Páginas

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

"A hora da estrela", Clarice Lispector

Lançado em 1977, "A hora da estrela" é o livro que quebra o ciclo de inflexões intimistas, encontradas nos livros precedentes da renomada escritora brasileira de origem ucraniana Clarice Lispector. No livro, Clarice entra em uma luta consigo mesma para se ater aos fatos, evitando as reflexões e sentimentalismos, tão comuns em sua narrativa. Para tanto, ela cria um narrador, Rodrigo S. M., que, por ser homem, deveria ser mais objetivo ao contar sua história, sem "enfeitar" as palavras e sem apresentar a complexidade do ser humano. Ela buscava ser uma mera espectadora dos fatos, em vez de adentrar nas profundezas da alma de sua personagem. No entanto, o senhor Rodrigo acaba por se tornar "a si mesmo" um personagem e grande parte do livro nos expõe o processo de criação de um enredo, a partir da história do nosso narrador.
É interessante atentar para a maneira com que Clarice nos demonstra a invenção dos personagens e dos acontecimentos que irão se passar com estes. É como se os personagens já existissem e os acontecimentos de sua vida fossem quase reais. O escritor é um relator, cuja função é de encontrar em seu cérebro ambos, personagens e acontecimentos, e apresentá-los ao leitor. Nos resta a dúvida: onde irá o narrador encontrar sua história - memória ou imaginação? E eu, pelo pouco que sei sobre escritores, afirmo: em ambos. Pois um personagem é a miscelânea construída a partir da vivência e imaginação de seu criador.
Pois bem. Apesar de ser o senhor Rodrigo um dos personagens mais marcantes da narrativa, a nossa protagonista é a nordestina Macabéa. Nascida no sertão de Alagoas, fora criada pela tia beata em Maceió, onde obtera uma educação tão rígida que era castigada todas as vezes que fazia algo errado, ou melhor, todas as vezes que fazia algo.
"A menina não perguntava por que era sempre castigada, mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida.
Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes."
Após a morte da tia, a nordestina se mudou para o Rio e, com o curso de datilógrafa que a tia havia lhe proporcionado, garantiu emprego.
Dividia um quarto simples com outras moças e seu grande prazer era "aprender coisas" através do rádio relógio quando suas companheiras de quarto não estavam.
O traço mais forte de nossa personagem é o fato de ela não ter nenhum traço forte. Macabéa é uma anti-heroína, que sequer tinha consciência de existir. A autora a descreve como alguém que tem "ar de desculpa por ocupar espaço". Ela não chamava a atenção de ninguém para si. E tanto era assim, que quando seu chefe, aos gritos e humilhações, foi informá-la que estava despedida, tudo que ela soube dizer foi: "Me desculpe o aborrecimento." Mas não da maneira irônica e petulante com que falariam as moças de hoje (mais do que certas).
Era magra, o rosto cheio de panos e "até mesmo o fato de vir a ser mulher não parecia pertencer à sua vocação". 
"Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem. Se não, também está bem."

Achava que todo mundo era obrigado a ser feliz e, por isso, também o era. Macabéa era ignorante de sua própria infelicidade e, por ser assim, tão sem ... (o quê mesmo?), ela, moça de alma rala, achava que não merecia mais do que havia recebido. Ou talvez não achasse nada; simplesmente nunca tinha pensado nisso. Não era gente de ficar se perguntando "quem sou eu", "de onde vim", "para onde vou". Somente era, apesar de ser muito pouco. E vivia sua vida tão sem tempero quanto ela mesma, sem reclamar.
Certo dia, Macabéa apaixona-se por Olímpico de Jesus e eles começam a namorar. Olímpico, no entanto, sempre humilha e diminui sua namorada, mas esta, como é próprio de sua personalidade, não se importa e o ama cada vez mais. Até que Olímpico a troca por sua colega de trabalho, Glória, que é mais robusta e carnuda que Macabéa e tem "aquilo", que ela não tem. A moça também não reclama. Sofre ao seu modo, coisa que para as escandalosas é como não sofrer.
Por fim, Glória lhe indica uma cartomante. A moça se dirige a esta, que lhe faz premonições de uma vida maravilhosa que está por vir, com acontecimentos coloridos, diferentes de sua vida em preto e branco. Ao sair da cartomante, a "hora da estrela" chega para Macabéa. Todo mundo tem sua hora da estrela. O momento em que todos atentam para o fato de que você vive - ou viveu - mesmo que se esqueçam depois: é quando a morte chega. Ao sair da cartomante, portanto, a moça  é atropelada por um carro. O narrador Rodrigo, tão homem e objetivo, de repente hesita e demora-se a tirar a vida da nordestina sofrida, se enche de sentimentalismo e Clarice mostra sua face. Os curiosos, como sempre acontece nos acidentes de rua, se ajuntam em torno de Macabéa, que antes era invisível. No entanto, ninguém lhe ajuda, ninguém lhe estende a mão. E ela morre na esperança de não estar morrendo (ou essa era a esperança do narrador?), tão desamparada quanto havia estado em toda a sua vida e sonhando com o futuro de felicidade que nunca iria chegar.
"A hora da estrela" é um livro bastante curto, mas repleto de reflexões sobre a vida e as pessoas. Todos nós somos um pouco Macabéa em algum momento, nos sentindo desamparados e esquecidos pela vida. Ao mesmo tempo, devemos sempre agradecer a "vós" (ou a esse Ser para o qual Macabéa rezava por hábito, e o qual ela não fazia idéia do que seria) por não sermos tão invisíveis e ignorantes quanto nossa anti-heroína e por sabermos qual botão apertar. "Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende."

Video (e áudio)-curiosidades:

Em 1985, a cineasta e roteirista Suzana Amaral adaptou a obra de Clarice, levando-o para o cinema.
No CD "Daqui pro Futuro" de Pato Fu de 2007, encontramos a música "A hora da estrela", também inspirada na obra.