isso quando se tem o suficiente e ainda mais quando se tem de sobra. Entretanto, é preciso atentar para o fato de que sem a obtenção das necessidades básicas, nenhum ser humano consegue ser feliz e, infelizmente, o que proporciona a capacidade de ter alimento na mesa, um lugar para viver e mesmo um pouco de lazer (como um brinquedo de Natal) é o dinheiro. Confesso que estas são algumas das concepções que mudaram em mim após a leitura deste livro. Não podemos recriminar a atitude do outro sem conhecer a fundo sua realidade, sua história. O mundo deste livro é extremamente real e atemporal, apesar de se passar em um período e lugar específicos. De minha parte, por ser uma realidade bastante distante da que vejo no cotidiano, eu tive que abrir meu coração e minha alma para tentar compreender todos os sentimentos que se passam em cada um dos personagens. Não é fácil não acusar a família de Zezé de desleixada e com falta de amor. Da mesma maneira, é difícil entender como Zezé pode preferir ficar com um estranho qualquer que com a própria família, escolher uma árvore como grande amigo e confidente, por haver uma necessidade de refúgio para todos os seus temores. Mas, abrindo nossos olhos para ver com mais clareza, somos capazes de perceber tudo isso e crescemos como seres humanos.
Indico este livro a todos, sem exceção. Um livro que, por nos mostrar a dura realidade da vida através de olhos infantis, pode parecer escrito para crianças, mas que tem uma profundidade tamanha que não são todos os adultos que são capazes de compreender. O que eu recomento é tentar, pois quando abrimos nosso coração, este nos emociona com a história de um menino que aprende tudo cedo demais: não apenas  a dor e a ternura, como também a saudade e o carinho.

Video-curiosidades:

"Meu Pé de Laranja Lima", 2011
Em 1970, a obra foi adaptada para os cinemas, com direção de Aurélio Teixeira.
Em 1980, uma telenovela da Band contava a história da obra. Esta era uma regravação da telenovela da rede Tupi que havia sido gravada 10 anos antes.
Em 1998, mais uma vez a Band reproduziu a telenovela.
Agora, em 2011, mais um longa-metragem é criado, dessa vez dirigido por Marcos Bernstein, para matar as saudades da geração que hoje tem por volta de 50 anos e, também, arrebatar as novas gerações com essa história que é linda e comovente.