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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

"O Guarani", José de Alencar

"O guarani", primeiro romance histórico-indianista do renomado escritor brasileiro José de Alencar, foi publicado pela primeira vez em 1857, sob a forma de folhetim no Diário do Rio de Janeiro, o que era muito comum no péríodo. A obra expõe a vida dos colonos e seu relacionamento com os indígenas nos primeiros tempos de Brasil.
O livro se inicia com a descrição da casa onde D. Antônio Mariz, fidalgo português, viera morar com sua família: sua esposa D. Lauriana, seus filhos D. Diogo e Cecília e Isabel, sua sobrinha que, como saberemos no decorrer do livro, é filha de D. Antônio com uma indígena.
Na vida dessa família, se colocam outros persnagens por força das circunstâncias: o jovem cavaleiro, Álvaro de Sá, a quem Cecília havia de ser prometida; o ambicioso e devasso, Loredano; e um índio goitacá, que havia salvado a vida de Cecília e por ela criara uma espécie de adoração e devoção, nosso protagonista, Peri.
Apesar de selvagem, Peri era honrado, de coração grande, forte, inteligente e destemido. Possuía todas as características inerentes a um herói e é a autêntica expressão da nacionalidade brasileira. Por obrigação e descendência, deveria ser o líder da tribo dos goitacás, mas, no dia em que vê sua senhora Ceci, o amor não mais o permite sair do lado dela. No início, Cecília o reprime e o afasta por medo, no entanto, aos poucos, começa a aceitá-lo como seu escravo e torna-se amiga dele, em agradecimento às tantas vezes que o índio iria salvar sua vida no decorrer do livro. Por causa do tratamento que Cecília lhe dá inicialmente, Peri começa a chamá-la de Ceci, que é um verbo da língua guarani que significa magoar, doer. Além desta inteligente relação, outros pensamentos e sentimentos do índio nos fazem crer que este possui uma alma de poeta, um poeta das matas brasileiras.
Os três personagens já citados (Peri, D. Álvaro e Loredano) ficam encantados, de maneiras diferentes pela doce e meiga Cecília. D. Álvaro tem por ela um amor no sentido mais puro da palavra, Loredano sente uma paixão ardente e Peri, como anteriormente notado, possui um amor devotivo por sua senhora.
No decorrer do livro, o coração de D. Álvaro é conquistado pelo amor de Isabel, mas sua união se dá apenas quando estão para morrer.
São muitos os fatos que se passam na obra, mas o clímax do livro ocorre com uma revolta dupla contra a família de D. Antônio, da parte de seus homens, liderados por Loredano e da parte dos índios aimorés, após a morte acidental, provocada por D. Diogo, de uma índia da tribo. Para salvar Cecília, Peri precisa partir com ela, mas, antes disso, necessita de ser batizado como cristão. Após a partida do índio e da donzela, ao longe, se vê a explosão da casa. Durante dias, Peri e Cecília rumam sem destino. Peri sempre com o mesmo cuidado e devoção por sua senhora.

"- Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão pouco tempo que adormeceste!
- O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua senhora.

- E por que tua senhora não velará também sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!

O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina:
- Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.
Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.
- E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.
- Peri... é teu escravo, respondeu o índio naturalmente.
A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:
- A rolinha não tem escravo.
Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu de seus lábios:
- Teu...
Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.
- Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.
Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de sua felicidade."


Em certo ponto, são surpreendidos por uma forte tempestade, que se transforma em dilúvio. Abrigados no topo de uma palmeira, Cecília espera pela morte. Peri conta, então, a ela uma lenda indígena, segundo a qual Tamandaré e sua esposa se salvaram de um dilúvio abrigando-se na copa de uma palmeira desprendida daq terra. Ao término da enchente, eles desceram da palmeira e povoaram a Terra. As águas sobem, Cecília se desespera, mas a lenda de Tamandaré parece que irá se repetir.
Demonstrando uma certa semelhança com a cultura católica (o dilúvio e a arca de Noé), há a alusão a um silogismo religioso com as crenças indígenas. A sobrevivência dos dois diante da morte dos outros os apresenta, portanto, como os "pais" da raça brasileira que viria a ser criada, fundamentada no índio e no branco (com a exclusão do negro, pois, no período, este era considerado com forte preconceito e ainda não se admitia sua participação na formação do Brasil).
Cecília, loura dos olhos azuis, tenra e meiga, comparada por Peri a uma imagem de Nossa Senhora, é a personificação romântica da raça branca. É o ideal feminino do romantismo, associada a figuras incorpóreas ou assexuadas: anjo, criança, virgem. Sua prima Isabel é o oposto desta idealização; é a representação da voluptuosidade, do desejo. Com relação a Ceci, as referências ao amor físico (mesmo o de Loredano) se dão de maneira indireta, sugestiva, superficial; exatamente o contrário do que ocorre com Isabel.  
Na obra, o naturalismo é eminente; há uma grande exaltação da fauna e flora brasileiras do início da colonização. Também é muito forte a presença do preconceito dos colonos com relação aos nativos.
Apesar do romantismo excessivo do livro, do detalhamento exacerbado da natureza, de sua linguagem poética e, por vezes, eufemista, metafórica e hipérbólica, que pode não agradar leitores que tem pressa pelo desenrolar da trama, é de uma história extremamente interessante. Mesmo que a leitura da obra seja iniciada por um motivo ou outro que não o romance em si, no decorrer do livro, nos infiltramos nas histórias, ansiamos pelas próximas páginas, nos perdemos nas florestas de um Brasil colonial tão pouco civilizado. Corremos e caçamos com Peri, ansiamos desesperadamente, com Ceci, a volta do índio, esperando que ainda esteja vivo.
José de Alencar é capaz de nos fazer penetrar em suas histórias mais diversas, por mais distantes que elas sejam de nossa realidade. Essa é a beleza de escritores como ele: a capacidade de fazer com que o leitor, em qualquer sociedade, em qualquer período de tempo, viva intensamente uma história totalmente fora de seu contexto.
É um livro cuja leitura é indispensável para quem deseja conhecer os primórdios da civilização brasileira, sua flora e fauna, de uma maneira romântica e extremamente penetrante.

Video-curiosidades:

O Guarani foi filmado pela primeira vez em 1911. Adaptações cinematográficas surgiram também nos anos de 1916, 1920, 1026, 1950 e 1079. Sua adaptação mais recente, com Márcio Garcia, Glória Pires, Marco Ricca, dentre outros, foi filmada em 1996.
Em 1991, Angélica foi Ceci em uma minissérie apresentada pela TV Manchete.